Massacre do Jacarezinho e o temor da impunidade

Balanço da morosidade da justiça, dois meses após a chacina que indignou o país. Polícia Civil, que fez as 28 vítimas, investiga a si mesma – e garante sigilo de cinco anos sobre documentos da operação. MP tem histórico de conivência com massacres

Por João Pedro Soares, na DW Brasil

Pedro Paulo da Silva, de 25 anos, foi criado e morou até o ano passado na favela do Jacarezinho. O jovem cresceu acostumado a presenciar operações policiais que se estendiam por até duas semanas, sob intenso tiroteio. Nada, porém, se assemelha ao que vivenciou há dois meses, quando a comunidade situada na Zona Norte do Rio de Janeiro foi palco da operação policial mais letal da história do estado– com 28 mortos.

Desta vez, Pedro estava lá como pesquisador. Mestrando em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ele é membro do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e Coordenador de Pesquisas do LabJaca, um laboratório de pesquisa e produção de dados sobre as favelas e periferias sediado no Jacarezinho.

“O trauma que fica para nós é invisível, de ter a percepção de que nossa vida não importa. Já é muito difícil ter autoestima e perspectiva de futuro na favela. Fica ainda mais desanimador depois de ver corpos amontoados e poças de sangue no chão”, diz Pedro.

A chacina do Jacarezinho teve intensa repercussão, inclusive no plano internacional. Porém, o histórico de casos semelhantes no Rio mostra que a visibilidade não representa uma garantia contra a impunidade e o esquecimento. A chacina completa dois meses nesta terça-feira (06/07), sob o temor de mais um desfecho frustrante.

É atribuição da Polícia Civil do Rio realizar o trabalho de investigação criminal no estado, em parceria com o Ministério Público local. Todavia, no episódio do Jacarezinho, a capacidade de ambos os órgãos desempenharem esse papel tem sido colocada em questão.

Primeiramente, pelo fato de a operação ter sido conduzida pela própria Polícia Civil. Ou seja, a instituição investigaria a si própria. A situação se torna ainda mais delicada pela possível adulteração de cenas de crimes, denunciada por moradores da comunidade à Defensoria Pública e outras entidades que estiveram no Jacarezinho logo após a incursão policial.

Ainda em maio, mês em que ocorreu a chacina, a Secretaria de Polícia Civil do Rio impôs um sigilo de cinco anos a todos os documentos de operações realizadas desde junho de 2020, inclusive a do Jacarezinho. O período coincide com a vigência da proibição de incursões policiais em favelas do Rio durante a pandemia, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

O Ministério Público do Rio (MP-RJ), por sua vez, é frequentemente criticado por não cumprir sua função constitucional de exercer o controle externo da atividade policial. Um levantamento da organização Human Rights Watch mostra que o MP-RJ apresentou denúncia em apenas 0,1% dos 3.441 casos de homicídios cometidos pela polícia de 2010 a 2015.

Poucos dias antes da chacina do Jacarezinho, o MP sugeriu o arquivamento das investigações sobre PMs envolvidos numa operação realizada em fevereiro de 2019 nos morros Fallet-Fogueteiro, centro do Rio, que deixou 13 mortos, sendo nove em uma única casa, após 107 disparos efetuados pelos agentes. Na ocasião, a promotoria do órgão alegou que os policiais agiram em legítima defesa.

Fachin e MPF pressionam MP-RJ

No dia 30 de junho, o ministro do STF Edson Fachin afastou o sigilo imposto pela Polícia Civil sobre as operações em favelas. Entretanto, sua decisão se restringiu às informações referentes ao cumprimento das restrições impostas pela corte à realização de incursões durante a pandemia.

O veto às operações se deu por uma liminar de Fachin, em junho do ano passado, e foi chancelada pelo plenário do STF no mês seguinte. A decisão prevê que operações policiais no estado só devam ocorrer em “hipóteses absolutamente excepcionais”, com justificativa ao MP-RJ por escrito. Desde outubro, a restrição vem sendo abertamente desrespeitada pelo governo do Rio de Janeiro, sob a interpretação de que o cenário de segurança do estado é de permanente excepcionalidade.

Além da quebra do sigilo, o ministro também determinou que o Ministério Público Federal (MPF) apure se houve descumprimento da decisão do Supremo referente à realização de operações no Rio. Uma vez que a participação do MP-RJ será incluída no escopo da investigação do MPF, deve aumentar a tensão criada entre as instituições na esteira do caso Jacarezinho. No final de maio, o MPF sugeriu o arquivamento do inquérito conduzido pela Polícia Civil, bem como a inclusão da Polícia Federal (PF) no caso.

“A ausência de preservação das cenas de crime e a apresentação de pouco mais de 20 armas para perícia, em uma operação que contou com 200 agentes, já revelam, por si só, um descompromisso com a busca da verdade real”, afirmava o documento assinado pelo MPF em conjunto com organizações da sociedade civil.

A proposta não foi acolhida pelo MP-RJ, que destacou, à época, o fato de a investigação ser conduzida por uma força-tarefa montada especificamente para o caso. Para fortalecer a autonomia das diligências relacionadas aos inquéritos do Jacarezinho, o órgão escalou peritos oficiais de São Paulo.

Hipótese de execução ganha força

Laudos da necropsia de vítimas e depoimentos de testemunhas obtidos pela imprensa neste mês colocam sob suspeita o depoimento dos agentes envolvidos na operação, reforçando as denúncias de fraude processual e execução sumária.

Em depoimento prestado no dia da incursão, policiais investigados pelos homicídios de dois homens dentro de uma casa afirmaram que apenas um tiro de fuzil teria sido disparado por eles dentro do imóvel. Porém, o laudo de uma das vítimas constatou seis feridas causadas por projéteis disparados por fuzis.

Segundo o jornal O Globo, os agentes mudaram o depoimento após o exame de necropsia. Desta vez, sem especificar a quantidade de disparos. Novas inconsistências foram observadas em relatos de moradores que presenciaram as mortes no dia da operação. Um dos depoimentos aponta para o desfazimento de cenas do crime, por simulação de prestação de socorro.

A recorrência da prática de adulteração de provas pela polícia é apontada pela vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Nadine Borges. “O que choca e ainda não foi esclarecido é o desfazimento da cena do crime, algo que tem se tornado rotineiro em operações”, afirma.

A advogada chama atenção para o desfecho de impunidade em casos recentes de mortes provocadas por policiais que saíram dos holofotes após grande repercussão inicial. Borges destaca o assassinato do menino João Pedro, de 14 anos, em maio do ano passado, durante operação no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio.

“Após a investigação se arrastar por mais de um ano, três policiais civis foram indiciados por homicídio culposo. No Direito, cravejar de balas uma casa com adolescentes brincando se chama dolo. Não se trata de negligência ou imperícia”, critica.

Em nota, o MP-RJ afirmou que as investigações conduzidas pela força-tarefa “prosseguem com avanços que não podem ser comentados no momento para não prejudicar a apuração das circunstâncias das mortes ocorridas na operação do Jacarezinho. As conclusões serão apresentadas, apenas, ao final das investigações”.

“Presunção de culpa”

Logo após o episódio, a Organização das Nações Unidas (ONU) se posicionou sobre o caso, criticando a alta letalidade policial no Brasil e exigindo uma investigação independente sobre as mortes.

No dia 28 de junho, a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, publicou um relatório sobre racismo sistêmico e violações de direitos humanos no âmbito do direito internacional contra pessoas africanas e afrodescendentes.

Embora o documento trate de um problema global, dá destaque à situação brasileira. A Alta Comissária afirma que os agentes de aplicação da lei raramente são responsabilizados por violações dos direitos humanos e crimes contra pessoas afrodescendentes. Um dos motivos para esse cenário seria a “presunção de culpa” contra as pessoas afrodescendentes.

Em entrevista à DW Brasil, o chefe do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos na América do Sul, Jan Jarab, defendeu a importância de garantir que o caso seja investigado em linha com o protocolo de Minnesota, um instrumento para investigação de mortes potencialmente ilícitas.

“Além da questão da perícia, é fundamental assegurar a transparência, o direito à verdade e à reparação das famílias das vitimas, responsabilização dos responsáveis e a observância de medidas que garantam a não repetição. Finalmente, é necessário que seja considerado o papel que a discriminação racial, os esteriótipos e o preconceito institucional possam ter desempenhado nas mortes”, afirmou.

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