O combate à violência política passa por uma legislação autônoma

Lei de Segurança Nacional recentemente aprovada pela Câmara ignora aspectos da violência política dirigida às mulheres

Gisele Barbieri, Brasil de Fato

O aumento da presença das mulheres na política, embora essa representação ainda esteja muito aquém do desejável, é fruto de esforços coletivos das próprias mulheres que enfrentam barreiras cotidianas criadas pelo machismo e pelo atual modelo de poder dos partidos políticos e do Congresso Nacional.

A violência política é um dos principais instrumentos utilizados para afastar esses corpos dos espaços de poder e decisão.

O Estado brasileiro ainda tem muito de avançar no aperfeiçoamento de mecanismos de proteção e garantia de espaços seguros para que essas mulheres defensoras de direitos humanos avancem na luta por paridade e exerçam seus direitos políticos em sua integralidade.

Faz-se urgente a adoção de uma legislação específica, autônoma que combata a violência política contra as mulheres, destacando as especificidades dessa violência contra mulheres negras. A recente aprovação da Lei de Segurança Nacional (LSN) pela Câmara dos Deputados evidenciou o quanto o Congresso – composto em mais de 70% por homens brancos – necessita debater com seriedade esse tema.

O substitutivo ao PL da deputada e relatora Margarete Coelho (PP/PI) incluiu um artigo classificando e prevendo penas para o crime de violência política.

Um equívoco se avaliarmos a eficácia dessa legislação em uma perspectiva de gênero, que necessita avançar em ações de caráter multidisciplinar e de proteção às vítimas, e não somente numa lógica punitivista como a que se propõe uma Lei de Segurança Nacional.

Outro “equívoco” foi a retirada da definição “orientação sexual” do texto desse artigo, por meio de emenda acatada pela relatora do projeto. Isso no país que mais mata pessoas transexuais em que, recentemente, vimos uma vereadora transexual eleita deixar o Brasil por ameaças de morte.

Na contramão dessa denúncia, os deputados e deputadas ignoram a gravidade da violência contra a vereadora, defensora de direitos humanos e ativista transexual/travesti Benny Briolli e dos repetidos atos de violência contra mulheres transexuais agentes políticas ocorridas no país somente no último ano.

Atos que também evidenciariam uma flagrante ação de grupos organizados. Mas enquanto não avança em uma legislação autônoma de combate à violência política, as legislações específicas de combate à violência contra a mulher ainda seriam os espaços mais adequados para receber tipificações e punições referentes ao tema.

Em 2017 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) elaborou a Lei Modelo sobre violência Política, reconhecendo que a violência contra mulheres na vida política se configura em uma grave violação de direitos humanos e uma ameaça à democracia.

Os mecanismos dessa Lei Modelo foram inspirados na Lei 243 da Bolívia, que em 2012 se tornou o primeiro país da América Latina a ter uma legislação própria sobre violência política. A lei boliviana recebeu o nome da vereadora local Juana Quispe, assassinada em 2012, mesmo após apresentar inúmeras queixas de assédio e ameaças de morte sofridas por ela por vários anos.

Tanto a Lei Modelo da CIDH como a legislação boliviana trazem importantes mecanismos que podem auxiliar o Brasil na elaboração de sua legislação independente sobre o tema. Leis que enfrentem, com seriedade, a violência sistemática vivida por mulheres agentes políticas analisada nas pesquisas realizadas pelas organizações Terra de DireitosJustiça Global e Instituto Marielle Franco, em 2020.

Projeto de Lei 349/2015 aprovado em 2020 na Câmara dos Deputados, e que agora espera pela aprovação do Senado, é um primeiro passo para uma legislação brasileira específica sobre violência política. Mas é preciso avançar nas definições previstas nesse PL.

É necessário reconhecer que a violência está relacionada com a luta por paridade no sistema político; que a violência contra as mulheres negras tem como propulsor o racismo, e por essa razão se manifesta de forma ainda mais violenta; pensar mecanismos de proteção que deem conta das mulheres candidatas, eleitas, suas famílias e suas equipes de trabalho.

Questões como essas não estão superadas no texto do PL 349, e foram essenciais na elaboração das duas legislações já citadas.

A Lei Modelo da CIDH e a Lei da Bolívia foram precisas ao instituírem as responsabilidades dos partidos políticos, órgãos públicos e eleitorais na aplicação da Lei, e ao definirem as instâncias de recebimento dessas denúncias. A desinformação das parlamentares e de candidatas sobre como encaminhar denúncias de violência política, além da ausência de protocolos específicos para isso, acabam por desestimular essas mulheres à denunciarem seus algozes.

É urgente a adoção de uma legislação pertinente que fortaleça as estruturas parlamentares de promoção da igualdade e dos direitos das mulheres, prevenindo, coibindo e punindo a violência política. Por isso a importância de uma legislação soberana, com definições e sanções específicas, intrinsecamente relacionadas à complexidade dos desafios que o tema da violência política traz para a democracia e para a vida das mulheres parlamentares.

O desafio é muito maior que garantir a participação, é garantir um ambiente seguro para que essas mulheres em todo o Brasil exerçam seus direitos políticos, e que mais e mais mulheres possam se enxergar nesses espaços.

Edição: Leandro Melito

Imagem: Vereadora Benny Briolly é a primeira trans negra a ocupar cadeira na Câmara Municipal de Niterói | Foto: reprodução redes sociais

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