Camponeses doam sementes crioulas aos povos Guarani e Kaiowá, no MS

Para Frei Sérgio, doação de 3,4 toneladas de sementes é uma forma de devolver aos povos indígenas seu próprio alimento, sequestrado pelo sistema colonial

por Marina Oliveira, em Cimi

Solidariedade, emoção e um novo começo: assim ficará lembrado o dia 13 de agosto de 2021 por todos que participaram da entrega das 3,4 toneladas de sementes crioulas e agroecológicas às comunidades indígenas dos povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul (MS).

A ação foi executada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e pela Associação Nacional de Agricultura Camponesa (ANAC) e contou com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Instituto Cultural Padre Josimo e das cooperativas Cooperbio, Cooperfumos, Bionatur e ArpaSul.

Para Frei Sérgio Görgen, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a sociedade branca cometeu um “sequestro de sementes”, a ponto de desapropriar os povos indígenas de suas próprias produções e alimentos. “Por parte dos camponeses e das camponesas, essa ação é uma forma de devolver aos povos indígenas as sementes que eram deles. A nossa intenção é fortalecer a resistência mútua”, explicou. “Aprendemos muito com os povos indígenas, com a resistência, com a cordialidade, com a espiritualidade e com a força da paciência deles”.

Presente no encontro realizado em uma das comunidades, na Terra Indígena (TI) Rancho do Jacaré (MS), Rosicleide Vilhalva, do povo Kaiowá, avaliou como “muito importante” a devolução das sementes. “Essas sementes são sagradas e fortalecem a nossa existência como ser humano. A semente é o que nos fornece alimento para comer em casa. Durante a pandemia, muitas comunidades entraram em uma situação de vulnerabilidade, vivendo na miséria e passando fome. Receber de volta aquilo que nos foi tirado é só uma parte. É o mínimo do mínimo”, desabafou.

Mas, por outro lado, Rosicleide entende que quem realmente deveria devolver as sementes é quem está “destruindo as terras por meio dos agrotóxicos”. “Acredito que não são essas pessoas [pequenos agricultores e parceiros] que deveriam devolver as nossas sementes, mas sim aquelas que estão envenenando os nossos alimentos, o nosso corpo e a nossa saúde”.

“O agronegócio é a extinção da humanidade. A nossa luta não vai parar nunca, hoje compreendemos como lutar, sempre buscando novas estratégias para seguir em frente. E hoje, nós, como povos indígenas, não iremos mais esperar pelas demarcações das terras, nós mesmos iremos fazê-las, porque se não fizermos isso, todos vão sofrer as consequências. Eles [ruralistas] não param de produzir e derramar veneno, mesmo sabendo que isso é a extinção dos seres humanos”, completou.

Fragilidade histórica

A realidade das comunidades indígenas dos povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, é marcada por um vasto histórico de ataques, violência e racismo. Ao mesmo tempo em que os povos da região resistem ao longo de anos, defendendo seus territórios e aspectos culturais, há também uma danosa violação dos direitos humanos.

De acordo com Matias Benno, missionário do Cimi Regional MS, com o retorno da semente, há também um “resgate mínimo de soberania alimentar”. “Já faz um tempo que a fome é uma das vizinhas mais próximas dos povos indígenas aqui na região. Então, essa iniciativa é também uma possibilidade de estabelecer um diálogo orgânico com as lideranças, a fim de discutir sobre bioinsumos e formas ‘não predatórias’ de cultivo a partir de um real desenvolvimento. Diferente do agronegócio, a ideia é que seja um desenvolvimento respeitoso com a ‘Mãe Terra’, na direção exata daquilo que os indígenas procuram”.

Na mesma linha, Rosicleide falou sobre a importância das sementes crioulas para a preservação da vida e da identidade dos povos indígenas. “As sementes são peças fundamentais para a nossa saúde. Elas afetam o nosso modo de ser, a nossa forma de plantar. Esses alimentos têm desaparecido em nossas comunidades, o que inclusive tem a ver com a nossa perda de território. Muita coisa se perde quando é retirado de nós, daquele lugar de pertencimento”.

Inicialmente, foram escolhidas dez comunidades indígenas dos povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. “O critério de escolha é justamente a fragilidade de conseguir manter uma soberania sobre os seus territórios, muito por conta das cicatrizes deixadas pelo agronegócio nessas comunidades”, disse Matias.

O que foi devolvido

Para a ação, foram selecionadas sementes de milho, feijão, arroz de sequeiro, amendoim, gergelim, fava, urucum, feijão miúdo, guandu e hortaliças. De acordo com o MPA, o projeto também garante a entrega de biofertilizantes e cerca de 1,5 toneladas de remineralizador de solo (pó de rocha), tecnologias de origem indígena.

“Semente crioula”

Matias explicou também o conceito de “semente crioula”. “Ela é uma semente ‘plenamente viva’, não transformada pela indústria à luz da transgenia, ou seja, com suas características primárias bem salvaguardadas. Os povos indígenas se referem às sementes originárias como aquelas que se desenvolvem longe da lógica do mercado, fora de toda essa redoma das empresas monopolistas, e que crescem de acordo com os processos da natureza”.

Sementes crioulas e agroecológicas são entregues aos Guarani e Kaiowá da Terra Indígena Rancho do Jacaré, no MS. Foto: Mateus Quevedo

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