Como foi de fato a visita de Jair Bolsonaro à terra dos Yanomami?

Teatro previamente ensaiado e encenado por presidente não narra a verdade sobre os fatos 

por Martha Raquel, em Brasil de Fato

A primeira visita de Jair Bolsonaro a uma Terra Indígena foi marcada por preparo prévio de seus assessores, falta de diálogo com a comunidade, lideranças trazidas de outros estados e clima teatral. 

As fotos de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, divulgadas pelo Planalto mostram um grupo de indígenas felizes com a presença do presidente e um ambiente de comemoração com a inauguração da Ponte Rodrigo e Cibele, de 18 metros de comprimento por sete de largura. A ponte de madeira é um acesso da BR-307 que cruza a Terra Indígena Yanomami (TIY) e liga o município à comunidades indígenas em Maturacá. 

Tamanha era a desinformação e o desinteresse pela diversidade da etnicidade dos povos originários brasileiros, que Jair Bolsonaro inventou um novo povo que nunca existiu no Brasil e nem em nenhum outro lugar do mundo, o “Povo Balaio”. 

A ponte inaugurada fica na TI Balaio, morada de indígenas de diversas etnias, mas Bolsonaro não se atentou as especificidades da região multiétnica e resumiu tudo como se todos os indígenas da localidade integrassem o “Povo Balaio”, uma atitude considerada desrespeitosa pelas lideranças. 

Com o teatro armado, o constrangimento era grande. Mesmo o Brasil já tendo registrado quase 55 mil casos de contaminação por coronavírus em indígenas, resultando em 1.092 mortes e 163 povos atingidos, Jair Bolsonaro chegou ao local e ficou boa parte do tempo sem máscara. Nos últimos dias o presidente esteve em várias cidades, estados, em aglomerações e manifestações. 

Estava presente, ao lado de Bolsonaro e aplaudindo a situação, Álvaro Tukano, indígena que deixou a Terra do Balaio para viver em Brasília (DF), além de apoiar a mineração do Alto do Rio Negro. Como ele, outros líderes autoproclamados se enfileiravam ao lado do presidente. 

A inauguração gerou receio e medo na região, já que os indígenas temem que a ponte possa facilitar a chegada de garimpeiros ilegais e mineradoras na TI.

A agenda do presidente foi mantida em sigilo e apenas poucas horas antes da visita, um carro de som passou pelas ruas convocando a população para a cerimônia. 

O prefeito não foi envolvido no evento, nem o Bispo da diocese local. O presidente também não esteve na Câmara Municipal, nem visitou a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), protocolos seguidos por presidentes anteriores que estiveram na região, como Lula e Fernando Henrique Cardoso.  

Encontro fora da comunidade

A segunda agenda de Bolsonaro aconteceu no 5º Pelotão de Fronteira do Exército que fica dentro da Terra Indígena Yanomami, região da Comunidade Maturacá, mas não próximo às casas dos povos originários. 

Convidados, os indígenas se dirigiram até o pelotão. Com máscaras de proteção e lanças nas mãos, leram uma carta de reivindicações para o presidente. Dois caciques falaram, mas com tempo contato: dez minutos. As lideranças não haviam sido avisadas e nem incluídas na agenda do presidente. A carta foi entregue ao presidente após a leitura.

As fotos de Valdemar Lins Yanomami mostram a organização dos indígenas, a posição diante do presidente e o recado de resistência.

Em seguida, Jair Bolsonaro disse que respeita a decisão dos indígenas contra o garimpo na região, mas frisou que trabalha para aprovar a mineração em terras indígenas porque, segundo ele, essa é uma demanda “dos índios”.

“Tem outros irmãos índios, em outros locais, dentro e fora da Amazônia, que desejam minerar terra, que desejam cultivar terra, e nós vamos respeitar esse direito deles”, disse. 

Ignorando a realidade brasileira do garimpo ilegal e as tentativas de regulamentação por parte dos governos federal e estaduais, Jair Bolsonaro disse que “jamais aprovaríamos uma lei para ser obrigados que a terra fosse explorada por quem quer que seja. Isso não acontecerá. O projeto que está lá, é a etnia que quiser explorar, explora, quem não desejar não será explorado”. 

A região do Pico da Neblina não sofre hoje com o garimpo, mas a demanda dos indígenas tem caráter de prevenção, uma vez que a realidade em outras áreas da Terra Indígena Yanomami é bem diferente. Em Roraima, por exemplo, a Comunidade Palimiu vêm sendo atacada sistematicamente por garimpeiros armados com metralhadoras e bombas. 

Palanque para 2022

A Foirn representa 92 associações de base nos municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste Amazônico, região também conhecida como Cabeça do Cachorro, e divulgou na noite de ontem uma nota sobre a visita de Bolsonaro; 

“Nós, 23 povos indígenas do Rio Negro,  deixamos pública a nossa profunda insatisfação com a conduta do presidente da República, Jair Bolsonaro, em sua visita ao município de São Gabriel da Cachoeira”, diz o documento. 

“Mesmo a Foirn sendo a instituição que há mais de três décadas trabalha em prol de políticas públicas para os povos da região, não fomos incluídos na agenda e sequer convidados para qualquer diálogo com o presidente da República a respeito destes planos de gestão e outros temas de nosso interesse”, ressaltam. 

“O líder máximo do Brasil, contudo, preferiu uma agenda feita ‘às escondidas’, na qual ele e seus assessores se deram ao trabalho de ‘preparar palanque’ para fotos e vídeos de sua campanha eleitoral para 2022”, denunciam. 

“Ao invés de convidar as lideranças e instituições reconhecidas e comprometidas com o coletivo, privilegiou uma agenda com líderes autoproclamados, como ocorreu na Terra Indígena do Balaio, para mais uma vez produzir fake news e narrativas grotescas sobre nosso povo e nossa cultura”.No documento, a Federação ressalta a irresponsabilidade de Bolsonaro. 

“Em sua live semanal, gravada na última quinta-feira (27) no Pelotão de Fronteira de Maturacá, o presidente comparou a medicina tradicional indígena com o kit Covid, tentando ridicularizar a CPI do Senado, que investiga as denúncias de prescrição de remédios sem eficácia, como a cloroquina. Mais uma vez, Bolsonaro demonstra apreço em confundir a opinião pública para se livrar de acusações graves em relação à condução da gestão da pandemia de Covid-19, que já matou mais de 450 mil brasileiros”. 

“O desprezo por nosso povo indígena é tanto que o presidente sequer se deu o trabalho de conhecer nossa diversidade, criando ao seu bel-prazer uma nova etnia, a do povo Balaio, que não existe no Brasil e em nenhum lugar do mundo. Seu ato de simplificar e generalizar não condiz com sua posição de presidente da República”. 

Marivelton Barroso, do povo Baré, presidente da Foirn, pontua que o comportamento do presidente despreza o povo brasileiro.

“Bolsonaro mais uma vez ignora os problemas e humilha o povo brasileiro. O presidente não encontrou com as instituições que mais ajudaram a combater a pandemia de Covid-19 aqui na região e sequer fez menção ao combate ao garimpo ilegal, narcotráfico e outros assuntos graves que assolam as terras indígenas aqui na região da tríplice fronteira com a Venezuela e Colômbia”.

Edição: Daniel Lamir

Chefes Yanomami aguardando a chegada de Bolsonaro no Pelotão de Fronteira de Maturacá – Valdemar Lins Yanomami

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