Roberto de Lucena, que recomendou a associação na aquisição de vacinas, é autor de PL que libera a compra de imunizantes sem repasse ao SUS
Por Bruno Fonseca, Alice Maciel, em Agência Pública
As negociações paralelas de vacinas entre a Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), presidida pelo reverendo Amilton Gomes de Paula, a empresa Davati Medical Supply e o Ministério da Saúde contaram com apoio do deputado federal Roberto de Lucena (Podemos-SP). É o que revela uma carta de recomendação assinada pelo deputado a que a Agência Pública teve acesso.
No dia 1º de julho, a Pública mostrou que o reverendo esteve à frente de uma negociação paralela de imunizantes com o Ministério da Saúde e, depois, com prefeituras e governos estaduais.
Roberto de Lucena é membro da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz), fundada em 2019, com a participação de Amilton Gomes. Ele também é autor de um projeto de lei que pretende liberar a compra de vacinas por empresas privadas sem a obrigação de repasse ao Sistema Único de Saúde (SUS), conforme prevê a legislação atual.
Na carta obtida pela reportagem, o deputado diz que apoia “a Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah) na aquisição de vacinas para o governo brasileiro, a preço humanitário”. “Parabenizo esta importante agência humanitária pelo excelente desempenho, na pessoa do reverendo Dr. Amilton Gomes de Paula, na interlocução entre laboratórios e governo”, escreveu sobre a organização evangélica.
A reportagem procurou o deputado que enviou nota dizendo que foi procurado no dia 11 de março, na condição de presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos Humanos e pela Justiça Social, “por representantes da Senah, instituição humanitária sem fins lucrativos, com conexões em organizações internacionais como a ONU, que se propunha a auxiliar o governo brasileiro na obtenção de vacinas contra a Covid 19”. Lucena afirmou que assinou o documento “em atenção ao gesto da entidade” de lhe procurar via Frente Parlamentar. “Foi a única iniciativa tomada neste contato feito com meu gabinete”, diz a nota.
“Por fim, importante destacar que esses apoiamentos (sic) são comuns no dia a dia do parlamento a todas entidades que apresentem sugestões que tenham por finalidade colaborar com propostas legislativas ou ações de governo, constituindo um ato político sem qualquer relação com intermediação de natureza comercial”, conclui a nota do deputado, que integra a base do presidente Jair Bolsonaro na Câmara e chegou a ser cotado para assumir o Ministério do Turismo em dezembro do ano passado, no lugar de Marcelo Álvaro Antônio (PSL).
Projeto de Lei de deputado desobriga empresas de doação de vacina ao SUS
Roberto de Lucena também atuou para liberar vacinas à iniciativa privada. Ele é autor do projeto de lei 1066/2021, apresentado em 25 de março deste ano, que autoriza a aquisição e comercialização de imunizantes da Covid-19 por empresas e as libera da obrigação de repassar as vacinas ao SUS.
“As vacinas adquiridas pelos Estados, Municípios e pessoas jurídicas de direito privado, nos termos desta Lei, não precisam ser doadas aos Sistema Único de Saúde devendo ser utilizadas conforme a necessidade do comprador”, diz a proposta apensada ao PL 3982/2020, esse de autoria de sete deputados do Partido Novo. No momento, o PL aguarda a designação do relator na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público.
Na justificativa de seu projeto, Lucena alega que “não faz sentido a iniciativa privada entrar na briga por vacinas para, posteriormente, doar ao Poder Público”. “Como diz o ditado popular: ‘Cada macaco no seu galho’”, acrescenta. Segundo o texto, efeitos adversos das doses oferecidas por empresas seriam responsabilizados a partir do Código de Defesa do Consumidor. A assessoria do deputado respondeu à reportagem que “a compra pela iniciativa privada retira sobrecarga do SUS”. “Toda iniciativa que ajude a colocar vacina no braço do brasileiro, desonerando o SUS, é válida, na visão do parlamentar”, acrescentou.
O deputado protocolou o texto na Câmara dos Deputados depois de sancionada a lei 14.125, em 10 de março, que autoriza empresas a comprarem vacinas contra o coronavírus com registro ou autorização temporária de uso no Brasil dado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por empresas, desde que as doses sejam totalmente repassadas ao SUS enquanto durar a imunização de grupos prioritários. Após esse período, metade delas deve ser doada ao SUS e o restante deve ser aplicado gratuitamente.
Já o projeto de Lucena permite a comercialização das vacinas “aprovadas por autoridades sanitárias estrangeiras”, ou com “autorização para uso emergencial ou com registro na Agência Nacional de Vigilância (Anvisa)”. Quando o texto foi proposto, a vacina da Astrazeneca contava com a liberação da Anvisa para uso emergencial desde 17 de janeiro de 2021.
Conforme a Pública mostrou, desde março, a Senah passou a oferecer, junto com o representante da Davati, doses de imunizantes da AstraZeneca e da Johnson a estados e municípios. Em uma carta encaminhada aos gestores, a entidade oferece as doses no valor de US$ 11 a unidade, com prazo de entrega de até 25 dias. O valor seria três vezes maior que o fechado pelo governo federal para a mesma vacina da AstraZeneca com a Fiocruz, que foi de US$ 3,16, e o dobro do valor do Instituto Sérum, de US$ 5,25. A oferta chegou à prefeitura de Ijuí (RS), por exemplo, em 23 de março.
Em depoimento à CPI da Covid, o policial militar Luiz Paulo Dominguetti afirmou que foi por meio da Senah que teve acesso ao então secretário-executivo do Ministério da Saúde Elcio Franco e ao então diretor do Departamento de Imunização, Laurício Monteiro Cruz.
Dominguetti, Amilton Gomes e Laurício se reuniram na Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, conforme uma foto postada pelo reverendo em suas redes sociais em 4 de março. O major da Força Aérea Hardaleson Araújo de Oliveira, antigo conhecido do reverendo, também participou do encontro.
PM Dominguetti ofereceu vacinas para todo Brasil e América Latina, diz reverendo
Na quinta-feira passada (01/07), pouco antes de Dominguetti falar na CPI, o reverendo Amilton Gomes concedeu uma entrevista à Pública em que afirmou ter sido procurado pelo policial, que disse dispor de vacinas “a preço humanitário de US$ 3,50”.“Dominguetti ofereceu vacina para o Brasil inteiro, para a América Latina”, afirmou. Segundo o reverendo, o primeiro contato da Davati com a Senah ocorreu em fevereiro. “Ele (o policial) estava tentando pelo governo federal e não estava conseguindo”, afirmou.
Uma troca de e-mails entre Amilton Gomes e Laurício Monteiro divulgada pelo Jornal Nacional mostra que, a partir de então, o reverendo teria passado a intermediar as negociações entre o governo federal e a Davati. De acordo com o veículo, no dia 23 de fevereiro Laurício enviou uma mensagem a Amilton agradecendo a Senah, “na apresentação da proposta comercial para fornecimento de 400 milhões de doses da vacina Astrazeneca”.
Segundo ele, depois que Dominguetti garantiu que a empresa teria as vacinas, passou a conversar diretamente com o presidente da Davati, Herman Cárdenas. “O Herman falou que tinha a vacina sim, que daria para colocar, mas o negócio não andou porque não apareceu documento da vacina. Não andou porque não apareceu nada que comprovasse que eles tinham a vacina”, justificou.
O reverendo também negou ter oferecido vacinas para as prefeituras, apesar de a carta encaminhada ao município de Ijaí, no Rio Grande do Sul, com a proposta dos imunizantes, ter sua assinatura. “Se ofereceram vacina, ofereceram sem a minha autorização”, disse. Segundo ele, a carta teria sido iniciativa de um dos diretores da Senah, Renato Gabbi, à sua revelia. “O Gabbi, foi chamado a atenção, eu chamei a atenção dele”, insistiu.
Em troca de mensagens com a reportagem, Gabbi afirmou que como “agente humanitário”, atua em diversas atividades. “Nós não negociamos, não vendemos nada, apenas informamos e auxiliamos quando necessário sobre assuntos que sejam de grande necessidade em todos os países [em] que a Senah atua. A Senah é uma instituição séria”, sublinhou.
A entrevista da Pública com o reverendo foi interrompida quando, no início de seu depoimento à CPI, Dominguetti falou sobre a Senah. Nesse momento, Amilton Gomes encerrou a conversa por telefone e informou que a entidade enviaria uma nota, não encaminhada até o fechamento desta edição.
A reportagem procurou a assessoria de imprensa da empresa Davati, que também não respondeu. Já a assessoria da AstraZeneca enviou nota informando que a “AstraZeneca não disponibiliza a vacina por meio do mercado privado ou trabalha com qualquer intermediário no Brasil. Todos os convênios são realizados diretamente via Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e Governo Federal.”
Grupo religioso circula por ministérios e inaugurou embaixada em Brasília
Além de atuar no Legislativo federal, o reverendo Amilton Gomes também conta com apoio do primeiro escalão do governo federal para as ações de interesse da Senah. Em 21 de agosto de 2019, por exemplo, a entidade publicou em suas redes sociais uma foto de um encontro do reverendo e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, identificando também o coronel do Exército Brasileiro Augusto Cesar Barbosa Vareda, da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf) do Ministério da Agricultura.
No dia, a agenda de Damares não tem registros do encontro com nenhum dos indicados na postagem. A reportagem também não encontrou registros da reunião na semana. Na publicação, o presidente da organização anunciou que “grandes coisas estão por vir” e que “o Senah está avançando”. Na data, um sábado, a agenda da ministra está vazia.
Em outubro de 2019, a Senah comemorou a inauguração das instalações da “Embaixada Mundial Humanitária pela Paz entre Brasil e Israel” na sede da Senah no município de Águas Claras, no Distrito Federal. A embaixada está ligada à Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz), criada em setembro do mesmo ano pelo deputado federal Fausto Rui Pinato (PP/SP). Ela contou com a assinatura de 197 deputados e 19 senadores.
Na postagem que celebrou a abertura da embaixada, uma nota da Senah (que à época ainda se chamava Senar) junto à Associação dos Ministros Evangélicos de Monte Mor afirmou que a empreitada contava com “apoio total do presidente Jair Messias Bolsonaro”.
Além do reverendo Amilton Gomes, participaram do evento Alfredo Brito, identificado pela nota como presidente da Senah em São Paulo; Gilvan Máximo secretário de Ciência e Tecnologia do DF; Yossi Shelley, embaixador de Israel no Brasil.
–
Deputado Roberto de Lucena apoiou Senah na aquisição de vacinas para o governo brasileiro a “preço humanitário”; carta assinada pela organização religiosa ofereceu vacina a prefeituras por US$ 11.