No TaquiPraTi
Os três tópicos estão interligados. Comecemos por Maria, uma caboquinha linda por quem meu irmão se apaixonou na sua juventude em Manaus. Ele estava tão embeiçado por ela, que eu já a chamava de minha cunhada. Numa terça-feira, dia de novena na igreja de Aparecida, os dois marcaram um encontro na banca de tacacá da dona Alvina, às 18h00. Quando o sino badalou, o seu Barbosa, em casa, rezou o Angelus em voz alta como costumava:
– O anjo do Senhor anunciou a Maria…
Mas a Maria anunciada era aquela cheia de graça, a Santa Maria. A outra, a degradada filha de Eva, estava atrasada. Enquanto a esperava, meu mano Cado pediu dois tacacás. Tomou a sua cuia. Nada de Maria. Tomou a outra destinada à namorada: – Mamãe, cadê Maria? – ele perguntava aos seus botões. Botões jamais respondem. Às 19h00 devorou a terceira. Foram seis cuias de tacacá, todas com lascas de pirarucu seco – uma receita da dona Alvina para substituir o camarão. Maria não apareceu. Não era a primeira vez que se escafedia, mas desta feita sua escafedida, com a overdose de tucupi, provocou diarreia. Ela nem pediu desculpas. O namoro terminou.
Depois disso, Maria flertou com Tuta, Geraldão, Alcides, Bibi, Bebedinho e tantos outros do bairro, mas sempre se pirulitava na hora do “venha a nós o vosso reino”. Enganou todos eles. Ganhou o apelido que não tem qualquer conotação sexual como em outras regiões do Brasil. Bate-fofo, no Amazonas, é a “pessoa que falta com o compromisso assumido. Furão. Furona”, diz o linguista Sérgio Freire no livro “Amazonês”. Por extensão, alguém desonesto, mentiroso, que não cumpre o seu dever.
Dizem as más línguas que Maria Bate-Fofo enganou até o Omar, ex-morador do bairro de Aparecida, na época em que ela já era chamada de Mary Spank Soft por Antônio Carauassu, o Teacher, professor de inglês do Colégio de Aparecida, cuja tradução tinha a qualidade daquela feita no tal do invoice – a nota fiscal falsificada na compra da vacina Covaxin.
Eis o Omar
E é aqui que entra este descendente de árabes, que saiu de Garças (SP), onde nasceu, e veio de mala-e-cuia para Manaus estudar engenharia na UFAM. Sabe a Vanilda, irmã da Vaneide, esposa do César Bandeira? Pois é. Foi na casa dela que ele se hospedou. Não será exagero pensar que foi ali, no contato com a Mary Spank Soft, que Omar Aziz aprendeu a reconhecer péssimas traduções e a identificar bate-fofos mentirosos. Deu voz de prisão a um deles, Roberto Dias, já como presidente da CPI da Covid, sob aplausos de milhões de brasileiros, entre eles este locutor que vos fala.
Evidências de corrupção e prevaricação de quem foi chamado de gângster por Spike Lee levaram Omar Aziz a criticar “membros do lado podre das Forças Armadas que estão envolvidos com falcatruas dentro do governo”, acrescentando que “os [militares] honestos devem estar muito envergonhados”. O jornalista Otávio Guedes já havia dito que se balançar a árvore da corrupção, cairão coronéis e até um certo capitão. Ambos, senador e jornalista, estão defendendo a honra das Forças Armadas, que não podem aceitar que alguns militares desonestos sujem o nome da instituição.
Roberto Dias, ex-sargento da Força Aérea, foi acusado por um cabo da Polícia Militar de ter pedido propina de US$ 400 milhões para comprar uma vacina, na qualidade de diretor do Ministério da Saúde. Qualquer categoria profissional abriga bate-fofos desonestos. As instituições devem agradecer cada vez que forem identificados, para serem julgados e, se for o caso, punidos.
Mas não foi isso que fizeram o ministro da Defesa e os três comandantes militares. Eles assinaram uma nota, que silenciou sobre as propinas e não pediu punição dos culpados como era de se esperar. Em vez disso, consideraram a crítica a alguns indivíduos como um ataque às Forças Armadas, que possuem mais de 360.000 servidores, a maioria honestos. Atacaram o senador Omar Aziz. Criaram assim uma atmosfera suspeita reforçada pela fala de Bolsonaro que, ao despencar nas pesquisas de opinião, ameaça obstruir as eleições, ataca ministros do Supremo e, diz que não responderá a carta a ele endereçada pela CPI, traduzindo os termos da nota em linguagem chula indigna de um chefe de Estado:
– Caguei. Caguei para a CPI.
A canoa do golpe
O capitão tem razão. A prova disso é o fedor pestilento exalado hoje dentro da CPI da Covid com os atos e omissões do Palácio do Planalto e do Ministério da Saúde naquilo que já está sendo chamado de “vacina-gate”. Ele não pode explicar a cobrança de propina na compra de vacinas inexistentes. Envolve, então, “minhas Forças Armadas” para intimidar os senadores que investigam a falcatrua, acenando para uma aventura golpista, esquecendo as lições da História.
Militares tentaram dar um golpe em 1961 para impedir a posse de Jango. Não tiveram sucesso. Foram barrados pelas manifestações de rua. Naquela ocasião, um dos mentores do golpe, o general Golbery, descobriu que não bastam tanques e canhões para tomar o poder. Ademais das armas, é preciso, internamente, o apoio popular, além de um suporte externo. Dedicou-se, então, a articular as duas coisas nos três anos que antecederam a quartelada de 1964.
Os golpistas produziram milhares de fake news na mídia para assustar a classe média com o fantasma do comunismo. Financiados por empresários vinculados ao IPES e ao IBAD convocaram a Marcha com Deus pela Família e manifestações da CAMDE – Campanha da Mulher pela Democracia. O suporte externo foi dado pela Embaixada Americana. Os detalhes estão no livro, que merece ser relido, de René Armand Dreifuss: “1964 – A Conquista do Estado”, de 814 páginas, repleto de documentos, incluindo o Caixa 2 do IPES e o pagamento a políticos e jornalistas que que constam de uma lista nominal.
Hoje, o governo Biden, que não é Trump, certamente não embarca na canoa do golpe. Portanto, o gângster local não tem autorização da CIA. E internamente, nas ruas ocupadas, manifestantes gritam “Fora Bolsonaro”, até mesmo a direita já marcou para 12 de setembro manifestação com o mesmo objetivo. Podemos supor que as ameaças feitas não passam de bravata desesperada. Além disso, tem muito militar honrado e inteligente que não aceitará entrar em tal aventura, como testemunhei um dia no Forte de Copacabana.
Forças Armadas
Em 1993, coordenava eu uma pesquisa nos arquivos do Rio de Janeiro em busca de documentos sobre os povos indígenas. Fui ao Forte de Copacabana onde funcionava o Museu Histórico do Exército. Lá encontrei mais de 900 cadernetas de campo do marechal Rondon, que não estavam catalogadas. Sugeri que uma estagiária do curso de museologia da UNIRIO realizasse o trabalho. O comandante do Forte, afável e atencioso, me ouviu. Serviu um cafezinho. Na conversa, perguntou:
– Professor, sinceramente, o senhor não acha que é muita terra para pouco índio.
– “Depende do ponto de vista” – era o que eu diria de forma evasiva para evitar polêmica. Mas o telefone tocou e ele foi atender, o que me deu tempo para refletir. Quando retornou, fiz um discurso apaixonado sobre a sabedoria indígena e a usurpação de suas terras. Critiquei o general Euclydes Figueiredo que havia acabado de dar declaração dizendo que os Yanomami “não tem inteligência nenhuma, são como animais” (Folha SP 21/08/93).
– Coronel – eu disse ao comandante do Forte – quem deve falar pelas Forças Armadas nesta questão é o marechal Rondon. O general Euclydes, com sua ignorância e truculência, envergonha a farda e desmerece a instituição.
Dias depois recebo telefonema do coronel me convidando para dar uma palestra aos oficiais na inauguração do auditório do Museu. Fui acompanhado de minha colega Ana Bursztyn-Miranda, que durante dois anos ficou presa no Forte de Copacabana por lutar contra a ditadura e lá não havia voltado. Falei tudo sem autocensura. No final, foram muitas as perguntas dos oficiais. Um deles:
– Professor, o senhor já leu o Projeto Calha Norte criticado em sua palestra?
Confessei que não, mas que me baseava nas críticas de quem havia lido, como Berta Ribeiro e Manoela Carneiro da Cunha. Brinquei que leria na íntegra se algum deles aceitasse defender o Calha Norte num evento na Uerj ou na Unirio. Ganhei uma placa com os agradecimentos do Museu Histórico do Exército.
Quando entrei no auditório, acreditava que ia “fazer a cabeça” dos oficiais, mas foram eles que fizeram a minha, porque passei a ver aquele grupo não como cópia de Euclydes Figueiredo, mas como brasileiros, inteligentes, corretos, preocupados com o destino do Brasil. Isso não tira a validez dos modelos teóricos de Michel Foucault e Nicos Poulantzas sobre a natureza da instituição armada e dos aparelhos repressivos de estado.
Amadas Forças
Seguramente nenhum oficial presente naquele auditório sofrerá o que aconteceu na Bolívia, quando o Ministério Público ordenou nesta quinta (8) a captura do ex-comandante chefe das Forças Armadas, Williams Kaliman, pelo golpe de estado de novembro de 2019. Também foi presa em março Jeanine Áñez, uma espécie de Bia Kicis boliviana. Não custa lembrar que o general Jorge Videla, ditador argentino condenado a prisão perpétua, morreu na privada da sua cela aos 87 anos.
Parece que a hora não é das Forças Armadas, mas das Forças Amadas, não é da Escola Superior de Guerra, mas da Escola Superior da Paz criada pelos Estados Gerais da Cultura, sob a coordenação do cineasta Silvio Tendler, que defende a Doutrina da Segurança Emocional para exigir justiça social. Manifestamos o apoio ao senador Omar Aziz, de quem – agora sim – sentimos orgulho por sua coragem na luta contra os bate-fofos da vida nacional. Ele se agigantou num país com tantos políticos acocorados, não é mesmo Arthur Lira? Será que exagero Rodrigo Pacheco?
Referências:
Sérgio Freire. Amazonês – Expressões e termos usados no Amazonas. Manaus. Editora Valer, 2012. 2ª edição. Pg.36
René Armand Dreifuss. 1964: A Conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Rio. Editora Vozes. Petrópolis-RJ, 1987. 5ª Edição.