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Há dois anos, Artur Araújo e eu escrevemos um artigo intitulado “O lumpesinato no poder“, sobre o governo Bolsonaro. Ali expressávamos o seguinte:
“O lumpesinato, por característica inata, é avesso a qualquer projeto coletivo de longo prazo. Não é classe, não é coletivo, não forma grupos. Não há previsibilidade ou rotina possível em um conjunto de indivíduos para os quais vigoram as saídas individuais e a disputa de cada um contra todos”.
Nossa análise partia de uma constatação objetiva. Bolsonaro valeu-se do rebotalho de diversas classes sociais para montar uma administração sem um vetor organizativo definido. Não tinha um partido que vertebrasse os rumos de seu mandato, como Sarney contou com o PMDB, FHC com PSDB-DEM e Lula e Dilma com PT-PMDB. Sem ossatura consistente, o remédio foi apelar para as Forças Armadas.
Voltemos ao texto:
“No caso de Bolsonaro, qual é o vetor que sintetiza demandas de classe que o sustentam na disputa institucional? Não é o PSL, evidentemente! Esta é uma legenda artificial e um agregado de aventureiros, sem expressão social clara. Expressão social é diferente de ter votos. O PSL tem votos, mas é incapaz de organizar minimamente uma administração”.
AO LONGO DE 2020, O BOÇAL ENCONTROU sua base de sustentação no Congresso, ao alugar os bons préstimos do centrão, sempre pau para toda obra e preço a combinar.
Mas na montagem da gestão, o centrão age – com o perdão do trocadilho – descentralizadamente. Cada cacique manda em seu feudo, loteando a máquina pública em fragmentos de pouca coerência entre si.
Ainda no texto:
“Assim, Bolsonaro não tem saída. Ou apela para as FFAA ou não existe governo que pare em pé. Não há escapatória a não ser ele colocar cerca de cem militares em cargos de primeiro e segundo escalão”.
Éramos ingênuos. Não foram cem militares, mas onze mil aboletados com folha de pagamento sem teto. Bolsonaro realizou uma atilada operação de compra junto a generais que estavam à venda. Contrato assinado, negócio fechado.
ALGUNS SETORES DA DIREITA CIVILIZADA avaliavam que poderia haver alguma racionalidade no caos, vulgarizada na ideia de que depois de eleito, os comandantes enquadrariam o lúmpen do palácio. Deu-se o contrário. O lúmpen-mor lumpenizou o Exército (e possivelmente a Aeronáutica e a Marinha). Os generais que foram para a Esplanada tinham por lema “Brasil acima de tudo, boquinha acima de todos”.
Nunca tiveram projeto, conhecimento ou concepção de Brasil. Alguém já ouviu da boca de elementos como Pazuello, Mourão, Heleno, Braga Netto, Azevedo ou Ramos alguma idéia com começo meio e fim sobre o mundo que os cerca? Alguém já viu alguma ação solidária dessa gente liderada por um sujeito que se lançou em campanha sob a profunda reflexão de que “Meu negócio é matar”?
Pois bem, agora temos o vexame dos frouxos do alto comando do Exército no caso Pazuello. Não há punição e agora pode tudo. Paulo Sérgio passou recibo: somos um bando anárquico de armas na mão. Legalizou-se o liberou geral, nem mais e nem menos.
UM CABO E UM SOLDADO podem agora pegar um jipe para tentar fechar o STF, policiais podem barbarizar populações pobres e milicianos seguem atuando em territórios nos quais “as quatro linhas da Constituição” não valem, como Muzema e Rio das Pedras. (Aliás, que história é essa de “quatro linhas da Constituição”? O que tem quatro linhas é campo de futebol).
Se a anarquia está proclamada na instituição em que comando vertical, hierarquia e disciplina formam sua razão de ser, o que se dirá das demais áreas do Estado?
O ministério das Relações Exteriores – área na qual também a disciplina é essencial – pode agora ter um chefe que encaminhe determinada política, o representante na ONU reme em outra direção e cada membro do corpo diplomático faça o que lhe der na telha. Aliás, nenhuma área de governo deve ter disciplina alguma, desde que não desobedeça o lúmpen-mór.
O PROJETO MILITAR-MILICIANO visa estabelecer um estado da natureza hobbesiano. Voltemos ao texto de 2019:
“Trata-se de uma situação anterior à criação do Estado, sem regras ou normas, em que “todo homem é inimigo de todo homem.Thomas Hobbes, em “Leviatã” (1651), assinalou: “Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”.
Com isso, não há Exército, não há governo, não há Nação e o objetivo da escória passa a ser lumpenizar o país inteiro, “dentro das quatro linhas da Constituição”. Coisa, já vimos, que não existe.UM FINAL OTIMISTA: esse desarranjo geral e a proteção a Pazuello são expressão de um isolamento social crescente. Os militares se desmoralizam a olhos vistos. Os próximos meses não serão brincadeira, com essa gente usando a pandemia a seu favor. Mas fica cada vez mais claro ser possível vencê-los.
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Imagem: Fraga