Analisando o massacre no Jacarezinho, Souto Maior destaca a perversidade de um projeto político autoritário, que dissemina o caos e o medo com a morte de determinadas pessoas para garantir sua sobrevida.
No dia 06 de maio, última quinta-feira, ficamos todos (ou quase todos) aturdidos, consternados e indignados com a notícia da morte de 25 pessoas (dentre elas, um policial) como resultado de uma ação policial na favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro, RJ – posteriormente, chegou a 28 a quantidade de pessoas mortas.
Na busca de se tentar fazer uma análise sobre o ocorrido, muitos escritos foram produzidos. Na maior parte deles, de forma plenamente pertinente, falou-se sobre a recorrência da violência policial nas periferias e favelas, sobre o genocídio da população negra, assim como sobre os aspectos pertinentes à injustiça social que nos assola e da qual se alimentam vários outros tipos de violência. Claro, também não faltaram vozes tentando justificar a violência, como a do vice-Presidente da República, que, mesmo sem qualquer elemento de prova, afirmou que todos que morreram (exceto o policial) eram bandidos. E outras, ainda mais infelizes, que, fazendo apologia ao ódio, manifestaram-se no sentido de que “morreram poucos”.
As explicações sérias e socialmente comprometidas, todas elas, são muito importantes para melhor compreensão da tragédia ocorrida no Jacarezinho. Nesse prisma, as considerações estão bem resumidas na nota publicada pela Associação Americana de Juristas (AAJ-Rama Brasil):
“A cidadania, a ordem democrática e os direitos fundamentais foram mais uma vez covarde e violentamente atacados. Não há o direito de matar e não cabe à Polícia e a ninguém escolher quem deve viver e quem deve morrer. Diante do percurso histórico da exclusão, os desafios são imensos para a completa e necessária reversão do quadro. O que se passou ontem no Rio de Janeiro em nada se relaciona com o enfrentamento do problema social. De fato, as pessoas mortas na chacina de Jacarezinho foram executadas de modo sumário, sem direito à defesa, sem direito à vida. A ação policial, ademais, violou ordem judicial expressa contida na ADPF 635. A AAJ manifesta seu repúdio e exorta as autoridades competentes e a sociedade em geral a tomarem todas as providências – que não são poucas – para que cessem os sistemáticos ataques à vida de milhões de brasileiras e brasileiros que em condições extremamente precárias habitam e tentam sobreviver nas periferias das nossas cidades, sendo emergencial também apurar as responsabilidades pela chacina e submeter os atores às penas legalmente previstas.”
Penso, entretanto, que talvez seja pertinente ir além das apreensões já tradicionais para encarar o ocorrido dentro do contexto político.
Valho-me, para esta perspectiva de análise, de um estudo publicado na principal revista de sociologia dos Estados Unidos, em 2016, pelo qual o autor, Joscha Legewie, demonstra estatisticamente que o aumento momentâneo da violência policial não se dá por um acaso e sim como uma reação – não propriamente programada, mas emocionalmente estimulada – a fatores relacionais. O estudo, tratando da violência policial com relação à população negra nos Estados Unidos, aponta que essa violência se intensifica bastante quando algum policial é atacado por um negro, destacando que a mesma reação não se verifica quando quem ataca o policial é uma pessoa branca. Os dados revelam como as forças policiais se movem emocionalmente e de modos distintos com relação a determinadas parcelas da população, considerando, inclusive, a região urbana.
A situação retratada no estudo – pode-se dizer – não traz nenhuma novidade, visto que, mesmo sem dados estatísticos mais aprimorados, uma vez que não é muito da nossa tradição analítica colher dados sobre as ocorrências para melhor identificá-las, a ninguém é dado desconhecer a forma mais ostensiva da ação policial nas periferias e favelas e com relação a negros e negras no Brasil.
Por outro lado, há de se reconhecer utilidade à abordagem feita, no aspecto da demonstração de que, bem ao contrário do que se tem defendido, as atuações policiais podem efetivamente ser impulsionadas pela emoção e, consequentemente, por motivações que possam extrapolar os limites do dever funcional.
Uma análise mais profunda sobre a intervenção policial no Jacarezinho, que resultou na segunda maior chacina da história do Rio de Janeiro, deve recusar, portanto, a ideia de que tudo não se passou de uma obra do acaso ou que tenha sido uma circunstância aleatória, mero retrato de mais um capítulo da histórica violência policial contra negros, negras e favelados. Isso explica muito, mas não explica tudo.
Parece-me extremamente importante perceber que a ação policial no Jacarezinho se deu em um momento histórico muito específico e, portanto, não se pode descartar a visualização de que a ação tenha sido bem mais do que mais um, dentre tantos, massacres policiais nas favelas.
Primeiro, é bastante relevante destacar que sobre a ação propriamente dita até hoje pouca coisa se sabe. As notícias oficiais chegam a conta-gotas e são muitas vezes contraditórias. A alegação principal apresentada é a de que a ação foi promovida no bojo de uma investigação sobre aliciamento de crianças e adolescentes pelo tráfico local. Mas, conforme os dados apurados pela imprensa, extraídos de consulta processual no sítio do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tratava-se de 21 mandados indicados como “Associação para a Produção e Tráfico e Condutas Afins (Art. 35 – Lei 11.343/06) C/C Aumento de Pena Por Tráfico Ilícito de Drogas (Art. 40 – Lei 11.343/2006)”, cuja denúncia foi realizada sem sigilo judicial. E, segundo informação divulgada pela CNN-Brasil, na denúncia do Ministério Público, promovida pelo promotor Salvador Bemerguy contra os 21 réus, no processo nº 0158323-03.2020.8.19.0001, que tramita na 19ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, da qual se origina a Operação Exceptis, no Jacarezinho, consta que os réus são traficantes de drogas e nada se diz sobre aliciamento de crianças e adolescentes, roubo de cargas, assaltos a pedestres, homicídios e sequestros de trens da SuperVia, como também consta da versão oficial da polícia.
O que se sabe, concretamente, é que dos 21 procurados 3 foram presos e outros 3 foram mortos (Richard Gabriel da Silva Ferreira, conhecido como “Kako”; Isaac Pinheiro de Oliveira, conhecido como “Pee da Vasco”; Rômulo Oliveira Lúcio, conhecido como “Romulozinho”). O total de mortes foi de 28 pessoas, sendo que 11 corpos ainda estão sem identificação. Segundo a polícia, as outras 24 pessoas mortas (excluído o policial), embora não estivessem entre os procurados, eram traficantes ou reagiram atacando os policiais. Não há, entretanto, qualquer comprovação disso e o fato é contestado pelas famílias de alguns dos que foram mortos.
O que se sabe, concretamente, é que dos 21 procurados 3 foram presos, enquanto o total de mortes foi de 28 pessoas. Segundo a polícia, as outras 24 pessoas mortas (excluído o policial), embora não estivessem entre os procurados, eram traficantes ou reagiram atacando os policiais. Não há, entretanto, qualquer comprovação disso e o fato é contestado pelas famílias de alguns dos que foram mortos . Reportagem de Herculano Barreto Filho e Lola Ferreira, publicada no portal UOL, aponta que dentre os mortos apenas 4 estavam integrados à lista do 21 procurados e menos da metade (12) possuía antecedentes criminais ligados ao tráfico de drogas, incluindo anotações como menor infrator.
De todo modo, o que os policiais tinham em mãos eram mandados de prisão e não de execução sumária, não abrangendo, igualmente, armamento ostensivo e invasão de casas, como relatado por moradores, em reportagem do The Intercept. E também é digno de registro o fato de que dos 28 mortos, os corpos de 27 deles foram removidos do local sem qualquer tipo de perícia.
Fato é que sobre a ação propriamente dita é tudo muito propositalmente nebuloso.
No entanto, olhando o contexto mais amplo da realidade, as coisas se tornam um pouco mais nítidas.
O primeiro aspecto que chama a atenção é a predisposição de um delegado ligado à operação em justificar a ação criticando o “ativismo judicial” e a atuação dos ativistas e ONGs ligadas aos Direitos Humanos e à visão de grupos ideológicos sobre a criminalidade.
Fica a impressão de que se buscou a construção de um fato político para que os discursos de ataque ao pensamento crítico pudessem ser retomados, isto porque, diante dos nefastos efeitos da pandemia, onde ganham cada vez mais espaço – mesmo entre os liberais – os postulados mais moderados do pensamento de esquerda em torno da necessidade da intervenção do Estado na economia e na introdução de medidas coercitivas para a proteção da vida, o conservadorismo tem se visto acuado e sem possibilidades de uma reação, até porque a cada novo negacionismo maior é o número de mortes.
Então, ganha sentido lógico promover um fato social para reativar os discursos em favor do Estado Policial, da luta contra a criminalidade, da autodefesa armada, do ódio de classe e, por conseguinte, da desqualificação das pessoas e entidades que defendem os Direitos Humanos.
É importante também lembrar o cerco que se tem formado em torno do governo federal com a CPI da COVID-19 no Senado Federal, já tendo gerado, inclusive, o autêntico ato de desespero refletido na tomada das ruas pelo conservadorismo e o reacionarismo no último 1º de maio.
Além disso, são fortes as suspeitas dos vínculos de pessoas ligadas às estruturas de governos com a milícia do Rio de Janeiro. A este respeito, como explica José Cláudio Alves (ICHS/UFRRJ), um dos mais destacados estudiosos do tema milícias/crime organizado, quando a milícia, que é tradicionalmente a associação entre pessoas da estrutura de Estado (sobretudo, ligadas à segurança pública) e o tráfico, se integra à política, atingindo diversas esferas do poder (municipal, estadual e federal), as disputas de controle das comunidades adquirem também um propósito da constituição de um nicho de “eleitores” e da difusão de um discurso de propaganda eleitoral perante àqueles que se comovem com o lema “bandido bom é banido morto”. A propósito, destaque-se o conteúdo da nota trazida, em 10 de maio, na coluna da jornalista Mônica Bergamo, no jornal Folha de S. Paulo, informando que “um dia antes da invasão da polícia à comunidade, apenas 12% das citações sobre o governador eram consideradas positivas. No dia do morticínio, o percentual saltou para 41%. Já as citações negativas caíram de 50% para 41%. E as neutras passaram de 38% para 18%”.
Neste contexto, lembra o professor José Cláudio, malgrado a decisão proferida pelo STF na ADPF 635, as operações policiais, com mortes (mais de 20, desde 11 de janeiro de 2021), já vinham ocorrendo na baixada fluminense, mais propriamente no complexo do Roseiral, na cidade de Belford Roxo, sendo que, em todas elas, incluindo as chacinas, não muito distantes no tempo, havidas no Morro do Falet e no Complexo do Alemão e a presente no Jacarezinho, voltadas ao desmantelamento da facção Comando Vermelho, que é a mais forte, estruturada e reativa ao poder que o “Estado” (tanto as institucionalizadas quanto as violentas atuações milicianas) tenta impor às comunidades, de modo a abrir novos espaços ao controle para as milícias e não acabar com a violência ou proteger as “pessoas de bem”. E complementa, afirmando que operações dessa natureza, na história do Rio de Janeiro, nunca se realizaram em áreas controladas pelas milícias e quando alguma operação policial se realiza os atos se limitam a prisões de membros e lideranças, não se atingindo o ponto do extermínio.
Assim, na busca da identificação de uma motivação específica para o massacre do Jacarezinho, tem bastante sentido a hipótese de que as ameaças advindas do avanço do discurso crítico, contrário ao conservadorismo e ao reacionarismo, com real possibilidade de profundas alterações na organização política, possam também estar por trás da ação no Jacarezinho, que poderia, por conseguinte, ser vislumbrada como uma reação articulada e, ao mesmo tempo, uma oportuna demonstração de poder.
Vejam que, embora se tenha dito que a ação foi planejada durante 10 meses, o fato em si que se apresentou como aquele que se pretendia desbaratar, qual seja, o aliciamento de crianças e adolescentes, não é, infelizmente, nenhuma novidade e está há muito disseminado em todas as formas estruturais do tráfico. O aliciamento, inclusive, não se restringe às zonas pobres e periféricas da cidade. Não havia, pois, um fator específico que pudesse justificar uma intervenção policial com tamanha explicitação de força, valendo lembrar que a própria questão do aliciamento não integrava a denúncia.
Além disso, ao se enviar um grande número de policiais fortemente armados favela adentro (consta que mais de 200 agentes integraram a operação) é, por si, elemento constitutivo da oportunidade para que o efeito fosse aquele que se produziu, mesmo sem qualquer tipo de confronto, até porque os relatos não são propriamente de um confronto e sim de um massacre, repleto de execuções sumárias, o que afasta também o argumento de que as mortes foram um acaso ou demonstração de que algo desandou na execução da ação.
Nesta perspectiva da inserção do fato em um contexto mais amplo, o massacre havido no Jacarezinho ganha um fator de extrema perversidade, que é o se admitir a morte de pessoas (sobretudo, pobres, favelados, negros e negras) para conferir sobrevida a um projeto político de cunho autoritário, estabelecido a partir da disseminação de um novo caos (desviando o foco da crise humanitária) e do medo. Em nome da segurança e do “restabelecimento” da ordem – em uma desordem propositalmente potencializada, favorecida pela fragilização das instituições democráticas – ter-se-ia aberto o caminho para a consagração do Estado policial (miliciano, totalitário e ditatorial) pleno, com supressão das liberdades, garantias e direitos fundamentais, deixando no ar a ameaça de que novas violências podem ocorrer a qualquer momento, atingindo a tudo e a todos.
A hipótese em questão até poderia parecer, aos olhos de muitos, um tanto quanto cerebrina, pois lhe faltava um personagem que, valendo-se politicamente da narrativa, pudesse conferir sentido ao enredo. Eis que, então, para minar reticências, o personagem entra em cena e decreta: “…ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os iguala ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo.” E, juntando tudo e aparando arestas, arremata: “É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade. Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro!”.
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Confira o dossiê Violência policial: uso e abuso, com artigos, reflexões e indicações de vídeos e livros sobre o tema publicados pela Boitempo.
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Presidente da Associação Americana de Juristas – AAJ-Rama Brasil. Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
Protesto dos moradores do Jacarezinho com a chacina. Foto: Ricardo Moraes /Reuters