SUS e planos de saúde: integração em benefício de quem?

Proposta de política divulgada para consulta pública pelo Ministério da Saúde quer promover a integração do Sistema Único com a saúde suplementar. Para críticos, objetivo é fomentar o crescimento do mercado de planos com baixa cobertura, tendo SUS como retaguarda

Por André Antunes – EPSJV/Fiocruz

Termina na próxima terça-feira (18) uma consulta pública sobre a Política Nacional de Saúde Suplementar para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19 (PNSS-Covid-19). Lançado no dia 30 de abril pelo Ministério da Saúde, o documento, que lista oito diretrizes  e seis princípios e objetivos voltados a promover uma maior “integração” entre o SUS e as operadoras de planos de saúde, vem sendo alvo de críticas dentro do movimento sanitário.

Pesquisadores e representantes do controle social veem na proposta um claro aceno a interesses privados, com o objetivo de atender a antigas demandas do setor e promover o crescimento da comercialização de planos com cobertura restrita, utilizando a pandemia como justificativa. O Ministério da Saúde, que não respondeu à solicitação de entrevista feita pela reportagem do Portal EPSJV, afirma no capítulo dedicado à apresentação da política, que se trata de medida “essencial” para a superação da crise sanitária.

“O enfrentamento da pandemia da Covid-19 gerou mudanças profundas nos sistemas de saúde, revelando suas fragilidades e suas potencialidades para a resolução de emergências em saúde pública. O Sistema Único de Saúde tem resistido ao cenário epidemiológico crítico que persiste, sendo a saúde suplementar um componente importante do Sistema Nacional de Saúde”, diz o texto, complementando em seguida, após um breve panorama desse mercado: “Nesse momento em que urge a soma de esforços para superação da situação sanitária que o país atravessa, reforça-se a necessidade da integração das ações do setor de saúde suplementar com o Sistema Único de Saúde”.

Mais à frente, contudo, na ‘introdução’ da Política, o texto deixa claro que as transformações que ela pretende promover no sistema vão além da crise sanitária atual. “A elaboração dessa política faz parte de um conjunto de medidas que vêm sendo tomadas na perspectiva tanto da contenção da epidemia quanto da reorganização e adequação da assistência”, afirma o texto.

Integração “reversa”

O pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Leonardo Mattos, no entanto, qualifica como “inacreditável” a apresentação de uma proposta como essa em um cenário em que as vítimas fatais da Covid-19 já superam 400 mil, e uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional investiga a atuação do governo federal no enfrentamento da crise.

“O que vimos foi um ‘papelão’ das empresas de planos saúde e dos hospitais privados no enfrentamento da pandemia. Todos se opuseram frontalmente, por exemplo, à integração dos leitos privados ao SUS com controle público”, lembra. E completa: “Mas, de certa forma, não surpreende. É mais um capítulo de uma história que já está rolando há um longo tempo. Essa é uma agenda que está em disputa, principalmente, a partir de 2015. Com a abertura da saúde para o capital estrangeiro já dava para ver que grandes grupos econômicos estavam com outro patamar de poder e influência nas políticas públicas, mas isso foi se manifestando ao longo dos anos seguintes”, avalia Mattos, lembrando como exemplo a proposta dos chamados “planos populares” encabeçada a partir de 2016 pelo então ministro da Saúde, Ricardo Barros.

Segundo ele, a “integração” entre o SUS e as operadoras tem aparecido com frequência como pano de fundo das propostas oriundas do setor privado para ampliar o mercado dos planos de saúde no país que vêm sendo apresentadas a sucessivos governos, como o chamado ‘Livro Branco’, editado em 2014 pela Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp) e, mais recentemente, o ‘Mais Saúde’, desenvolvido pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) em 2019.

“Os planos de saúde batem num teto de aumento de cobertura a partir de 2015. Sua base de clientes, de certa forma, enxugou por conta da reforma trabalhista, e por todas as desregulamentações que estão sendo feitas no mercado de trabalho. Há um limite claro para esse modelo de expansão de saúde suplementar baseado no contrato de trabalho, naquele modelo em que o empregador paga uma parte, o funcionário paga outra, porque isso depende diretamente do emprego formal”, analisa o pesquisador da UFRJ.

Para Mattos,  o setor privado “já tinha essa ideia de que integração com o SUS seria necessária”. E que integração é essa, afinal?

“É basicamente ampliar a oferta de planos de baixa cobertura, com o SUS se consolidando como resseguro e, além disso, abrir mais espaço para prestação de serviço desses grandes grupos, seja na gestão dos serviços públicos, seja em investimentos diretos”, responde.

De acordo com ele, a movimentação também precisa ser analisada em correlação com a agenda de mudanças na atenção primária tocadas pelas gestões Ricardo Barros e Luiz Henrique Mandetta, como por exemplo: a reformulação das diretrizes da PNAB, a Política Nacional de Atenção Básica e  a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps).

USP e UFRJ destrincham propostas

Leonardo Mattos faz parte do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (GPDES/IESC) da UFRJ, que junto com o Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (GEPS/FM/USP) foram os grandes responsáveis por soar o alerta para a consulta pública. Os pesquisadores divulgaram na semana passada um documento no qual analisam, uma a uma, as propostas apresentadas pelo ministério.

Na análise, os pesquisadores classificam como “imoral” e “ilegal” um dos objetivos da nova política, de “contribuir para o desenvolvimento sustentável do setor de saúde privada no país”.

“O setor suplementar tem mostrado um incremento notável e contracíclico ao longo da história. Cresceu em número de clientes e em faturamento até nas chamadas “décadas perdidas” dos anos de 1980 e de 1990, e seguiu apresentando uma trajetória de expansão. Recentemente, em plena superposição das crises econômica e sanitária, os planos de saúde aumentaram suas receitas, entraram na bolsa de valores, promoveram grandes aquisições e fusões. Não há justificativa para o apoio governamental ao setor privado de saúde em um país que tem o SUS e a saúde como um direito de todos e dever do Estado”, alerta o documento, que lista problemas em todos os objetivos e diretrizes estabelecidos na política.

Um exemplo é a primeira diretriz, que fala em promover o “estabelecimento de ações que visem o desestímulo ao atendimento de beneficiários de planos de saúde no SUS, no limite das coberturas contratadas”. Para o grupo da USP e da UFRJ, a redação da diretriz, “propositalmente ambígua”, remete a planos com coberturas mínimas e fortes barreiras de acesso, tendo como garantia o acesso ao SUS.

“O plano cobriria apenas consulta com generalistas e exames baratos, o resto é com o SUS. Querem normalizar o SUS como porta de entrada de seus clientes, sem serem importunados pela Justiça. Atualmente, propagandas de operadoras já incluem hospitais de emergência públicos como integrantes de suas redes assistenciais. Pretendem “oficializar” a rede pública como retaguarda permanente. Seria uma divisão de ações, na qual os planos ficam com o baixo custo e o SUS arca com tudo mais”

CNS recomenda rejeição da proposta na íntegra

De acordo com a conselheira do Conselho Nacional de Saúde (CNS) Shirley Morales, que encabeçou o processo de discussão da política na Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar do maior fórum de controle social do SUS, outro item da proposta que causa preocupação é o protagonismo que ela confere ao Conselho Nacional de Saúde Suplementar, o Consu, a quem cabia a regulação do setor privado de saúde antes da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O Consu foi reativado em 2018 durante o governo Michel Temer, medida que à época foi vista como uma tentativa do governo se sobrepor às decisões da agência.

O artigo 5º da proposta da PNSS-Covid-19 fala que as ações da nova política, após sua aprovação, serão “elaboradas e apresentadas ao Consu” pela ANS, colocando claramente a agência em uma posição hierarquicamente inferior ao Consu, instância consultiva formada por representantes de vários ministérios e indicados pelo governo federal. “É mais uma forma de tirar a autonomia da agência como a reguladora desse processo”, critica Morales.

A consulta pública sobre a PNSS-Covid-19 foi ao ar apenas três dias após a reunião do Consu que ganhou as manchetes dos jornais por conta de declarações polêmicas dos ministros da Economia Paulo Guedes e da Casa Civil Luiz Eduardo Ramos. Uma semana após a reunião, que contou com a participação do diretor-presidente Substituto da ANS, Rogério Scarabel, a Associação dos Servidores e Demais Trabalhadores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (Assetans) enviou ofício à presidência da agência, questionando o que chamou de “controvérsias” sobre o papel e atuação da ANS “na elaboração da minuta em consulta e também na própria ação em si, descaracterizando o que poderia ser um momento de articulação, ouvidos grupos técnicos de servidores e demais entidades e pessoas representativas da sociedade civil, num movimento mais do que necessário de integração entre os setores público e privado de saúde”.

Segundo Shirley Morales a comissão do CNS elaborou uma recomendação para que o texto da política seja rejeitado na íntegra. “Nosso encaminhamento é que seja feita uma denúncia formal juntos aos ministérios públicos e à CPI da Covid. Nós compreendemos que esse é mais um passo do desmonte do SUS”, diz a conselheira, acrescentando que a recomendação encontra-se em análise pela mesa diretora do conselho.

“O prazo dado para consulta, de 30 de abril a 18 de maio, é desarrazoado para que haja algum debate sobre essa política, que inclusive entendemos como algo incoerente. As políticas nacionais de saúde têm status duradouro, não faz sentido uma política nacional apenas para o enfrentamento de uma pandemia. Isso nos preocupa, porque não há nada que justifique você criar uma outra forma de legislação, já que hoje nós temos uma lei, que é a 9.656 de 1998, que já dispõe sobre os planos de saúde”, pontua Shirley Morales.

A reportagem do Portal EPSJV solicitou à FenaSaúde um posicionamento sobre a PNSS-Covid-19. Via assessoria de comunicação, a federação respondeu que o tema ainda está em avaliação e não há posição oficial sobre a proposta.

A reportagem também entrou em contato com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) – que integram a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), que deve debater a proposta da nova política caso ela seja apresentada pelo Ministério da Saúde – para um posicionamento oficial.

Via assessoria, o Conasems respondeu que não conseguiria atender à solicitação no prazo dado para o fechamento desta matéria por falta de agenda da presidência do conselho. O Conass não respondeu à solicitação.

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