Cloroquina: a cortina de fumaça do governo na CPI

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

SEMPRE CORTINA DE FUMAÇA

A participação de Nise Yamaguchi e o depoimento de Mayra Pinheiro na CPI da Pandemia tornaram mais visíveis as dificuldades de se enquadrar racionalmente – ou objetivamente, como diria o relator da comissão – o bolsonarismo. Se por um lado, as médicas passaram vergonha seja não distinguindo um protozoário de um vírus, seja confundindo a logomarca da Fiocruz com um pênis, por outro fica a impressão de que conseguiram o que se temia: fazer da cloroquina uma grande cortina de fumaça para os crimes do governo Jair Bolsonaro. 

Para isso, emulam um tom técnico para afirmar que a comunidade científica está dividida – até hoje – em torno da eficácia da droga para o tratamento da covid-19, o que não é verdade. Se houve dúvidas, elas não existem mais tem um bom tempo. Mas a tática transforma a CPI em um show de prestidigitação em que médicas com “voz calma”, como disse Omar Aziz (PSD-AM) ontem, são auxiliadas por governistas mais ou menos delirantes e empurram, por vezes, a oposição para interrogatórios surreais. 

“O governo e a oposição têm ficado entretidos num debate que sequer faz sentido do ponto de vista da ciência, numa armadilha argumentativa cujos caminhos tentados até agora obtiveram pouco sucesso. Isso tudo alimenta a desinformação”, notam Leonardo Barchini e Pedro Bruzzi, que analisaram o Twitter e constataram que a “ressurreição dessa tese curandeira” nos postos do Brasil, especialmente a partir de maio, quando começaram os depoimentos da CPI. Em 2021, os brasileiros detém nada menos do que 81% das publicações sobre a droga no Twitter em todo o mundo. 

Tanto Yamaguchiquanto Pinheiro tentaram, como identificou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-ES), tentar transformar seu depoimento em uma “palestra científica”. “Não estamos falando de autonomia do médico no trato de um paciente”, notou ele, continuando: “Estamos falando sobre políticas públicas executadas sem base científica concreta. E já são 462.966 mortos.”

O DOCUMENTO

Apesar do esperado uso político da CPI por todos os envolvidos, a cada depoimento surgem mais peças para montar o quebra-cabeça do que motivou (e motiva) o governo federal a estimular a livre circulação de pessoas e vírus. 

Ontem, Nise Yamaguchi deu sua versão dos fatos que cercaram a agenda no Palácio do Planalto no dia 6 de abril de 2020, que já havia sido citada por Luiz Henrique Mandetta e Antonio Barra Torres (Anvisa). Agora sabemos que numa primeira parte do dia, houve reunião de Bolsonaro com Yamaguchi, Osmar Terra e outro cloroquiner, o tenente-médico Luciano Dias Azevedo. Nesse encontro, segundo Barra Torres, teria sido discutido uma minuta de decreto para mudar a bula da cloroquina, incluindo previsão do tratamento da covid-19. 

Os senadores conseguiram arrancar de Yamaguchi a explicação de que foram debatidas duas coisas diferentes. A minuta de decreto – que seria para disponibilizar o kit-covid no SUS – e os caminhos para mudar a bula da cloroquina. 

Segundo ela, a minuta chegou a seu conhecimento por mensagem enviada ao seu celular por Luciano Dias Azevedo. A médica procurou um cartório para buscar registrar a autenticidade das mensagens recebidas no último 13 de maio – dois dias depois do depoimento do presidente da Anvisa. E entregou o documento aos senadores.  

Nas mensagens, trocadas no mesmo dia da agenda no Planalto, os dois discutem a minuta de um decreto em que o presidente da República manda “disponibilizar” cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina “a toda rede de saúde”. Depois de receber o texto, Yamaguchi responde: “Oi Luciano, este decreto não pode ser feito assim, porque não é assim que regulamenta a pesquisa clínica. Tem normas próprias. Exporia muito o presidente”. 

Mas na CPI, ela afirmou que houve o debate sobre a resolução editada em 17 de março de 2020 pela diretoria colegiada da Anvisa que trata de mudanças pós-registro de medicamentos durante a pandemia, ou seja, de alterações na bula.

Resumo da ópera: dois médicos sem cargo no governo federal eram influentes a ponto de liderar discussões sobre políticas assistenciais e regulatórias. Escreviam ou pelo menos opinavam em minutas de decreto. 

MENTIRAS E INVENÇÕES

Além de não responder as já esperadas perguntas do senador Otto Alencar (PSD-BA) sobre a qual classe de coronavírus o SARS-CoV-2 pertence (o treinamento dos governistas já deveria ter dado conta desse script a essa altura do campeonato), Nise Yamaguchi passou várias vergonhas ontem. 

Questionada na CPI, afirmou que não se vacina por ser portadora de Síndrome de Raynaud, uma doença autoimune que causa vasculites. Não demorou muito para que as sociedades brasileiras de Reumatologia (SBR) e Imunização (SBIn) afirmassem que é o contrário: não só a condição não impede o recebimento da vacina, como o mais indicado é tomá-la. 

Outro momento constrangedor se deu quando a médica citou um estudo realizado pela Fundação Henry Ford como exemplo de pesquisas científicas realizadas que sustentassem o uso da cloroquina no tratamento da covid-19. Coube ao senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) informá-la de que o estudo havia sido descontinuado em dezembro de 2020 por falta de evidências suficientes. “Essa informação eu não tinha”, admitiu Yamaguchi.

Ela também foi confrontada com uma entrevista sua à TV Brasil, concedida em julho de 2020, quando afirmou que, por aqui, a imunidade de rebanho seria atingida “sem muitos traumas”. Quatrocentas mil mortes depois, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) perguntou para a médica se ela mantinha a posição. “Nós tínhamos uma realidade diferente”, justificou-se, argumentando que ninguém imaginava que o vírus poderia… sofrer mutações. “Nós imaginávamos que uma segunda onda e uma terceira onda viriam com os mesmos vírus. Se viessem com os mesmos vírus, nós teríamos, sim, uma imunidade. Então, para aquele momento, a discussão era pertinente.”

PRESENTE 

O general Eduardo Pazuello ganhou um novo cargo: foi nomeado por Jair Bolsonaro como titular da Secretaria Especial de Estudos Estratégicos da Presidência da República. Terá um salário de R$ 16.944,90. Ele estava até agora como adido na Secretaria-Geral do Exército, um órgão burocrático, à espera de uma nova posição militar; acabou voltando ao governo mais uma vez em um cargo civil.

TEREMOS CIRCO

Apesar do absurdo, o governo federal confirmou que o Brasil vai receber a Copa América, que começa já no próximo dia 13. Os governadores do Distrito Federal, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Goiás aceitaram receber os jogos, apesar de estarem todos com mais de 80% de suas vagas de UTI para covid-19 ocupadas: no Mato Grosso a taxa é de 95%; no Rio, 94%; em Goiás são 89,8%; e, no DF, 87,2%.

São Paulo quase entrou no grupo. O governador João Doria, chegou a dizer que o estado poderia participar “obedecendo todos os protocolos rigorosamente”: “Temos em São Paulo, autorizados pelo governo, os campeonatos estaduais, sul-americano e torneios para os mais jovens. Temos a Copa do Brasil e o Brasileirão. Se tivermos discurso coerente, temos de parar o futebol em São Paulo, então. Todos os torneios têm de parar”, declarou. Horas depois, voltou atrás. Os cientistas do Comitê de Contingência do estado o informaram de que a decisão “representaria uma má sinalização de arrefecimento no controle de transmissão do coronavírus”.

O presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, agradeceu ao presidente Bolsonaro pela “eficiência na tomada de decisões” e garantiu “toda a segurança possível”. Não haverá público, mas, como dissemos ontem, são equipes de nove seleções estrangeiras se deslocando pelas cidades por no mínimo duas semanas. 

Até Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara eleito com o apoio de Bolsonaro, criticou o evento. “Não é uma competição de extrema necessidade para o futebol mundial, poderia ter sido adiada para o fim do ano ou começo do ano que vem”, disse. Não seria a primeira vez: há um século, o Brasil adiou o mesmo campeonato porque milhares morriam com a gripe espanhola. Até nisso regredimos. 

O ministro do STF Ricardo Lewandowski pediu esclarecimentos à Presidência da República sobre a decisão. O Palácio do Planalto tem cinco dias para responder.

APROVADA NA OMS

A OMS aprovou ontem o uso emergencial da CoronaVac, que agora vai poder fazer parte da Covax Facility. Espera-se que a oferta dê novo gás ao consórcio, que está distribuindo menos vacinas do que o necessário para países de baixa e média renda. 

Esse é o segundo imunizante chinês a entrar na lista da organização (o primeiro foi o da Sinopharm), e a expectativa é a de que o país se torne o maior fornecedor mundial de vacinas contra a covid-19, com uma produção de 3,3 bilhões de doses. Em seguida viriam os Estados Unidos (1,9 bilhão) e a Índia (1,7 bilhão). A projeção é da consultoria Airfinity. 

A recomendação da OMS é para que a CoronaVac seja usada em adultos acima de 18 anos em geral – a entidade afirmou que não há dados suficientes nos ensaios para se avaliar a eficácia em idosos, mas que decidiu não estabelecer um teto na idade do público-alvo pois os dados dos países que já aplicam a vacina sugerem haver proteção. Para verificar o real impacto, a OMS pede que os países monitorem a eficácia e segurança em pessoas acima de 60 anos.

COMEÇA ESTE MÊS

A Fiocruz assinou ontem o contrato de transferência de tecnologia com a AstraZeneca para produzir no Brasil o ingrediente farmacêutico ativo da vacina. O documento ainda não foi disponibilizado.

Segundo a instituição, a produção deve começar ainda em junho mas, antes de se chegar à larga escala, é preciso fazer uma produção inicial de dois lotes de pré-validação e três de validação, que precisarão ser testados. Também será preciso submeter à Anvisa as documentações necessárias para solicitar a alteração no registro da vacina, incluindo o novo local de fabricação do IFA. Só com isso o produto poderá ser distribuído.

A expectativa é a de entregar as primeiras doses 100% nacionais em outubro, e de que haja capacidade de produção de 15 milhões de doses por mês.

LOBBY PESADO

Nos dias 7 e 8 de junho, os eurodeputados decidirão a posição do Parlamento Europeu sobre a proposta de suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual para vacinas e medicamentos da covid-19. A ideia, como você bem sabe, foi apresentada pela África do Sul e pela Índia em outubro de 2020, mas ganhou um grande impulso no mês passado, quando o presidente dos EUA, Joe Biden, passou a apoiá-la. Essa votação vai definir a posição que a Comissão Europeia vai levar à Organização Mundial do Comércio, que debate o assunto novamente nos dias 9 e 10 de junho.

Por tudo isso, junho deve ser um mês frenético para o lobby da Big Pharma na tentativa de mobilizar os eurodeputados a fincarem pé na defesa das patentes. 

Para se ter uma ideia do que isso significa, só na União Europeia o Corporate Europe Observatory estima gastos anuais com lobby na casa dos R$ 200 milhões por ano. Com base nas atualizações anuais de divulgação de lobby enviadas ao Registro de Transparência da UE, já dá para ver que a EFPIA, o principal grupo de lobby da Big Pharma na Europa, aumentou seus gastos em cerca de 20% de 2019 para 2020.

Com esse debate esquentando, Luciana Lopes e Matheus Falcão explicam no Outra Saúde porque tão importante quando a flexibilização das patentes é a discussão de um mecanismo que obrigue as empresas a transferirem tecnologia para acelerar a produção de imunizantes que protejam a população mundial e ajudem a superar a pandemia.  

“Há duas limitações fundamentais que impedem o aumento da produção de vacinas e dificultam a superação desse cenário:  limitações jurídicas – isto é, patentes e outras restrições de propriedade intelectual – e limitações de capacidade tecnológica”, escrevem. E lembram que mais de 70% do investimento nos imunizantes já aprovados veio de fundos públicos ou fundações filantrópicas.

“A suspensão das patentes significa a liberdade para produzir sem risco de bloqueios jurídicos e sanções econômicas, favorecendo que os setores públicos e privados de cada país busquem replicar a produção de tecnologias que já estão no mercado, aumentando a capacidade produtiva global. Significa, no mínimo, a chance de tentar – que, por si só, já contribui para a capacitação dos atores envolvidos. Ao mesmo tempo, a transferência de tecnologia deve ser estimulada: se a receita é compartilhada, aprende-se mais rápido a fazer o bolo”. 

DESCAMINHOS DA REGULAÇÃO

Lapsos, estranhas coincidências e fé inabalável na boa vontade da indústria de alimentos atrasaram em 18 anos a restrição das gorduras trans industriais no Brasil. Em julho, finalmente uma regulamentação ao aditivo entra em vigor por aqui. Aprovadas pela Anvisa em 2019, as regras são consideradas muito boas por especialistas. Mas, mesmo assim, fica a pergunta: por que demoramos mais do que nossos vizinhos sul-americanos para proteger a população do consumo desse aditivo que já acumula quase duas décadas de evidências científicas de riscos mortais à saúde?

A pergunta é o fio condutor da reportagem d´O Joio e O Trigo escrita por nossa editora, Maíra Mathias, que com base em documentos obtidos via LAI, mostra como as autoridades sanitárias brasileiras empurraram a regulação com a barriga e atuaram para desacreditar iniciativa legislativa de limitação do aditivo. Ao contrário: insistiram em acordos voluntários com as fabricantes de produtos com gordura trans e, ponto alto da história, esqueceram que o acordo existia.

A OMS estima que, todos os anos, meio milhão de mortes aconteçam exclusivamente por doença coronariana causada pelo consumo das gorduras trans. Por aqui, nos 18 anos que deixamos de regular o tema, acumulamos quase 335 mil mortes. Vidas perdidas a troco de uma invenção tecnológica que reduz custos para a indústria.

O TALCO JOHNSON

Faz muito tempo que acompanhamos por aqui os processos enfrentados pela Johnson & Johnson em relação a seu famoso talco para bebês. São mais de 12 mil ações movidas nos Estados Unidos por mulheres que alegam ter desenvolvido câncer de ovário devido à presença de amianto no produto. 

Ontem, a Suprema Corte do país negou à farmacêutica o recurso relacionado a um processo de 2018, envolvendo 22 mulheres. No maior julgamento já realizado contra a companhia, os juízes decidiram que a J&J terá que pagar US$ 2,1 bilhões em reparação de danos.

O pó de talco é feito de silicato de magnésio que, em sua forma natural, contém amianto. Em 1976, a indústria firmou um acordo se comprometendo a assegurar que não produziria talco com níveis detectados da substância. A empresa afirma que “décadas de avaliações científicas independentes confirmam que o talco para bebês da Johnson é seguro, não contém amianto e não provoca câncer”. 

Mas as denúncias e ações continuam se multiplicando. Há três anos, depois que esse processo específico foi julgado pela primeira vez por um tribunal no Missouri, uma investigação da Reuters examinou documentos internos da empresa e concluiu o seguinte: que, sabendo da contaminação de alguns lotes do talco, a J&J ocultou intencionalmente essa informação dos reguladores e do público. 

Na mesma época, New York Times expôs os bastidores regulamentação do produto pela FDA (a Anvisa dos EUA) nos anos 1970. Na época, análises encontraram amianto em mais da metade das amostras do talco Johnson. Mas um memorando mostra que a empresa pediu à agência para manter a descoberta sob “estrita confidência”. Outro memorando dá conta de que o pedido foi atendido: em reunião, um funcionário da FDA garantiu que o relatório só seria divulgado sobre o seu cadáver. 

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