Cadê os historiadores do Amazonas? Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Enfim, chegou o dia D, a hora H: quarta-feira (19), na CPI da Pandemia, o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, por decisão do STF, vai calar sobre si mesmo, mas não sobre terceiros. O que dirá sobre as mortes de pessoas asfixiadas nos hospitais? Se for depor desmascarado, como no Manaus Shopping, será que vai tirar o loló da seringa, literalmente, e atribuir a política de “imunidade de rebanho”, a falta de vacinas e de oxigênio ao governador do Amazonas Wilson Lima (PSC, vixe-vixe)? Se comparecer mascarado, pautará suas palavras no princípio “é simples assim, um manda, o outro obedece”?

Esse início pode sugerir erroneamente que conversaremos aqui sobre o general fujão, o rei do cangaço, que já é um personagem da História como o foi Incitatus no Senado Romano. No entanto, preferimos comentar eventos ocorridos nessa semana em duas universidades da Amazônia: a defesa de tese de doutorado sobre Língua Geral e Cabanagem na Universidade Federal do Pará, a comemoração dos 40 anos do curso de História na Universidade Federal do Amazonas e o anúncio do livro “Historiografia amazonense em perspectiva”, cujo prefácio escrito por este locutor que vos fala vai aqui resumido.

Sementes de historiador

– Não tem historiadores no Amazonas?

Esta pergunta foi feita pela historiadora Maria Yedda Linhares no retorno do seu exílio na França, em 1977, quando aceitou convite da Fundação Getúlio Vargas (FGV) para dirigir o Programa de História da Agricultura Brasileira. Lá, promoveu pesquisas inovadoras de história agrária, das quais fazia parte o Projeto de Levantamento de Fontes para a História da Agricultura do Norte-Nordeste (PLEFANN), que contou com equipe de mais de 100 jovens pesquisadores. Para coordenar o projeto no Amazonas, ela convidou este seu ex-aluno de História Contemporânea da UFRJ, a quem dirigiu a pergunta acima.  

A indagação da dona Yedda – como era carinhosamente chamada por seus discípulos – aconteceu ao ser ela surpreendida com a informação de que, ao contrário dos outros estados do Brasil, não era possível formar uma equipe local com alunos de História, que então inexistia no Amazonas. Era preciso recorrer a outros cursos, entre os quais o de Comunicação Social do qual eu era professor e o curso de licenciatura curta de Estudos Sociais, essa excrecência criada pela ditadura precursora da “escola sem partido”.

A pesquisa foi feita. Mas de lá para cá, muita água correu sob a ponte do igarapé de Manaus. 

Criado em 1981, o curso de graduação em História começou a plantar sementes de historiadores, adubadas pelas disciplinas ministradas por professores do curso e pela Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia (CEDEAM) da Universidade do Amazonas, coordenada inicialmente por Samuel Benchimol e depois por João Renôr de Carvalho, que trouxe de arquivos portugueses cópias de documentos de interesse para a história regional, hoje fazendo parte do acervo do Museu Amazônico.

Balanço da historiografia

Alunos das primeiras turmas de História participaram de várias publicações, Uma delas foi a edição mimeografada de três números dos Cadernos de Etnohistória lançados no curso de Atualização em História do Amazonas (1986) durante a I Semana de História aberta pelo reitor Roberto Vieira na presença de todos os pró-reitores. Com o apoio da professora Regina Celestino, foram traduzidos artigos da revista Etnohistory, entre eles “O que é Etnohistória” de Bernard S. Cohn e “Etnohistória: problemas e perspectivas” de Bruce G. Trigger, além do artigo de Jan Vansina sobre tradição oral.  

No ano seguinte, alguns alunos e este professor transferido para o Departamento de História, publicaram o  livro paradidático “Amazônia no Período Colonial (1616-1798)”, que teve oito edições, a primeira delas em 1987.  No mesmo ano, foi publicada a primeira edição do catálogo “Cem anos de imprensa no Amazonas” ((a 1ª edição bancada pelo Batará do Diário do Amazonas e a 2ª edição por Humberto Calderaro 1990). Foi o fruto do trabalho de alunos da disciplina História da Cultura e dos Meios de Comunicação do Curso de Jornalismo e alunos de graduação de História.

Formadas as primeiras turmas de graduação, foram organizados cursos de especialização: Demografia Amazônica (1986), História da Amazônia Brasileira e Peruana (1987) e História Social da Amazônia (1997). As sementes de historiadores se transformaram em árvores frondosas e bem enraizadas, depois que os graduandos das primeiras turmas se titularam em universidades de São Paulo e Rio e já como professores doutores criaram o Programa de Pós-Graduação em História da UFAM, que iniciou com o Mestrado (2006) seguido do doutorado (2018).      

As árvores frondosas se espalharam e formaram um bosque. No mestrado de História já foram defendidas cerca de 150 dissertações sobre os mais variados temas e enfoques, algumas de extraordinária qualidade. Hoje, já não existe mais aquela bibliografia de “pobreza franciscana” assinalada por Arthur Reis, que imperava soberano e único neste terreno. Houve uma renovação da história regional.

Revelaram ou rebelaram?

A afirmação acima pode ser constatada no livro “A historiografia amazonense em perspectiva” organizado por César Queirós, com 14 autores e 13 capítulos, que passaram um pente fino na produção existente, reconhecendo a contribuição dos que vieram antes, mas exercendo a indispensável e rigorosa crítica para o conhecimento poder avançar.

Há críticas bem fundamentadas ao maior historiador da Amazônia até então, Arthur Reis (1906-1993), reconhecendo que ele foi um desbravador de arquivos e autor de muitos livros, entre outros “A Amazônia que os portugueses revelaram, no qual os índios aparecem como “selvagens”, “bugres”, “silvícolas” e ficam de fora da matriz formadora da identidade regional. Desta forma, A. Reis, lusófilo incondicional, despreza a Amazônia que os portugueses ocultaram. Agora se trata de focar aquela Amazônia que os portugueses  rebelaram,  rompendo o silêncio sobre a resistência e as lutas indígenas ausentes dos livros didáticos.

O livro, que já está no prelo, aborda os temas mais diversos: mulheres, movimento operário, seringueiros e seringalistas, negros, índios e indigenismo, imprensa, ditadura militar, os excluídos e as minorias, as memórias subterrâneas, reflexões sobre as fontes escritas e orais, com a consciência das diferenças entre as memória oral em sociedades letradas e a memória oral em sociedades sem escrita alfabética.

Só não afirmo que a leitura desse livro é obrigatória para todos os professores de história interessados na Amazônia, porque a alma anárquica que me habita se rebela com o termo “obrigatório”. Mas sem dúvida, sua leitura prazerosa, é imprescindível.

Qual a resposta que daríamos hoje à pergunta de Maria Yedda Linhares? Não tem historiadores no Amazonas? Tem sim, dona Yedda, agora tem. Vários deles participaram nas mesas-redondas realizadas nessa semana. Outros estão aqui no livro a “A historiografia amazonense em perspectiva”. São eles que vão mergulhar na documentação, inclusive da CPI, e acertar as contas com o general fujão. 

P.S. Enquanto no Amazonas se celebrava os 40 anos do Curso de História, no Pará, Welton Diego Lavareda defendia no dia 12 de maio, a tese “O governo da língua na Cabanagem: (des) encontros coloniais na Amazônia”, aprovada com indicação para publicação e para concorrer aos prêmios Benedito Nunes (UFPA) e Capes. A pesquisa é fruto de quatro anos de investigação e reflexões sobre as tecnologias de poder empregadas pelo dispositivo colonial durante o período da Cabanagem e suas estratégias de apagamento das línguas indígenas na região.

A banca examinadora foi formada por Ivânia dos Santos Neves (orientadora. PPGL- UFPA); Rosário Gregolin (Unesp – Araraquara); José R. Bessa Freire (UERJ-UNIRIO); Aldrin Figueiredo (PPGHIST-UFPA) e Isabel Rodrigues (PPGL-UFPA). A defesa completa está no ar no Youtube:

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