Comparam a vida de meu marido a de um cachorro, diz viúva de homem negro morto no Carrefour

Caso de João Alberto Freitas, assassinado por dois seguranças do mercado, completa seis meses; empresa afirma que esposa pede indenização “não razoável”

Por Rute Pina, em Agência Pública

A cuidadora de idosos Milena Borges Alves, de 43 anos, teve que mudar de bairro em Porto Alegre (RS) para nunca mais passar na frente daquele supermercado Carrefour. Foi ali que, no ano passado, às vésperas do Dia da Consciência Negra do ano passado, seu marido, João Alberto de Freitas, 40 anos, foi espancado e morto por dois seguranças da rede multinacional de varejo.  O caso completa seis meses na próxima quarta-feira, 19 de maio.

“Tudo que o que a gente faz lembra ele, a cena que vem na cabeça [da agressão] é muito forte”, diz a viúva. O casal estava junto há nove anos e planejava oficializar o casamento em cartório em dezembro de 2020. Beto, como era conhecido, tinha quatro filhos de relacionamentos anteriores, com idades entre 9 e 22 anos, e uma enteada.

No início do mês passado, o Carrefour informou, em nota, que finalizou acordos para ressarcimento da maior parte dos familiares — os quatro filhos, o pai, a irmã, a enteada e a neta. Só Milena não aceitou o valor proposto.  A empresa afirmou que a viúva do cliente assassinado na loja pede indenização “não razoável” e que a quantia é a soma do patamar máximo por danos morais fixado pelo Supremo Tribunal de Justiça para casos como este. 

“Nada vai trazer a vida dele de volta, né? Eu acho que o valor que está sendo pedido é nada mais justo do que fizeram com ele. Apesar que nada vai confortar uma dor que vai ser para vida toda”, lamenta Milena, que estava com o marido no dia do espancamento que o matou. 

Naquele dia, que não sai da memória de Milena, Beto foi agarrado pelos seguranças e agredido com chutes e socos que continuaram mesmo depois que ele estava caído no chão. Apesar da intervenção de várias testemunhas e de Milena, os dois seguranças continuaram a surrá-lo, enquanto uma fiscal e outros funcionários do Carrefour intimidavam as testemunhas e impediam o socorro, que só veio quando ele já estava morto.

O momento em que Beto é asfixiado pelos seguranças foi filmado por um entregador que estava no local; e a brutalidade registrada no vídeo chocou a população. Dezenas de protestos foram organizados pelo movimento negro em todo o país, sob o lema “Vidas Negras Importam”. Manifestantes também organizaram boicotes à rede de supermercados. Uma filial do Carrefour chegou a ser incendiada na cidade de São Paulo.

No dia 28 de abril passado, a rede varejista depositou deliberadamente, mesmo sem a finalização do acordo, R$ 1 milhão em uma conta criada com a finalidade de consignação extrajudicial, na tentativa de encerrar as negociações. Além disso, doou R$ 100 mil à esposa de Beto, que negou novamente o acordo.

“Dá a sensação que eles querem comparar a vida do meu marido com a vida de um cachorro”, disse a cuidadora de idosos, que conversou com a Agência Pública por vídeo-chamada.

Ela se refere ao caso de Manchinha, cachorro morto em 2018 após ser espancado por seguranças em uma loja do Carrefour em Osasco, cidade da região metropolitana de São Paulo. Esse foi o mesmo valor (1 milhão de reais) que o Ministério Público estadual (MP-SP) e a prefeitura do município estipularam para o supermercado depositar em um fundo para cuidado de animais criado pelo município.

O advogado Hamilton Ribeiro, que representa Milena, também questiona o valor estimado pelo Carrefour e compara o montante com a indenização estipulada à família do americano George Floyd, caso que ocorreu em Minneapolis, nos EUA, em maio de 2020 e virou símbolo da brutalidade da violência contra a população negra. A família de Floyd vai receber 27 milhões de dólares, o que equivale a mais de R$ 143 milhões.

Por aqui, a ação penal sobre o assassinato ainda não tem previsão para julgamento. Em dezembro do ano passado, seis pessoas foram indiciadas, e os dois seguranças envolvidos diretamente na morte de Beto estão presos preventivamente desde o ocorrido, acusados por homicídio triplamente qualificado. A fiscal do Carrefour que protegeu os agressores recebeu prisão domiciliar. Os outros funcionários da loja e outro segurança, que atuava na empresa terceirizada Vector, respondem ao crime em liberdade.

Com 721 lojas no país, o Grupo Carrefour Brasil, marca de uma das maiores redes varejistas do mundo, dobrou seu lucro no ano passado. Segundo balanço da empresa, o lucro líquido saltou de R$ 1,3 bilhão, em 2019, para R$ 2,8 bilhões no ano passado. 

Na rede aberta de TV, a empresa veicula uma série de propagandas para divulgar ações tomadas pela companhia contra discriminação, o que Milena questiona. “Estão tentando amenizar o que aconteceu”, avalia. “Por que eles não fizeram isso antes? De repente não teria acontecido nada do que aconteceu”, desabafou a viúva à Pública. 

Confira a íntegra da entrevista.

A família já está há seis meses buscando indenização do Carrefour. Como você avalia a postura da empresa nas negociações?

Eu achei até meio pouco ridículo da parte deles ter me oferecido um valor que pagaram quando mataram um cachorro lá em Osasco. Na verdade, a vida de um ser humano, não tem preço, né? Dá a sensação que eles querem comparar a vida do meu marido com a vida de um cachorro. Não que a vida do cachorro não tenha um valor, entendeu? Mas eu achei bem complicada essa parte. Então, acho que vamos ter que seguir com o processo.

O Carrefour divulgou a informação que depositaram R$ 1 milhão como indenização do caso e mais R$ 100 mil em doação à família e acusou seus advogados de estarem prevaricando contra vocês, ao pedir valor maior de indenização. Essa decisão de seguir com as negociações foi da família?

Sim, nós não aceitamos. Não foi comunicado nada, eles chegaram lá, abriram uma conta, depositaram. Não é assim que funciona as coisas, entendeu? Fizeram o que eles achavam que era para fazer.

A empresa disse também que a família pede uma indenização “não razoável”. O que vocês acham disso?

Eu acho que nada vai trazer a vida dele [o Beto] de volta, né? Eu acho que o valor que está sendo pedido é nada mais justo do que fizeram com ele. Apesar que nada vai confortar uma dor que vai ser para vida toda. Tudo que o que a gente faz lembra ele, a cena [da agressão] é muito forte que vem na cabeça, entendeu? Nada vai justificar, não tem preço que pague. Na verdade, não vai ter preço que pague o que aconteceu ali dentro do Carrefour.

Depois daquele dia, nunca mais entrei ali. Nunca mais. Eu chegava a gastar lá por semana acho que R$ 500, mais ou menos. De onde eu morava, era o mercado mais próximo, agora estou morando com minha mãe. Mas eu não andava nem 3 minutos, era muito perto. E hoje eu não tenho coragem nem de passar pela frente, de entrar ali. Não tem explicação.

E o Carrefour está veiculando propagandas na TV para divulgar medidas que eles têm feito no combate à discriminação. Você chegou a ver? 

Na verdade, eu não vejo mais TV. É muito difícil. Mas eu acho que eles estão tentando amenizar o que aconteceu, entendeu? Por que eles não fizeram isso antes? De repente não teria acontecido nada do que aconteceu: ir ao mercado comprar umas coisas para fazer janta e acontecer tudo aquilo ali. Não tem explicação, não tem cabimento o que aconteceu ali. Pessoas despreparadas, destreinadas. Nada vai justificar. Nada, nada, nada, nada.

Recentemente, nos EUA, tivemos o julgamento dos policiais envolvidos no assassinato de George Floyd. O que achou da condenação? Você acredita que essa condenação possa influenciar decisões em outros países, como no Brasil, em casos de violência policial e racismo?

Eu acho, assim, igual ao que aconteceu aqui, nada justifica. Eles vão compartilhar a lei dos homens, né? E depois vai ter a lei de Deus, né? Eu acredito muito nisso. Aquela Adriana Dutra [segurança do Carrefour], ela tinha o poder de mandar parar o que estava acontecendo. E ela não fez isso, entendeu? A princípio não teve nenhuma conduta dele [do Beto] que levasse a ser feito esse tipo de coisa, não teve. E como é que eu vou te explicar? Lá nos EUA a lei é uma, aqui é outra. Em termos de valores assim, eu não sei.

E com relação à punição dos seguranças privados envolvidos no caso, houve algum avanço?

Eu não soube nada, não sei porque não escuto rádio, não vejo muita TV.

Após o que aconteceu com o Beto, o Movimento Negro atuou muito no caso, desde seu início, inclusive propondo boicotes ao Carrefour. Você chegou a se aproximar do  movimento e das discussões sobre racismo?

Eu fui a algumas passeatas, depois eu não tive condição emocional, psicológica para ir nas outras. Mas cheguei a ir a algumas passeatas.  E fiquei mais reservada, não tenho muita condição. Me abala muito o que aconteceu, eu nunca esperava, sabe? Nunca. Não tem explicação.

E sobre você, você tem feito acompanhamento psicológico para atravessar tudo isso? Tem recebido apoio?

Eu estou fazendo tratamento tanto psiquiátrico como vendo um terapeuta. E apoio é mais da minha família.

O que você gostaria de falar para as pessoas que acompanharam o caso?

Falaram muita coisa que não existe, inventaram muita coisa. Os advogados são pessoas maravilhosas. Falaram que a assistente social iria entrar em contato porque falaram que eles iriam deixar o caso. Nada disso ocorreu.

E as fake news também eram sobre o Beto?

Sim, inventaram muitas coisas, que ele me agrediu coisas, inventaram que ele era amante do caixa, que ele me batia todos os dias. Isso nada existe. Não tem, não tem nada disso. Muita coisa que eu soube pelos outros, os irmãos comentavam comigo. Mas não correu nada aqui, não tinha nada disso.

E como é para você ouvir essas fake news?

Eu deleto isso, prefiro não ouvir, falo para minha família não comentar comigo, porque não vale a pena, né? Não vale meu tempo.

Manifestante em ato contra o Carrefour após o assassinato de João Alberto (Mídia Ninja)

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