O depoimento de Mandetta na CPI

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

O DEPOIMENTO DE MANDETTA

No primeiro  depoimento da CPI da Pandemia não decepcionou. Ao longo de mais de sete horas, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta se manteve sereno enquanto traçava um quadro de como o governo federal se comportou nos primeiros meses de pandemia. Segundo ele, não foi por falta de aviso e informação que Jair Bolsonaro agiu contra o isolamento social e pela cloroquina.  

Perguntado se o presidente tinha consciência de que 85% dos casos da covid-19 são leves ou assintomáticos, e que advogar o uso de uma droga ineficaz poderia ter o efeito de fazer as pessoas atribuírem erradamente a evolução positiva de seus quadros à cloroquina, o ex-ministro respondeu que isso sempre esteve claro para Bolsonaro.

Mandetta mostrou uma carta enviada ao presidente em 28 de março do ano passado que está sendo considerada a primeira “prova” da omissão de Bolsonaro por integrantes da CPI. No texto, ele pediu ao mandatário que ele abandonasse a postura contrária às orientações do Ministério da Saúde uma vez que a adoção de medidas em sentido contrário poderiam gerar “colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população“. Como se sabe, o alerta não funcionou até hoje.

O ex-ministro também revelou que o chefe tinha um “assessoramento paralelo”. “Testemunhei várias vezes reuniões de ministros em que o filho do presidente, que é vereador no Rio, estava sentado atrás tomando notas. Eles tinham constantemente reuniões com esses grupos [ligados a Carlos] dentro da Presidência”, relatou. Segundo Mandetta, vários pontos eram explicados por ele e sua equipe ao presidente nessas reuniões. Bolsonaro parecia entender, mas depois mudava de ideia, optando por ignorar os prognósticos e recomendações técnicas. De acordo com o ex-ministro, isso acontecia porque havia pessoas próximas ao presidente rebatendo as informações do Ministério da Saúde. 

Mandetta deu como exemplo a ideia de mudar por decreto a bula da cloroquina para incluir ali a indicação de uso para covid-19 que, segundo ele, foi apresentada provavelmente por alguém de fora do governo em uma reunião ministerial. Ele disse que chegou a ver o esboço do decreto, mas que a ideia tinha sido abandonada sem necessidade da sua intervenção. 

Ele também contou que Bolsonaro queria nomear quatro pessoas do Rio de Janeiro para secretarias do Ministério da Saúde. “Não são gente nossa”, teria ouvido como justificativa do presidente, em referência aos integrantes da sua equipe. Apesar de afirmar que os nomes chegaram por ofício, ele não apresentou o documento, nem lembrou quem eram os indicados. 

Ainda na linha da intervenção, Mandetta acusou o governo de impedir a realização de uma campanha publicitária para orientar a população sobre as formas de transmissão do vírus. “Não havia como fazer uma campanha, não queriam fazer uma campanha oficial. Então, havia necessidade de manter a questão das informações”, disse, em referência às coletivas de imprensa diárias que a equipe da pasta passou a dar. 

Mandetta fez muitas críticas ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que seria o responsável por pregar no governo a falsa dicotomia entre economia e saúde.  “Esse ministro Guedes é desonesto intelectualmente, um homem pequeno para estar onde está. Não ajudou em nada. Pelo contrário, falava assim: ‘já mandei o dinheiro, agora se virem lá e vamos tocar a economia’. Talvez [ele] tenha sido uma das vozes que tenha influenciado o presidente”. 

Como resultado das declarações de Mandetta, Carlos BolsonaroPaulo Guedes e o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que falava que a pandemia mataria menos de mil pessoas no país e era um dos interlocutores de Bolsonaro, devem ser convocados pelo G-7 para depor na CPI.

Os governistas, por sua vez, acusaram Mandetta de não agir com a rapidez necessária para conter o espalhamento do vírus no Brasil, dando como exemplo o fato de que o Ministério da Saúde não recomendou a suspensão do Carnaval. Eles também bateram na tecla preferida de Bolsonaro: a de que existe um “tratamento precoce” para a doença que teria sido negado pelo ex-ministro.

Coube ao senador Ciro Nogueira (PP-PI) protagonizar um vexame: leu (de forma confusa) uma longa pergunta questionando a recomendação do Ministério da Saúde na época da gestão Mandetta de que as pessoas com sintomas leves ficassem em casa e só procurassem o serviço de saúde em caso de agravamento. Antes de responder, Mandetta afirmou que havia recebido na véspera a mesmíssima questão por WhatsApp do ministro das Comunicações, Fábio Faria, que teria apagado a mensagem quando percebeu o engano.  

A CPI ouve hoje Nelson Teich, a partir das 10h.

O MEDO DE PAZUELLO

Eduardo Pazuello “tremia” durante o treinamento que recebeu no fim de semana para a CPI da Pandemia, ao custo de R$ 23 mil. A tensão continuou na segunda-feira, quando o comportamento do general da ativa foi descrito por assessores do Planalto como “muito nervoso”. Nesse contexto, o ex-ministro da Saúde conseguiu adiar seu depoimento, marcado para hoje, para o dia 19 de maio. 

Na manhã de ontem, o Exército entrou em contato com o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), dizendo que Pazuello tinha tido contato com oficiais contaminados pelo coronavírus e, por isso, teria de fazer quarentena. Horas depois, Aziz reclamou publicamente que ainda não havia recebido o comunicado oficial da Força, formalizando a decisão – o que ocorreu à tarde.

Por coincidência, o militar que teria sido diagnosticado com covid-19 é outra pessoa de interesse para a comissão. Segundo o Valor, trata-se do ex-secretário executivo do Ministério da Saúde, coronel Élcio Franco. 

Ninguém explicou porque Pazuello não faz um teste para verificar se foi reinfectado pelo vírus… O general teve a doença em outubro de 2020, e chegou a ficar internado. Quando se recuperava, protagonizou um dos episódios que o Planalto teme que seja explorado pela CPI: o vídeo em que, do lado de Jair Bolsonaro, o general fala: “um manda, o outro obedece”. 

Segundo o blog de Malu Gaspar, o ex-ministro já planejava não comparecer à CPI da Covid desde o final de semana, quando participou de um media training para se preparar para o depoimento. De acordo com pessoas que estiveram com ele, Pazuello estava preocupado com a possibilidade de ser preso logo após depor. “Nos últimos dias, Pazuello tem apresentado oscilações de humor, por achar que o círculo próximo de Jair Bolsonaro planeja abandoná-lo em algum momento”, apurou a jornalista.

“O temperamento explosivo do general é uma das principais preocupações de integrantes do governo”, diz O Globo. O jornal afirma que Pazuello foi obrigado a assistir a vídeos de momentos em que demonstrou irritação em público durante entrevistas coletivas e em audiências no Congresso como parte do treinamento para a CPI. 

Ele foi orientado a defender a tese furada de que a decisão do STF de conferir a estados e municípios autonomia para deliberar sobre as medidas de isolamento social teria impossibilitado o governo federal de coordenar o enfrentamento à pandemia. Não surpreende, já que além de desviar o foco para governadores, Bolsonaro expressou naquela famosa conversa divulgada pelo senador Jorge Kajuru intenção de colocar os holofotes sobre o Supremo. 

BOICOTE INTERNO

O governo federal chegou a elaborar um plano que usaria as imagens de Jair Bolsonaro se vacinando para incentivar a imunização entre brasileiros, mas, por boicote do presidente, não foi adiante. A história é contada pelo jornalista Diogo Junqueira, da Repórter Brasil, que teve acesso ao documento.

Elaborado em março pela Secom (a Secretaria Especial de Comunicação Social) em parceria com o Ministério da Saúde, o plano previa que Bolsonaro tomaria a primeira a primeira dose da vacina com ampla cobertura da imprensa. Só que, como sabemos, ele já declarou que pretende ser o último a se vacinar, apesar de já ser elegível pela idade há um mês. A estratégia previa também um evento com a primeira-dama Michelle Bolsonaro e o Zé Gotinha no começo de abril, o que tampouco foi adiante. O Ze Gotinha, aliás, não tem muito destaque nas comunicações oficiais. Por fim, o documento dizia que no dia 1º de abril o ministro da Saúde Marcelo Queiroga deveria aparecer na transmissão online semanal do presidente, quando seriam anunciados um mutirão de vacinação no feriado de Páscoa e novas medidas da Saúde. Queiroga nunca foi a live nenhuma. Naquela noite Bolsonaro insinuou que não precisaria da vacina pois já tinha se infectado. E o tal mutirão não aconteceu. 

A Secom diz que mantém a ideia de vacinar o presidente em ato público, mas não dá para dizer quando, porque “a estratégia de comunicação não pode passar por cima da liberdade dos cidadãos em seu direito de decidir se se vacinarão ou não”. 

O SUMIÇO DA QUEBRA

O diretor-geral da OMS tem feito reiterados acenos públicos à suspensão temporária de patentes para aumentar o acesso às vacinas contra a covid-19. “Essas disposições existem para uso em emergências. Se agora não é hora de usá-los, então quando?“, disse ele à imprensa, dois meses atrás. Mas o rascunho final de uma resolução da entidade sobre as vacinas omite qualquer referência explícita a isso. A informação é do jornalista do UOL Jamil Chade. 

O documento vai ser colocado à votação na Assembleia Mundial da Saúde no fim do mês. Versões anteriores se referiam à suspensão das patentes como uma possibilidade. O último, porém, não apenas retirou a referência como ainda incluiu o reconhecimento de que “a proteção à propriedade intelectual é importante para o desenvolvimento de novos medicamentos”. Como solução para a ampliação da oferta, o novo texto trata apenas de transferência de tecnologia e acordos de licenciamento voluntário. Isso já é possível e tem sido feito em alguma medida – a AstraZeneca transferiu tecnologia para o laboratório SKBio, na Coréia do Sul, e para o Instituto Serum da Índia, e é este último que produziu quase todas as doses da Covax Facility. Mas contar com acordos voluntários não tem sido suficiente para melhorar o acesso.

Hoje e amanhã, governos nacionais vão discutir mais uma vez a quebra temporária na OMC. Como se sabe, não é a OMS que tem impedido a proposta de ir adiante, mas sim a negativa de países europeus e dos Estados Unidos (no que são acompanhados pelo Brasil). Mesmo assim, a possível aprovação de uma resolução que ignore essa possibilidade é ruim: “Para diplomatas de países em desenvolvimento, o rascunho do acordo tem um gosto de derrota, ainda que os negociadores admitam que, diante da recusa dos países ricos, pouco poderiam avançar”, escreve Chade.

Ainda há uma esperança de que os Estados Unidos mudem de rumo, como temos dito por aqui. Esta semana o ativista americano Ady Barkan desenterrou um vídeo de 2020 em que entrevista Joe Biden, então em campanha eleitoral. Biden lhe diz que compartilhar patentes é “a única coisa humana a se fazer no mundo”, e que apoia a ideia “absolutamente, positivamente”. Barkan pede que o presidente mantenha sua palavra. Enquanto isso, a indústria farmacêutica mobiliza milhões de dólares em ações de lobby, direcionados em grande parte aos Estados Unidos. 

IMPREVISTOS

Joe Biden prometeu que os Estados Unidos voltariam à “quase” normalidade em julho, e definitivamente o país tem vacinas para isso. Mas os planos estão precisando ser redimensionados: o ritmo da imunização caiu, não por falta de doses, mas, aparentemente, por falta de interessados

“Os locais de vacinação em estádios antes cheios de carros com pessoas em busca de vacinas estão fechando, e estados que antes clamavam por mais doses estão descobrindo que não conseguem usar todas as que o governo federal quer enviar para eles”, diz a reportagem do New York Times. Estão sendo administradas 2,2 milhões de doses por dia, o que ainda é formidável, mas houve queda de 35% em relação ao pico de 3,8 milhões relatadas em meados de abril. Ontem o presidente anunciou uma nova meta: a de chegar a 70/% dos adultos com pelo menos a primeira dose em 4 de julho. A nova estratégia para retomar a velocidade envolve mudar o foco da distribuição e ter, em vez dos postos de imunização em massa, doses disponíveis em farmácias, consultórios médicos e outros ambientes.

Em tempo: vários países continuam aguardando ansiosamente pela vacina de Oxford/AstraZeneca que devem ser doadas pelos Estados Unidos – que tem o imunizante sobrando, mas ainda nem autorizou seu uso. Parte já foi enviada a Canadá e México, mas o governo ainda não revelou quem serão os próximos agraciados. O Brasil, sabemos, está na fila. 

LUTO E ALERTA

O Brasil voltou a ter mais de três mil mortes registradas em 24 horas: foram 3.025. Entre elas, ainda não está a do humorista Paulo Gustavo, que estava internado desde março e morreu ontem à noite. Além da comoção dos fãs, o adoecimento do ator gera alerta sobre a (ainda presente) ideia de que há grupos a salvo do coronavírus. Ele tinha apenas 42 anos e nenhum registro de comorbidades.

Jair Bolsonaro registrou “votos de pesar” nas redes sociais. 

O país soma quase 412 mil mortes no total. A média diária segue caindo, mas ainda está em patamar alto: 2.3 mil. Já são 49 dias com essa média acima de dois mil.

Foto: Isac Nóbrega/PR

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