Em São Borja, na Fronteira gaúcha, a vereadora trans é a única mulher na Câmara dominada por homens brancos e de direita
Ayrton Centeno e Fabiana Reinholz, Brasil de Fato
São Borja, 63 mil habitantes, na divisa do Brasil com a Argentina, é um dos maiores produtores de arroz do país. Com economia calcada na lavoura, é uma região onde o mando é dos ruralistas, o que se traduz, politicamente, na hegemonia municipal do PP, partido do senador Luiz Carlos Heinze, também ele arrozeiro.
A sigla elegeu a maioria dos vereadores e controla a prefeitura. Mas nem sempre foi assim. São Borja é também o berço do trabalhismo, de Getúlio Vargas e João Goulart. Talvez um pouco por conta dessa memória, o conservadorismo local não conseguiu impedir uma novidade absoluta: a eleição de uma mulher trans, negra, periférica e de esquerda.
Lins Roballo, 38 anos, casada, vereadora pelo PT, foi uma das três trans eleitas em 2020 no estado. Eleita com 678 votos dados principalmente por mulheres, estudantes e o público LGBT, montou um gabinete com mulheres trans. Neste diálogo com o Brasil de Fato RS, ela fala sobre sua trajetória e as barreiras que enfrenta para desempenhar sua tarefa.
Brasil de Fato RS – Como é ser não só a única vereadora trans, mas também a única negra e do PT em uma Câmara dominada por homens brancos e conservadores? E como tem sido desenvolver seu mandato nesse ano de pandemia?
Lins Roballo – É um pouco desafiador ser a única vereadora na Câmara de Vereadores e, principalmente, ser a única mulher trans, e também ser a única das pautas negras. Seria melhor se houvessem espraiadas essas militâncias em outros corpos, em outras falas, em outras narrativas. Fortaleceria as nossas, fortaleceria as minhas, se auto completariam e teríamos mais pessoas representando essas situações dentro desse espaço.
Considero muito desafiador, porque para além da branquitude dos meus pares, (existe) a construção cultural histórica dos seus discursos frente a questões tão necessárias de serem debatidas hoje, como a da LGBTfobia, a do racismo, a do trabalho precarizado, a das vozes precarizadas. E desenvolver essa pauta nesse momento de pandemia, é um pouco diferente do que a gente tinha pensado. Na realidade, a gente não sai pra rua, não tem como sair, visitar as pessoas.
Que tipo de ataques sofreu durante o seu mandato, dentro e fora da Câmara?
Os ataques que sofro diretamente estão relacionados com a ideologia político-partidária. São poucos os direcionados a mim enquanto pessoa. Claro, chegam até mim enquanto ser humano, porque não tem como atacar uma mandata sem sinalizar ou marcar o corpo da pessoa que representa essa mandata.
Os múltiplos preconceitos – de raça, gênero, opção partidária e ideológica – que está enfrentando são aquilo que esperava ou está sendo mais difícil do que imaginava?
Eles são resultado do processo. Não tem como fazer política sem que haja um confronto. Uma política em que todos concordam e que não há um desacordo é, na realidade, uma política burra. Ela não produz credibilidade. Se todo mundo diz amém e concorda, obviamente que há aí um processo enfraquecido do que é a democracia e do que são as percepções políticas. A gente sabia que seria isso, vindo do partido em que estamos e com as pautas que a gente defende.
Seu gabinete também é integrado por mulheres trans. Sua chefe de gabinete foi exonerada pelo presidente do Legislativo. Sob qual acusação?
Meu gabinete é integrado pela diversidade. Eu, mulher preta da periferia, sou travesti. Tem outras duas mulheres trans e agora tem um homem trans, e a gente tá compondo ainda com mais algumas pessoas e que trazem esse aspecto do olhar da diversidade. Inclusive temos um homem branco cis que trabalha no nosso processo de comunicação digital.
Esses olhares diversos é que fazem com que a gente tenha uma percepção de muitos lugares da mesma realidade, das mesmas dificuldades. E a Rafa (Rafa Ella Matoso) foi exonerada pelo presidente do Legislativo (José Luiz Machado, do PP) sem nenhuma acusação fundada. Apenas ele não concordava com o que ela estava refletindo critica e democraticamente nas redes sociais.
Quais os seus projetos? Já apresentou algum deles? Como foi a reação dos colegas?
Os nossos projetos, requerimentos, indicações, qualquer documento que a gente produza, não são aprovados na Casa porque tem todo esse ranço deles conosco, essa perseguição política. Então a gente tem essa dificuldade, mas que não impede a nossa produção intelectual, produção de projetos de lei e de indicativos.
A gente fez oito PLs sobre a defesa do Dia Internacional da Mulher, uma a cada dia, do dia 1º ao 8 de Março. Produzimos outros PLs, indicativos e requerimentos que eu entendo que são estancados no processo antes de subirem pro Plenário. Na Comissão de Justiça e de Finanças sempre decidem contrário aos nossos projetos.
Num contexto de ódio, negacionismo, temos eleições como a tua, que garantem a diversidade. Como manter e evoluir nesse quesito? Qual a importância de uma política plural, diversa e baseada no respeito às diferenças?
Primeiro, é preciso olhar a política como vários lugares. Não é só o que acontece na Câmara de Vereadores. A política é administrativa, setorial, comunitária e coletiva. Quando a gente entende esses lugares, consegue mapear como construir esse espaço político dentro dessas caixas.
Administrativamente é dentro da Casa Legislativa, setorial é quando a gente consegue olhar pra outros setores da nossa sociedade, tipo periferia, comércio, trabalhadores, indústria, saúde, e consegue produzir reflexões, críticas, PLs e proposições em cima disso.
Comunitária é quando se consegue olhar os nossos territórios e as suas demandas particularizadas, seus desafios cotidianos, e coletiva é quando a gente consegue trabalhar esse olhar do todo.
Quem faz política não somos nós. Quem faz política são as pessoas que acreditam nela, votam em mandatos comprometidos e querem a transformação da política. Então, não é a Lins Roballo que quer isso. É a sociedade que tem que querer. É quem sofre os impactos da política que não é coletivizada.
Qual o conselho que daria para mulheres trans que gostariam de se candidatar a um mandato político?
O que eu diria pra todas as mulheres, trans, negras, da periferia, mães solteiras, trabalhadoras é para acreditarem no seu potencial. Vocês são a maioria da sociedade, vocês decidem as eleições. O que precisamos é aprender a largar esse vício que temos de defender essa cis hetero normatividade patriarcal e machista.
Quando as mulheres entenderem que precisam estar juntas e defender umas às outras e não defender o patriarcado – que é quem comanda, regimenta e retroalimenta o machismo – a gente terá realmente liberdade de expressão, de direitos, de autonomia, e principalmente de ocupar o poder.
Não ocupamos o poder hoje como deveríamos ocupar. Eles constroem as barreiras e ditam as regras. Estimulam quem querem e desestimulam quem não querem para ocupar os espaços políticos. Então, a gente não pode ter mulheres lá (no poder) só porque são mulheres. Temos que ter mulheres que sejam comprometidas com os direitos das mulheres, que defendam outras mulheres e que querem outras mulheres dentro desse processo.
Fale um pouco sobre sua vida, sua formação, sua opção política e o momento em que resolveu assumir sua condição.
Sou assistente social, mulher, negra, da periferia, travesti, trabalhadora, que desenvolve ações dentro do movimento social há 14 anos. Sou servidora pública concursada há oito anos, especialista em comunicação não violenta e mestra em Ciências Sociais.
Sou filha da dona Ilza Roballo, irmã de muitos outros, naturais e não naturais, biológicos e não biológicos, mas que fortalecem a minha história.
Acredito numa sociedade em que as liberdades sejam o principal foco da nossa existência. Sem liberdade, a gente não tem autonomia de decisão, democrática, consciente, não temos decisão efetiva, e não temos coragem de denunciar quem nos toma esse espaço e essa voz, o silenciamento.
Quero mesmo é que a liberdade seja o principal objetivo final de todo esse processo. Há de se ter liberdade. Só com ela tomamos as decisões, denunciamos quem nos ataca e enfrentamos aquilo que tenta nos eliminar.
Edição: Katia Marko
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Imagem: “Acredito numa sociedade em que as liberdades sejam o principal foco da nossa existência” – Foto: Arquivo pessoal