No Uol
- Em carta confidencial, sete relatores da ONU denunciam projeto de lei apoiado pela base bolsonarista no Congresso para reformar a lei antiterrorista
- Para ONU, projeto ameaça silenciar críticos e oposição, criminaliza movimentos sociais e greves, além de restringir liberdades fundamentais.
- Relatores pedem que projeto de lei seja reconsiderado e indica que, se for aprovada, Brasil violará direito internacional
Numa carta confidencial enviada ao governo brasileiro, sete relatores da ONU alertam que projetos de lei apoiados pela base bolsonarista no Congresso para reformar a lei antiterrorista ameaçam silenciar críticos e oposição, criminaliza movimentos sociais e greves, além de restringir liberdades fundamentais.
No documento de 15 de junho, os relatores pedem que as autoridades reconsiderem os projetos e cobram explicações. Para eles, se tais projetos forem aprovados, o Brasil estará violando o direito internacional e suas obrigações assumidas.
Procurado pela coluna, o Itamaraty indicou que a carta “contém comentários sobre as consequências jurídicas de dois projetos de lei (272/2016 e 1595/2019), ora em tramitação no Congresso Nacional, em matéria de combate ao terrorismo”. “Após consultas internas, o Itamaraty encaminhou à ONU, em 18 de junho, informações recebidas do Ministério da Justiça e Segurança Pública em resposta à mencionada comunicação”, explicou o governo.
Em sua resposta, o governo insiste que consultas foram realizadas sobre as leis e que e que as “alegações feitas na carta (dos relatores) são de natureza prematura”. No caso de um dos projetos questionados, o PL 1595, o governo indica que o último movimento legislativo foi registrado em 18 de março, quando ficou determinada a criação de uma comissão especial para avaliar a lei.
“O progresso dos projetos de lei demonstram a ampla e prolongada discussão sobre assuntos relacionados com o terrorismo contemporâneo”, diz. Segundo o governo, os projetos respeitam a Constituição e exigências internacionais.
Os textos, ainda segundo a resposta do governo, também seguem a tendência internacional de reconhecer a “mensagem do terror” como um elemento do crime.
Para completar, as autoridades negam que direitos básicos estejam sendo violados e que, de fato, as propostas “preservam os direitos da maioria dos cidadãos”.
O projeto de lei, que estava parado desde 2019, voltou a ganhar a atenção da ala aliada do presidente Jair Bolsonaro nos últimos meses. Ele altera a legislação antiterrorismo no país e, para seus críticos, uma eventual aprovação limitaria também o direito ao protesto.
O texto muda três leis sobre antiterrorismo já existentes. O projeto amplia atos tipificados como terrorismo, permite a infiltração de agentes públicos em movimentos e da autorização para operações sigilosas.
No documento, os relatores expressam sua “séria preocupação” e apontam que a expansão proposta da definição do terrorismo pode limitar o exercício das liberdades fundamentais, incluindo as de opinião, expressão e associação. A lei também pode remover a proteção aos atores da sociedade civil e aos defensores dos direitos humanos.
A carta é assinada por Fionnuala Ní Aoláin (relatoria sobre a proteção de direitos humanos e combate ao terrorismo), Miriam Estrada-Castillo (presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre detenção arbitrária), David R. Boyd (relator sobre direito ao meio ambiente limpo), Irene Khan (relatora sobre liberdade de expressão), Clement Nyaletsossi Voule (relator sobre direito à liberdade de associação), Mary Lawlor (relatora sobre situação de ativistas) e Joseph Cannataci (relator sobre direito à privacidade).
“Expressamos nossa séria preocupação com o processo de expansão da lista de atos considerados terroristas, e com o aumento das penas para termos amplos ou mal definidos como “recompensa ou elogio” e “incitar”, disseram os relatores.
“As mudanças legislativas propostas pelo Projeto de Lei 1595/2019 expandem significativamente o conceito de terrorismo no direito interno. Essa mudança pode levar a uma maior criminalização dos defensores dos direitos humanos, movimentos e organizações sociais, assim como a restrições às liberdades fundamentais”, apontam.
Oposição ameaçada
De acordo com os relatores, o amplo escopo e imprecisão dos termos no projeto torna os indivíduos suscetíveis à violação de inúmeros direitos. No texto apoiado pelo bolsonarismo, seria incluída na definição de terrorismo o ato de “exercer pressão sobre o governo, autoridades públicas ou oficiais do governo para fazer ou parar de fazer algo, por razões políticas, ideológicas ou sociais”.
Isso, segundo os relatores, expandiria a lista de atividades que são definidas como os fatores motivadores por trás do terrorismo. “Isto pode ter efeitos adversos na oposição política ou no discurso público robusto”, alertam.
Protestos e greves criminalizados
Os relatores também indicam que o PL criminaliza pessoas e grupos que “parecem ter a intenção” de realizar ações que podem “intimidar ou coagir a população ou afetar a definição de políticas públicas”. Isso ocorreria por meio de um ampla lista de ações como “intimidação, coação, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência”.
“A indefinição dos conceitos poderia assim incluir manifestações públicas organizadas, tais como protestos e greves, assim como qualquer ação ou manifestação, inclusive individual e digital, que possa “afetar a definição de políticas públicas”, alertam os relatores.
“Atos inerentes ao processo democrático, tais como protestos, manifestações e marchas poderiam ser enquadrados sob os termos destas disposições, e podem tornar o livre exercício das liberdades individuais muito desafiador”, constatam.
Motivação política, ideológica e social
Um dos aspectos mais preocupantes, segundo os relatores, é a proposta de inclusão de um artigo na lei que prevê a definição do terrorismo também por “qualquer outro motivo político, ideológico ou social”.
“A inclusão da motivação “política, ideológica ou social” como um elemento subjetivo específico de um crime infringe diretamente direitos fundamentais como a liberdade de expressão, reunião e associação”, denuncia a carta.
Segundo os relatores, tal proposta viola as obrigações internacionais do Brasil. “Uma definição excessivamente ampla pode contribuir significativamente para a criminalização dos movimentos sociais e das manifestações em geral, pois estes frequentemente têm uma motivação “política, ideológica ou social”, alertam.
“Qualquer conduta listada neste ato acarretará fortes penalidades se um ato puder ser ligado aos fatores motivadores acima. O efeito é confundido com atos políticos, ideológicos e sociais com terrorismo”, constatam.
Sistema de vigilância e “boiada” na covid-19
Outro alerta da ONU se refere à perspectiva de que a lei crie um sistema de vigilância e monitoramento. “Essas disposições e novas agências conferem ao Executivo uma discrição significativa, aumentando o risco de que as ferramentas apoiadas tecnologicamente possam ser mal utilizadas ou mal aplicadas”, alertam os relatores.
Para os representantes da ONU, um dos fatores que ainda chama a atenção é que o procedimento para a aprovação da lei esteja ocorrendo em plena pandemia.
A linguagem proposta permitiria ainda que crimes contra a propriedade sejam classificados como terrorismo caso qualquer motivo “político, ideológico ou social” fosse reivindicado como associado ao ato.
“Também nos preocupa que a legislação esteja sendo avançada durante a pandemia da COVID-19, o que não permite um exame público aprofundado e o engajamento com o texto”, disseram.
Diante das violações, os relatores recomendam que os autores do projeto e o governo “reconsiderem certos aspectos desta legislação para garantir que ela esteja em conformidade com as obrigações internacionais do Brasil em matéria de direitos humanos”.
–
Ilustração: Outras Palavras