Anderson França: “Essa criança”

Na Coluna de Terça

A Polícia Civil tirou mãe e filha de dentro de um barraco. Levou, pelo braço, um jovem negro que eles dizem ser do tráfico. Bateram nele. Sangraram. Gritaram.

Durante minutos, viraram o próprio demônio.

O que há de mais sombrio no ser humano, estava naquele quarto ontem, no Jacarezinho. O mesmo espírito que habita em Jairinho, que matou uma criança. O mesmo espírito que habita Bolsonaro, que matou 400 mil pessoas. O poder das trevas.

Deixaram de ser humanos. Se tornaram demônios.

O Diabo
veste
farda.

Depois de torturar o jovem, criminoso ou não, existe lei que determina que ele deve ser preso. Não há lei que autoriza a morte,
então executaram o jovem,
em cima da cama da criança. Aquilo era uma casa, não um matadouro.

Ali, na cama onde a Polícia Civil do Rio e Cláudio Castro assassinaram um jovem negro, dorme uma criança.

As fotos circularam o mundo.

O sangue encharcou a cama, colchão, lençol, travesseiro.
No chão, nas paredes. Litros de sangue, cheiro de sangue, pedaços de carne, cheiro de pólvora, cheiro de morte.

E um corpo desfigurado, caído entre a cama e o chão.

Uma cena típica do Brasil. O Brasil que tem um passado de escravidão, um presente de extermínio, um futuro cada vez mais obscuro.

Repara. São sempre nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas. Da mesma cor.

Então a bala não é tão perdida assim.

A bala se faz de perdida. A bala se faz de sonsa.
Mas ela não tá perdida. Ela sabe quem ela quer matar.
Não é bala perdida. É bala sonsa.
Se você perguntar pra bala, ela vai dizer que foi sem querer.
Que não sabia. Que se perdeu.
Mas dentro dela, ela sabia. Ela desejou aquele dia, por anos.

A mão que aperta o gatilho é a do agente, é a do Chefe da Polícia Civil, é a do Governador Cláudio Castro, é de cada pessoal que votou no hoje condenado Wilson Witzel.

Muitos de vocês apertaram o gatilho que matou 25 pessoas ontem. E muitos de vocês continuam apertando. E muitos de vocês, inclusive, vão morrer pela mesma arma. Ao votar em Witzel e Bolsonaro, vocês colocaram a arma na própria cabeça. Uma hora, dispara.

Vocês vão morrer, porque elegem pessoas que vão matar vocês. E o que se planta, se colhe. Você plantou 17, você vai colher a sepultura. Pela fome, pela covid, pela bala.

Tem uma criança,
que não consegue entrar no seu quarto pra dormir.
Ela não sabe lidar com o que aconteceu na cama onde ela dorme, brinca com a mãe, tem sonhos. Sonhos de um futuro melhor, dentro ou fora da favela, ser uma jogadora, uma médica, uma mãe também, uma escritora, qualquer coisa.

No lugar sagrado dos sonhos de uma criança negra,
sacrificaram um corpo, para satisfazer a ira dos demônios de farda. Um culto sinistro, de uma religião que dominou o Brasil.

Hoje acordamos vazios. Acordamos com luto. Acordamos secos. Mas nós dormimos. Nós dormimos em nossas camas. Nossas camas sem uma gota de sangue.

Essa criança,
não.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Sonia Maria Rummert.

Chacina no Jacarezinho, RJ. Foto: reprodução do Twitter de Joel Luiz Costa.

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