Crise de Estado e crise da hegemonia fascista

Se a estratégia do golpe vencer, este não distinguirá liberais, comunistas, católicos ou protestantes, social democratas de esquerda e de direita, de centristas democráticos

Por Tarso Genro, em A Terra é Redonda

A crise de Estado em curso poderá ser superada dentro da ordem, mas ela deixará sequelas irremovíveis no futuro democrático do país se uma saída não for construída a tempo. Está em curso, também, uma crise da hegemonia fascista sobre as políticas de Estado, que abrem perspectivas de luta e redenção democrática, que demandam talento e organização para a meia-volta da ditadura.

A democracia foi concebida como método político que legitima governos a partir das maiorias eleitorais, mas esta legitimidade é perdida quando a maioria que forma o governo fere, sistematicamente, o princípio da legalidade. Ou seja, a democracia é o regime de domínio das maiorias formais, mas estas – quando o seu governo representativo viola a legalidade – perdem o direito de governar.

É a clássica lição de Luigi Ferrajoli, que se aplica por inteiro ao governo Bolsonaro, cuja origem ilegítima está situada inclusive antes da sua eleição: no golpe que retirou ilegalmente Dilma Rousseff do poder. Naquele voto pelo “impeachment”, Bolsonaro explicitou, ao propagar as torturas cometidas contra Dilma, uma nova ética política pela qual passaria a ser tolerável, na democracia, a estética necrófila e a moral da indiferença com os homicídios coletivos.

Esta moral deveria, na sequência, mover um programa que naturalizasse, no cotidiano – pela voz do líder – um sentido que esmagasse o passado (a nossa débil memória democrática), chamando as pessoas a viverem um cotidiano de “presente perpétuo”. Um presente agregado pelo ódio, com um espírito de rebanho em torno da política do imediato, que não exige nenhum futuro claro, apenas uma intuição fundada em “Deus, pátria e família”.

Muitos filósofos observaram, para entender os fluxos reais da política, o cotidiano coletivo (das “massas”) e das pessoas (isoladas na sua familiaridade), para compreender ou refutar as “grandes narrativas” da história. As narrativas do cotidiano – de um ciclo ou de um período – foram garimpadas pela busca dos hábitos, diálogos registrados na solidão dos conventos ou das casas “de família” – nas fábricas e nos lupanares – para substituir os argumentos das grandes narrativas, inacessíveis ao comum dos mortais. Hoje este cotidiano circula nas redes na velocidade da luz e o presente se torna cada vez mais presente e mais perpétuo.

As situações verificáveis nestas pistas da cotidianidade refutariam ou comprovariam as abordagens mais amplas, destinadas a desvendar a história de uma forma mais geral e abstrata. A forma abstrata das grandes narrativas passaria a ser compreendida, então, como insuficiente, por um pensamento analítico não-dialético, de olhar o passado: este já seria considerado passado a partir do próprio momento em que se constituía o seu conceito.

Richard Rorty (1931-2007), pragmático-analítico da academia americana, que desconfiava da importância da verdade escreveu um artigo (2007) onde previu – a partir da observação empírica do cotidiano político americano – a emergência, nas democracias modernas do ocidente, de forças políticas populistas com líderes como Trump, que iriam buscar o aniquilamento dos valores do convívio diário de caráter liberal-democrático.

Antonio Gramsci (1891-1937) reportou-se com frequência ao “senso comum” e ao “bom senso comum”, exercitados na vida diária, para compreender determinados ciclos políticos. Para Santo Agostinho o “ensinar (era) fazer aprender, e aprender não é mais do que relembrar aquilo que já se sabe”, cuja sapiência seria dada, então, por uma experiência da vida que seria retirada do imediato, pela experiência, não através de conceitos gerais.

Uma célebre conferência do grande Paulo Sérgio Pinheiro (“Estado e terror”) publicada no livro Ética, organizado por Adauto Novaes (Melhoramentos,1992) integra esta visão da cotidianidade histórica com a natureza do Estado, cuja maquinária destinada à violência “tornou-se intensamente industrializada: (…) produção e destruição são as faces desse Jano” . Ele contém o cotidiano da exceção para os “loucos, prostitutas, prisioneiros, negros, hispânicos, árabes, curdos, judeus, ianomamis, aidéticos, homossexuais, crianças, operários” (que) “irão nascer e morrer, sem terem conhecido o comedimento do Leviatã”, ou seja, as conquistas civilizatórias na ordem jurídico-política moderna.

Retiremos do senso comum no debate político um exemplo emblemático: Guga Chacra é um simpático jornalista neoliberal, bem informado e inteligente, que representa hoje – na “doidera” que vivemos – um polo democrático-liberal na grande imprensa. É o polo que não aceita a grosseira desumanidade que arrasta o bolsonarismo para uma tentativa de golpe.

É importante perceber, no senso comum do jornalismo democrático, que a sua defesa do sistema capitalista hoje, não se articula com a defesa de Bolsonaro, porque este tem métodos de uma crueldade refutada pela mesma consciência imediata que aceitou o golpe contra Dilma, com uma naturalidade alarmante. Este golpe, aliás – que está dentro de um ciclo em andamento desde aquela deposição ilegal – foi projetada por um centrão “sem princípios”, em aliança com a extrema direita “com princípios fascistas”, mas que até ali não teria ultrapassado o comedimento do Leviatã.

Guga sabe que, se a estratégia do golpe vencer, este não distinguirá liberais, comunistas, católicos ou protestantes, social democratas de esquerda e de direita, de centristas democráticos de todas as raízes, mas envolverá todos naquele conceito de “esquerda globalista”, que dispensa qualquer reflexão para distinguir campos ideológicos: esquerda globalista é apenas uma imputação de mal absoluto, embora nem os seus inimigos saibam, com certeza, onde ela está nem exatamente o que ela é.

Trata-se na verdade, com este anátema, de imputar a certas pessoas a condição de no futuro serem números de uma nova experiência necrófila: a de um nazi-fascismo pós-moderno e assassino – ora engendrado em porões desconhecidos e soturnos do capital – na qual sobrariam no poder pessoas como Rodrigo Constantino, Bolsonaro, fabricantes de armas, empresários ligados ao milicianismo e torturadores contumazes.

Num diálogo – recentemente tuitado nas redes – Guga retruca corretamente Rodrigo Constantino (que adora Bolsonaro por ele representar as “melhores tradições do Ocidente”) que Ângela Merkel, Boris Johnson, Emmanuel Macron não são apóstolos da “esquerda globalista”, portanto não poderiam ser localizados no campo dos inimigos das “tradições do ocidente”, como sustenta Constantino.

Na verdade, neste particular, ambos têm razão. O ocidente não tem somente “uma” tradição, pois nela vicejam – ao mesmo tempo – violência e solidariedade, justificativas para tortura e defesa dos Direitos Humanos, compaixão e ódios. A modernidade produziu diferentes “sensos comuns”, que são indiferentes às narrativas históricas mais abstratas, que muitas vezes perdem a importância da vida imediata das pessoas, para a configuração das suas ideias e reações políticas.

Com a crise de Estado em curso, combinada com a crise da hegemonia fascista, a luz da unidade democrática e republicana pode aparecer no horizonte, à semelhança do que ocorreu na luta pelas “Diretas já”, para jogar o fascismo na sarjeta da História e reiniciarmos a composição do futuro, que foi interrompido pela insanidade fascista acumpliciada com a destruição neoliberal, que nos fez, como queria Ernesto Araújo, párias na nova ordem mundial.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

Foto: Luis Moura /Estadão

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