Famílias indígenas sofrem forte impacto com a pandemia

Grace Soares (Fiocruz Amazônia), na Agência Fiocruz de Notícias

Há poucos dados sobre a saúde mental de jovens indígenas. Diante desse contexto, entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021 pesquisadores do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/ Fiocruz Amazônia) realizaram um estudo diagnóstico que abrangeu oito regiões da Amazônia e que resultou em maior compreensão dos efeitos da Covid-19 nesse grupo. “O estudo se concentrou no entendimento sobre o conhecimento, as atitudes e as práticas (CAP) dos jovens sobre a saúde mental no período da pandemia. Os resultados mostram que as famílias indígenas foram fortemente atingidas pela pandemia, ocasionando óbitos e insegurança sobre o bem-estar social da comunidade”, comentou o coordenador da atividade CAP e pesquisador do Laboratório de História, Políticas Públicas e Saúde na Amazônia da Fiocruz Amazônia, Júlio Schweickardt.

Embora 98% dos respondentes tenham relatado fazer uso de medidas de proteção, dentre elas, máscaras, álcool em gel e restrição de viagens, cerca de 37% contaram ter sido infectados e 68% disseram ter tido alguém da família com Covid-19. Contudo, apenas 17,3% referiram ter tido acesso a algum cuidado psicológico por parte dos serviços de saúde durante a pandemia. Dentre as práticas tradicionais, remédios caseiros foi o principal cuidado buscado por eles. “Esses dados evidenciam a necessidade de fortalecimento da rede de proteção social e de saúde mental para essas populações. Isso já era uma fragilidade antes da pandemia e continuará sendo um caminho a construir mesmo passado o momento mais crítico da pandemia”, destaca a coordenadora-geral do projeto pela Fiocruz Amazônia, Michele Rocha El Kadri.

A ação integrou o projeto Povos Indígenas da Amazônia Contra a Covid-19 (PIACC), do qual participaram, além da Fiocruz, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef). O projeto contou com financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Estima-se um total de 94 povos, cerca de 2 mil comunidades e 27 mil famílias beneficiadas com as atividades do projeto.

O PIACC se estendeu por cinco estados: Amazonas, Acre, Pará, Roraima e Amapá, cobrindo prioritariamente oito regiões: 1) Tumucumaque e Paru D’Este (PA); 2) Guamá Tocantins (PA); 3) Leste de Roraima (RR); 4) Alto Rio Negro(AM); 5) Alto Rio Solimões (AM); 6) Alto Purus (AM, AC); 7) Médio Purus (AM); 8) Yanomami / AYRCA (AM). O levantamento permitiu o acesso a informações relevantes sobre o perfil e as práticas de diversos grupos indígenas em várias comunidades e pequenos centros urbanos. Ao todo, 533 jovens, entre 15 e 22 anos de idade, participaram da atividade respondendo a um questionário com 48 perguntas no total, o qual estava organizado em Bloco A – Informações sociodemográficas; Bloco B – Conhecimento sobre Saúde Mental, Discriminação e violência, Hábitos e Costumes; e Bloco C – Informações sobre Covid-19.

Uma rede de apoiadores locais foi montada para dar suporte ao processo de preenchimento. Eles adotaram diferentes estratégias de modo a garantir um número representativo de respostas. Houve necessidade de realizar reuniões com lideranças, professores, pajés, pais e uma ação direta com os próprios jovens. Uma ação certeira foi o envio do link do questionário, disponibilizado pelo google.forms, para os celulares dos jovens.

Mesmo com problemas de logística no acesso às comunidades e de comunicação, causados pela baixa conectividade e pelos riscos impostos pela pandemia, a equipe CAP obteve amostra de todas as oito áreas. Sendo a região do Alto Solimões a que concentrou maior quantidade de respondentes, 111 ao todo, seguida pelo Leste de Roraima, com 106 questionários válidos.

“Os jovens [apoiadores] identificaram que foram utilizadas várias estratégias do conhecimento tradicional para o enfrentamento da Covid-19, mas não deixaram de utilizar as medidas recomendadas de distanciamento social, uso de máscara e de álcool em gel. Também apontaram que convivem com muitos problemas relacionados ao uso de bebidas alcoólicas e violências, sendo, portanto, necessário o investimento em projetos que envolvam o lazer, os esportes, geração de renda e alternativas de estudo. O estudo contribuirá no planejamento das instituições para o trabalho com jovens indígenas”, analisou o coordenador do CAP.

Experiência

Valdemar Pereira Lins foi apoiador do estudo na região de Maturacá, São Gabriel da Cachoeira (AM). Nasceu na própria comunidade, onde vive o povo yanonami. Para ele, o trabalho realizado proporcionou aprendizado. “Nosso objetivo é conscientizar as pessoas e contribuir para o bem-viver das comunidades Yanomami. Também melhorar a visão dos profissionais de saúde sobre nossa realidade, para, assim, nós indígenas termos tratamento diferenciado”, salientou o apoiador. Lins fez parte da primeira turma de Licenciatura Intercultural em Física, oferecida pelo Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam), Campus São Gabriel da Cachoeira.

Filha de outra terra e vivendo outra realidade, a apoiadora Wauana Sheeva Costa Silva Manchineri  também atuou como apoiadora, investindo esforços para que o instrumento CAP fosse um sucesso na região do Alto Rio Purus. Ela é indígena, do povo Manchineri, e formada em Gestão de Agronegócios, pela Universidade de Brasília.

Para a articuladora, entre as principais dificuldades encontradas no processo de aplicação do questionário, o acesso à internet (raro e, quando existia, limitado) foi um ponto importante.  “Então foi necessário utilizar outras medidas para contato, como ligações telefônicas, para que o instrumento tivesse maior distribuição entre etnias, aldeias e faixa etária”, comentou a jovem.

A segunda dificuldade, apontada por Wauana, esteve relacionada às distâncias e à própria comunicação com as pessoas das comunidades. “A região do Alto Purus possui sete povos distribuídos em várias comunidades, que, em sua maioria, são distantes, onde não há acesso à telefonia e muito menos à internet. Entre os integrantes dos povos Jamamadi e Kulina, por exemplo, existem pouquíssimas pessoas falantes português”, concluiu. Além do levantamento CAP, outra ação da Fiocruz Amazônia foi a oferta do curso Bem-Viver: Saúde Mental Indígena para responder exatamente a necessidade de capacitação profissional apontada pelo estudo como uma fragilidade no cuidado a essas comunidades.

Imagem: Bruno Kelly – Reuters

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