A terceira via não passa de uma miragem. Entrevista especial com Eduardo Sterzi

“Não há nada no ‘governo’ Bolsonaro que mereça ser chamado de governo, em qualquer sentido razoável da palavra”, afirma o pesquisador

Por: Patricia Fachin, em IHU

Enquanto o Brasil se aproxima de registrar a marca de 560 mil mortos em meio à pandemia de Covid-19, a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da Covid “tem sido fundamental para devolver alguma racionalidade à nossa vida política”, avalia Eduardo Sterzi, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo ele, a investigação tem trazido “à tona a corrupção desenfreada do ‘governo’ Bolsonaro e sobretudo das Forças Armadas” na compra de vacinas. “Sem a CPI, provavelmente não seria ainda geral a percepção de que este ‘governo’ e seus cúmplices militares e civis não tiveram o mínimo pudor em atrasar a compra de vacinas (que, obtidas no tempo certo, poderiam ter salvo já centenas de milhares de vidas), apenas para justificar, depois, sua aquisição emergencial junto a criminosos amigos da família presidencial e dos seus asseclas, e obviamente com direito a sobrepreço extorsivo (superfaturamento) e comissão (propina) para os infiltrados bolsonaristas, a maioria deles milicos, no Ministério da Saúde”, comenta.

A seguir, Sterzi avalia a aproximação do presidente com o Centrão, que, segundo ele, “é o último recurso de Bolsonaro contra o impeachment e a prisão, já que ninguém mais leva a sério as ameaças sempre farsescas de golpe militar a que ele costumava recorrer quando se via acuado”. Sobre o futuro político, pondera, a terceira via “não passa de uma miragem”. “Quando ficar óbvio que a terceira via não passa de uma miragem e que a escolha estará mesmo entre Bolsonaro e Lula, é provável que boa parte da elite econômica, que hoje diz se incomodar com o comportamento incivil do assassino ignorante que ela ajudou a colocar na presidência, volte a apoiá-lo. Sobretudo se ficar claro que, para Lula governar, terá de desfazer o estrago feito desde o golpe: por exemplo, sem o fim do teto de investimentos sociais (que a imprensa gosta de apresentar como teto de ‘gastos’), não há governo possível, só a repetição da catástrofe sob nova administração”, sublinha.

Eduardo Sterzi é graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor de Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

Confira a entrevista.

IHU – Que balanço faz do governo Bolsonaro, especialmente durante a pandemia, quando o Brasil ultrapassa o registro de 550 mil mortes?

Eduardo Sterzi – A rigor, não há nada no “governo” Bolsonaro que mereça ser chamado de governo, em qualquer sentido razoável da palavra. Muito pelo contrário, se levarmos em conta a etimologia: “governar” significa, na origem, conduzir uma nave, dirigir um barco. Estamos em meio à maior tormenta da história mundial recente e da história brasileira em particular ― e o presidente escolheu associar-se à tormenta contra os tripulantes e os passageiros do navio. O que, por mais absurdo que pareça, é, porém, não apenas um efeito da personalidade autoritária, delirante e corrompida de Bolsonaro, mas, sobretudo, uma agudização do receituário ultraneoliberal que vem sendo aplicado, com violência de torturador, desde o golpe contra Dilma Rousseff e a farsa antidemocrática encenada por Michel Temer, Eduardo Cunha e os criminosos do PSDB então comandados por Aécio Neves, José Serra e Aloysio Nunes.

O fascismo de Bolsonaro e da máfia que o cerca dispensou os últimos freios morais e civilizacionais que impediam que a devastação ultraneoliberal completasse seu trabalho – e o seu trabalho completo, vale frisar, é sempre uma forma de genocídio, um pouco mais lento ou, no caso de agora, acelerado. Não podemos esquecer que a economia brasileira – no que ela tem de vital, que não é e nunca será o PIB, mas, sim, a possibilidade de as pessoas viverem com dignidade – está ferida de morte desde as reformas impostas pelos golpistas em seguida à deposição de Dilma. E isso só piorou desde os primeiros dias do “governo” Bolsonaro, com a completa desorientação do ministro Paulo Guedes, um dos maiores mitômanos a já ocupar um cargo público neste país, rigorosamente incompetente até segundo os critérios complacentes com que a cleptocracia nacional escolhe e avalia seus capitães do mato – e, não por acaso, cada vez mais um ministro de fachada, já que o básico da política econômica ou é definido por Bolsonaro e pelos militares, ou é determinado pelo Congresso. A ele, hoje, cabe apenas um papel de garoto-propaganda, sempre um tanto patético, da aniquilação do Estado e da Sociedade – que ele mesmo, porém, para o bem e para o mal, não tem força individual nem institucional para entregar do modo como gostaria.

Em alguma medida, a pandemia está até servindo de álibi para Bolsonaro e Guedes – e chega a ser inacreditável como os jornais e revistas de grande circulação, que são destituídos de memória, atribuem facilmente a alta do desemprego e a volta da fome ao coronavírus, sem recordar que estamos agora somente no pico de uma escalada que vem de antes: vem de 2016 e dispara a partir de 2019. Mas claro que esse esquecimento é proposital, afinal, o empresariado brasileiro, formado na sua imensa maioria por completos bandidos, incluindo, com destaque, os donos das empresas de comunicação (que são também, muitas vezes, latifundiários, empreiteiros e/ou banqueiros), continua apostando, mesmo quando os maus modos do presidente começam a deixá-los desconfortáveis, no mitômano pobricida Paulo Guedes, nas privatizações (que são, antes de tudo, espoliação do patrimônio público, com efeitos catastróficos para a população muito previsíveis, sobretudo nos casos da Eletrobras e dos Correios) e na ampliação das reformas contra os trabalhadores.

Em suma, a pandemia – ou, melhor dito, a gestão da reação à pandemia por Bolsonaro, por Guedes e pelas Forças Armadas – serviu para revelar a natureza genocida não só deste governo, mas da política econômica imposta desde o golpe de 2015-2016. Mata-se de vírus – pelo patrocínio de sua difusão e pela transformação da aquisição de vacinas no maior esquema de corrupção da história do Brasil –, mas também se mata de fome. E de depressão, não podemos esquecer: quantos de nós não conhecemos diversos casos de pessoas, especialmente aquelas ligadas à cultura e às artes, que definharam até a morte ao longo dos últimos meses, destroçadas pela tortura contínua promovida por Bolsonaro a cada pronunciamento e ato? Morre-se, em suma, de Brasil: do Brasil violento, obscurantista, absolutamente corrupto que emergiu do golpe e se consolidou com a eleição de Bolsonaro.

IHU – Quais os efeitos da CPI da Covid-19 na conjuntura política?

Eduardo Sterzi – A CPI, ao trazer à tona a corrupção desenfreada do “governo” Bolsonaro e sobretudo das Forças Armadas, tem sido fundamental para devolver alguma racionalidade à nossa vida política. Sem a CPI, provavelmente não seria ainda geral a percepção de que este “governo” e seus cúmplices militares e civis não tiveram o mínimo pudor em atrasar a compra de vacinas (que, obtidas no tempo certo, poderiam ter salvo já centenas de milhares de vidas), apenas para justificar, depois, sua aquisição emergencial junto a criminosos amigos da família presidencial e dos seus asseclas, e obviamente com direito a sobrepreço extorsivo (superfaturamento) e comissão (propina) para os infiltrados bolsonaristas, a maioria deles milicos, no Ministério da Saúde.

Mas, além do trabalho fundamental da CPI para esse retorno à razão, acho importante também destacar o papel decisivo que pesquisadores de nossas universidades públicas têm desempenhado na revelação dos crimes da gestão bolsonarista da reação ao coronavírus. Ressalto especialmente o projeto “Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil”, coordenado pelos professores Deisy de Freitas Lima Ventura, Fernando Abujamra Aith e Rossana Rocha Reis, do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário – Cepedisa da Universidade de São Paulo – USP. Foram os estudos no âmbito deste projeto que comprovaram que a disseminação brutal do vírus no Brasil, com os resultados que bem conhecemos (mais de 550 mil mortos até agora, totalizando provavelmente mais de um milhão de mortos até o fim da pandemia), não se deveu a acidente ou equívoco, mas, sim, foi o resultado de uma estratégia deliberada do “governo” Bolsonaro. Não por acaso, este estudo foi incluído como uma das principais peças comprobatórias no relatório da CPI.

IHU – Como interpreta não só a aproximação do presidente com o Centrão, mas a declaração dele de que sempre foi do Centrão?

Eduardo Sterzi – Encaro como mais uma mentira de Bolsonaro. Até para se depreciar, em suma, ele mente. Ele sempre foi do chamado “baixo-clero”, não do que conhecemos como “centrão”. Sempre foi considerado desqualificado até para fazer parte do “centrão” – que, de centro, aliás, não tem nada; são parlamentares de direita que agem como mercenários a serviço de quem pagar mais, podendo, por isso mesmo, facilmente se voltar contra o antigo contratante. E a interpretação para essa declaração é fácil: conectar-se ao Centrão é o último recurso de Bolsonaro contra o impeachment e a prisão, já que ninguém mais leva a sério as ameaças sempre farsescas de golpe militar a que ele costumava recorrer quando se via acuado.

IHU – Que avaliação faz das manifestações que começaram a ocorrer contra e pró-Bolsonaro? O que elas indicam?

Eduardo Sterzi – Na verdade, as manifestações pró-Bolsonaro nunca deixaram de ocorrer, mesmo no auge da pandemia: como Bolsonaro é antes um eterno candidato do que um presidente no sentido próprio da palavra, ele sempre teve de manter sua campanha nas ruas. A novidade é que, agora, essas manifestações estão sempre mais reduzidas – daí, aliás, ele ter recorrido ao teatro ridículo das “motociatas”, já que, como motos são barulhentas e, em movimento, ocupam bem mais espaço do que as pessoas a pé, dois mil motoqueiros dão facilmente a impressão de serem vinte mil ou até mais. Mas continuam sendo só dois mil – e sobre isso precisamos ter clareza.

Já as manifestações anti-Bolsonaro me parecem, antes de tudo, um grito de sobrevivência. Como dizia um cartaz que apareceu em mais de um lugar (aliás, salvo engano, tradução de um cartaz visto antes nos protestos da Colômbia), se saímos às ruas contra Bolsonaro em plena pandemia, é porque o presidente é, hoje, um perigo maior do que o vírus – ele é, na verdade, o grande potencializador do vírus, o principal responsável por transformar uma pandemia num genocídio. As pessoas, em suma, se cansaram de ver morrer familiares e amigos – isto é, se cansaram de morrer, porque, com cada pessoa querida que morre, morremos também um pouco.

IHU – Que perspectivas vislumbra para a próxima eleição presidencial?

Eduardo Sterzi – Mais do que perspectivas tenho expectativas, sendo a primeira muito simples: que ela ocorra. O que, como sabemos, não é garantido. E espero que, desta vez, o povo brasileiro faça uma escolha racional, e não uma opção suicida, como foi a de 2018. As pesquisas dão Lula como favorito, podendo ganhar até no primeiro turno – mas, até o dia da eleição, muita coisa ainda vai acontecer, e não duvido que Bolsonaro recupere boa parte de sua popularidade, hoje minguante, com base num acirramento das campanhas de notícias falsas contra o PT por meio do WhatsApp e das igrejas neopentecostais.

De resto, quando ficar óbvio que a terceira via não passa de uma miragem e que a escolha estará mesmo entre Bolsonaro e Lula, é provável que boa parte da elite econômica, que hoje diz se incomodar com o comportamento incivil do assassino ignorante que ela ajudou a colocar na presidência, volte a apoiá-lo. Sobretudo se ficar claro que, para Lula governar, terá de desfazer o estrago feito desde o golpe: por exemplo, sem o fim do teto de investimentos sociais (que a imprensa gosta de apresentar como teto de “gastos”), não há governo possível, só a repetição da catástrofe sob nova administração.

Eduardo Sterzi (Foto: Arquivo pessoal)

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