As consequências de um pequeno erro repetido por décadas

por Raquel Torres, em Outra Saúde

UMA HISTÓRIA E TANTO

Uma excelente reportagem de Megan Molteni, na Wired, conta a epopeia dos cientistas que estudam aerossóis durante a pandemia. A longa leitura vale cada segundo e mostra como um erro minúsculo, sedimentado ao longo de décadas, atrapalhou tanto a compreensão sobre as formas de transmissão do SARS-CoV-2  – e, consequentemente, a resposta à covid-19.

Por incrível que pareça, o problema é uma medida. Em algum momento, surgiu a ideia de que apenas partículas menores do que 5 mícrons viajam e ficam suspensas pelo ar (o coronavírus é maior que isso). Mas de onde veio esse limite? Linsey Marr, pesquisadora de aerossóis e doenças infecciosas da Virginia Tech, buscava essa resposta desde muito antes da pandemia: “Os livros de medicina simplesmente afirmavam isso como um fato, sem uma citação, como se fosse puxado do próprio ar”. Mas foi somente no ano passado que, trabalhando com uma estudante de História da mesma universidade chamada Katie Randall, ela viu as peças se encaixarem.

A chave estava em estudos antigos, dos anos 1930 e 1940, que tratavam separadamente de contágio aerotransportado e tuberculose – uma doença que, todos concordam há tempos, se transmite pelo ar. Randall encontrou cálculos apontando que  partículas maiores de 100 mícrons afundavam rápido, enquanto as menores permaneciam no ar. Ocorre que o bacilo causador da tuberculose só penetra profundamente os pulmões quando é menor do que cinco mícrons. Para prevenir especificamente essa doença, era preciso se preocupar com as partículas menores do que isso, portanto. Só que outros patógenos podem se incorporar em partículas maiores e infectar células ao longo de todo o trato respiratório. O que aconteceu, provavelmente, foi que os cientistas da época acabaram misturando as descobertas e fazendo com que cinco mícrons fosse a definição geral do tamanho das partículas que podem ser aerotransportadas. 

“Com o tempo, por meio da repetição cega, o erro se aprofundou no cânone médico”, aponta a matéria. A descoberta se deu em junho, mas uma tortuosa jornada para convencer o mundo de que um novo paradigma precisava ser seguido começou bem antes. Ainda no dia 3 de abril do ano passado, mais de 30 especialistas  em aerossóis entraram em uma chamada de vídeo com representantes da OMS. O objetivo era explicar por que todas as evidências até aquele momento apontavam para a transmissão do coronavírus pelo ar:

“Eles apresentaram uma lista crescente de eventos de superespalhamento em restaurantes, call centers, navios de cruzeiro e um ensaio de coral, casos em que as pessoas adoeceram mesmo quando estavam do outro lado da sala na presença de uma pessoa contagiosa. Os incidentes contradiziam as principais diretrizes de segurança da OMS de manter uma distância de um a dois metros entre as pessoas e lavar as mãos com frequência. Se o SARS-CoV-2 viajasse apenas em gotículas grandes que imediatamente caíam no chão, como dizia a OMS, o distanciamento e a lavagem das mãos não teriam evitado esses surtos? O ar infeccioso era o culpado mais provável, eles argumentaram. Mas os especialistas da OMS pareceram impassíveis. Eles queriam evidências mais diretas – provas, que podem levar meses para serem coletadas”.

A postura da organização e de autoridades sanitárias mundo afora foi mudando a conta-gotas. Como vimos aqui, somente duas semanas atrás a OMS atualizou suas informações sobre as formas de infecção pelo coronavírus, reconhecendo sem ressalvas a transmissão por aerossóis. Em seguida, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA) fez o mesmo, colocando o ar como principal via de transmissão.
As mudanças chegam tarde, mas têm potencial para ajudar na prevenção de outras doenças também: a ventilação deveria ser um pilar central das políticas de saúde pública. 

CADA CASO É UM CASO

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) anunciou ontem uma recomendação polêmica: que, em todo o país, pessoas totalmente vacinadas contra a covid-19 vão poder abandonar as máscaras e o distanciamento social na maior parte dos espaços, incluindo em vários tipos de ambientes fechados. Os cuidados ainda serão necessários nos que oferecem maior risco, como unidades de saúde e transporte público.

Na teoria, a mudança faz sentido. Os imunizantes utilizados por lá se mostraram muito efetivos para reduzir doença sintomática e mesmo assintomática, hospitalizações e mortes, e um terço da população já tomou as duas doses (ou usou a vacina da Janssen, de dose única). Essas vacinas não inibem totalmente a transmissão do vírus, mas certamente promovem uma redução, embora ela ainda não tenha sido totalmente estabelecida. A curva de novas infecções diárias caiu de forma vertiginosa desde o início do ano – a queda foi de um terço nas últimas duas semanas – indicando uma circulação bem menor do vírus do que no início da vacinação. Nessas condições, uma pessoa totalmente vacinada tem um risco muito, muito baixo de adoecer gravemente ou morrer.

Agora que o ritmo da imunização no país diminuiu – em parte, por falta de interessados –, a intenção por trás da mensagem pode ser a de oferecer um incentivo para ampliar o alcance da campanha. Afinal, todos querem  voltar à vida normal. Não é simples comunicar aos hesitantes que sim, é importante eles se vacinarem mas, ao mesmo tempo, precisam continuar mantendo os mesmos cuidados em seguida. 

Mas os efeitos da notícia podem ser complicados, tanto nos EUA como fora do país. Lá, haverá um óbvio problema para garantir a execução das novas diretrizes. Como fiscalizar os ambientes para evitar que não-vacinados tirem as máscaras também? E as crianças mais novas, para as quais não há nenhum imunizante autorizado – ficarão expostas a eventuais fraudadores da recomendação? Além disso, se tratou de uma indicação para todo o país, independentemente da taxa de vacinados e da circulação do vírus em cada lugar. E os riscos não são uniformes.

Esse último ponto é o que mais interessa para quem está do lado de fora, em países com o vírus ainda em patamares elevados e com uma parcela pequena da população totalmente vacinada – como o Brasil. Será que as manchetes sobre o movimento dos Estados Unidos podem provocar uma falsa sensação de segurança em quem já tomou a injeção por aqui?

Já chamamos a atenção nesta newsletter sobre a necessidade de informar melhor quanto aos riscos pós-vacinação. Qualquer estudo sobre a eficácia das vacinas compara quem tomou com quem não tomou, em um determinado ambiente: é um risco em comparação a outro. Quando a circulação do vírus é muito baixa (o que acontece quando se vacina muita gente e/ou quando boas medidas de controle são tomadas), já cai o risco de os não-vacinados se infectarem. Assim, em comparação, o risco dos vacinados é extremamente baixo  e pode tender a zero. Já onde o vírus está descontrolado, o risco dos não-vacinados é altíssimo. Nesse caso, mesmo que o risco de os imunizados adoecerem diminua muito, ele ainda é bem diferente de zero. 

MAIS UM TIJOLO

O presidente da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, depôs ontem à CPI da covid-19 e colocou mais um tijolo na tese de que o governo federal tinha um gabinete paralelo para aconselhamento em relação à pandemia, com pessoas que não têm nada a ver com o Ministério da Saúde: ele confirmou que o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o assessor especial para assuntos internacionais da Presidência, Filipe Martins, participaram das negociações para a compra de vacinas. Isso além do ex-chefe da Secom, Fabio Wajngarten:

“Representantes da Pfizer foram recebidos pelo senhor Fabio Wajngarten, nessa oportunidade havia-se tentado contato com o então secretário-executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco, como já visto aqui, sem sucesso, sem resposta. Diante da falta de resposta, o senhor Wajngarten contactou o senhor Filipe Martins, que chamou para o local da reunião o filho do presidente da República, o senhor Carlos Bolsonaro, que estava presente no Palácio do Planalto”. Murillo não esteve na reunião, mas confirmou que ela aconteceu com outros membros da empresa.

SILÊNCIO TOTAL

Carlos Murillo também ajudou a ajudou a expor a falta de senso de urgência do governo federal na pandemia: o Ministério da Saúde ignorou ao menos cinco ofertas da empresa, sendo que a primeira foi feita em agosto do ano passado. “Não teve resposta positiva nem negativa”, disse.

De acordo com ele, as três primeiras propostas previam entregas de doses ainda em 2020 (embora seja preciso lembrar que os ensaios clínicos com o imunizante só terminaram em novembro e as primeiras agências reguladoras deram suas autorizações emergenciais apenas em dezembro). 

Se o negócio tivesse sido fechado ainda em agosto, o Brasil poderia ter recebido 4,5 milhões de doses até o fim de março: 1,5 milhão em 2020 e outras três milhões no primeiro trimestre. Nesse caso, teriam sido imunizadas 2,2 milhões de pessoas e, segundo o epidemiologista Pedro Hallal, professor da UFPel, pelo menos cinco mil vidas teriam sido salvas. Mas o governo demorou mais de 200 dias para finalmente assinar um acordo, o que aconteceu em fevereiro deste ano. Por enquanto, recebemos 1,6 milhão de doses, com as entregas começando em abril.

A quantidade total de vacina que entregue no primeiro semestre de 2021, porém, não seria tão distante daquela efetivamente contratada: pela proposta original, seriam ao todo 18 milhões até o fim de junho; o acordo firmado prevê 14 milhões. 

De todo modo, a fala de Murillo deixa mais do que claro que o Ministério da Saúde cruzou os braços quando deveria estar trabalhando para aumentar o cardápio brasileiro de vacinas. Mas o presidente Jair Bolsonaro conseguiu reverter essa óbvia constatação no seu oposto: em transmissão ao vivo ontem à noite, disse que o depoimento foi a prova de que Eduardo Pazuello fez tudo certo… Isso porque a primeira proposta da empresa envolvia 70 milhões de doses, contra as 100 milhões que o governo acabou topando. Como se os quantitativos não fossem, em toda parte, aumentados com o tempo… “Acabou a palhaçada e a narrativa sobre compra ou não da vacina Pfizer no ano passado. Ele falou que a proposta que o pessoal fala tanto que não comprou era 70 milhões de doses. E fechamos o contrato há pouco com a Pfizer pela compra de 100 milhões. Precisa falar mais alguma coisa ou vão continuar perturbando? Graças ao trabalho de quem? Do Ministério da Saúde. Começou com quem? Com o Pazuello; Acabou a narrativa, aquela conversa mole”.

Bom, uma ressalva feita pelo próprio Murillo é que o número de 4,5 milhões de doses perdidas até março se baseia na oferta da empresa, mas que não seria necessariamente a quantidade fornecida, porque há outros gargalos. Ele foi questionado sobre se a Pfizer vem conseguindo cumprir seus cronogramas de entrega até aqui e respondeu que sim. No entanto, isso não é o que foi visto nos primeiros meses de distribuição. Houve atrasos nas remessas para o Canadá, países europeus e México, entre outros. 

Ele também disse que as cláusulas do contrato consideradas “leoninas” pelo ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, eram idênticas às impostas a todos os demais países. Já mencionamos por aqui a investigação do Bureau of Investigative Journalism que revelou exigências diferenciadas para países latino-americanos, inluindo a disponibilização de reservas de bancos federais, edifícios de embaixadas e bases militares. Também aconteceu em outros lugares: a África do Sul, cujas negociações estiveram travadas pelo mesmo motivo, acabou conseguindo demover a Pfizer de tais exigências. 

NOTÍCIA ANIMADORA

No Brasil, a exemplo do que foi feito no Reino Unido, o Ministério da Saúde orientou que o intervalo entre as doses da vacina da Pfizer seja de três meses, em vez das três semanas previstas na bula. Os dados do país europeu já sugeriam que a imunização não havia sido prejudicada, proporcionando queda nas internações e mortes.

Agora, um estudo da Universidade de Birmingham sugere que espaçar as duas doses desse imunizante pode aumentar bastante a produção de anticorpos. O trabalho (ainda sem revisão de pares) avaliou a resposta imunológica em 175 idosos de mais de 80 anos. Naqueles que tomaram a vacina com 12 semanas de intervalo, os níveis máximos de anticorpos foram 3,5 vezes maiores do que nos que esperaram só 21 dias. A resposta de pico das células T, porém, foi menor. 

Marcello Casal Jr./EBC

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