Kenarik Boujikian: Voto do preso, um estado de coisa inconstitucional

Por Kenarik Boujikian, no Justificando

A violação do direito de voto do preso é uma das tantas violações de diretos humanos presentes diariamente nos cárceres brasileiros. Elas acontecem a cada minuto, de norte a sul, de leste a oeste e são a perversa rotina de quem é colocado para dentro dos muros das prisões.

Não foi por outro motivo que o Supremo Tribunal Federal  admitiu na ADPF 347 que as prisões brasileiras vivem um verdadeiro “estado de coisa inconstitucional”, situação reconhecida pela Corte Constitucional Colombiana em 1997,  numa decisão paradigmática, que desnudou o quadro que estrutura as prisões daquele país.

O STF fez uso das balizas deste instituto e verificou o quadro massivo de violações de direitos fundamentais, de todo tipo, nos cárceres do país e reconheceu que tais espaços  sofrem de absoluta ausência de dignidade humana, que  é um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito, tal como escrito no artigo 1º, inciso III,  da Constituição Federal . 

Direitos básicos e deveres mínimos do Estado não se fazem presentes. A superlotação é generalizada; não há acesso a água ou é limitada e muitas vezes fria; a alimentação é inadequada; falta cuidado com saúde; a maior parte não tem acesso à educação, acesso ao trabalho; falta assistência de toda ordem, etc.

Os dados apresentados ao STF  mostraram um quadro de violações com vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais para um número significativo de pessoas presas; que tal quadro decorre  da omissão ou comissão de autoridades, de vários órgãos e instâncias de Poder,  que têm o dever de garantir os direitos e, finalmente,  que há necessidade premente de superação deste quadro, com adoção de uma série de medidas estruturantes, razão de reconhecer o que está posto na realidade e imprimir mudanças, com determinação para diversos órgãos e poderes do Estado, a fim de que a violação sistemática cesse.

Neste contexto, restou claro que o Estado deve garantir ao preso o acesso à justiça. Saliento que no conceito de acesso à justiça, por óbvio, também deve ser compreendido o acesso à Justiça Eleitoral.

Mas a verdade é que pouco se fala do direito ao voto do preso, porque são seres descartados pela sociedade e pelo Estado. 

A cidadania, assim como a dignidade humana, também é um dos fundamentos da República do Brasil, e tem o sentido de qualificação dos participantes pelo “reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal” (Curso de Direito Constitucional Positivo, de José Afonso da Silva, 29ª edição) e deve ser garantida a todas as pessoas, nos termos constitucionais. Necessária, pois dá o sinal de pertencimento do indivíduo dentro de uma sociedade.

Os direitos políticos são uma das categorias dos direitos fundamentais, incluída no Título II da Constituição Federal, denominada “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.

Os constituintes fixaram limitações ao exercício destes direitos e estas restrições são as previstas na Carta Magna. Neste tanto, o  artigo 15, inciso III, da CF estabelece a suspensão dos direitos políticos para os casos de condenação criminal com trânsito em julgado.

Os presos provisórios,  que são ao menos 210.000 mil (dados do Depen, referente a junho/2020) , têm direito de participar do pleito e na verdade têm o dever, pois a não participação acarreta consequências; os adolescentes internados  com mais de 16 anos (cerca de 20 mil , conforme dados do  Sinase, de 2017)  têm o direito de votar e quanto a eles não há qualquer referência, no rol das causas de perda ou suspensão dos direitos políticos . 

Penso  que os presos condenados com  trânsito em julgado também deveriam votar, na perspectiva que a norma  deve ser interpretada restritivamente, uma vez que se trata de um direito fundamental. Portanto embora não possam ser eleitos, em razão da restrição constitucional, podem votar. Aliás, muitos países garantem participação em sufrágio aos presos condenados, como Portugal, Alemanha, Holanda, Suécia, França, Grécia, Espanha, Noruega.

Urge que as pessoas privadas de liberdade tenham interlocutores legítimos dentro do Estado. 

Lembremos que a normativa internacional categoriza o voto como direito humano. Neste sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, dispõem no artigo XXI:  Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. A Convenção Americana de Direitos Humanos,  estabelece no artigo 23 – Direitos políticos. 1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: a) de participar da condução de assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos; b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores; e c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.

Embora o direito esteja consagrado na Constituição e que muitos movimentos tenham sido realizados para que os tribunais e juízes eleitorais assegurassem este direito e que a resolução  23.554, de 18 de dezembro de 2017, do Tribunal Superior Eleitoral, tenha disposição sobre o voto do preso e adolescente, estabelecendo no artigo  42 que “ Os juízes eleitorais, sob a coordenação dos tribunais regionais eleitorais, deverão disponibilizar seções eleitorais em estabelecimentos penais e em unidades de internação tratadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a fim de que os presos provisórios e os adolescentes internados tenham assegurado o direito de voto”, o fato é que  nas últimas eleições, assim como as anteriores, o número dos presos e adolescentes que puderam participar foi baixíssimo.

O que se espera do TSE para as próximas eleições, de 2022, é que tome as providências necessárias e implemente de vez este direito e, nesta medida cumpra com o seu dever de Estado de garantir cidadania aos presos e aos adolescentes internados e que cesse a violação massiva que se constata em todas as eleições, desse 1988.

Kenarik Boujikian é desembargadora aposentada do TJSP, cofundadora da Associação Juizes para a Democracia

Foto capturada de vídeo

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

17 + 2 =