Os monstros da Paulista. Por Fausto Salvadori

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Debaixo do sol quente e do céu azul do Sete de Setembro, ouvindo vuvuzelas e palavras de ordem edificantes sobre Deus, pátria e família, eu contemplava multidões de pais, mães, avós, filhos, bandeiras, sorrisos e crianças, e em meio a tudo isso pensava em como monstros deveriam se parecer.

O que aquelas pessoas reunidas ali na Paulista defendiam, eu sabia, era uma monstruosidade. Não uma monstruosidade disfarçada, como nas manifestações verde e amarela de 2016, em que os defensores da intervenção militar, da ditadura e da tortura ocupavam as bordas do ato e do discurso central — ainda que convivendo tranquilamente e sem problema com os demais, é bom lembrar. No Sete de Setembro da Paulista de 2021, contudo, a mobilização foi toda construída em torno da ideia de rompimento da ordem democrática para salvar um governo de extrema-direita, responsável direto pela morte de 400 mil pessoas (segundo o cálculo do epidemiologista Pedro Hallal).

Uma monstruosidade escancarada. Ainda que, debaixo do sol, os monstros não se parecessem com monstros, mas comigo. A multidão que celebrava a monstruosidade era formada por pais carregando crianças em seus ombros, avôs de bengala, uma doce senhorinha abraçada a uma boneca — uma miniatura de Jair Bolsonaro. Faz tempo que sei disso, mas é sempre assustador relembrar como as piores monstruosidades são praticadas por pessoas como eu e famílias tão parecidas com a minha, sob o clima de uma insuportável e assustadora… normalidade.

A multidão sorridente de famílias verde e amarelo golpistas me fez pensar nos cartões postais vendidos no Sul dos EUA que mostravam imagens de sorridentes famílias brancas posando diante de corpos negros linchados. Num país em que os negros são 79% dos mortos pela polícia, tirar selfies sorridentes com a PM, como fazem essas pessoas, não é uma atitude lá muito diferente das famílias que se refestelavam nas “cenas pastoris do Sul galante”, como cantava Billie Holiday.

É a monstruosidade de um país que se construiu em torno da escravidão e morte de africanos e povos originários e que depois adotou um disfarce de democracia, adornado com noções de direitos iguais e respeito às diferenças que nunca bastaram para modificar o estado de coisas de uma das estruturas sociais mais desiguais do mundo, que continua a manter um arcabouço de policiamento e sistema judicial que serve basicamente para manter o controle social e racial da população por meio da repressão e da morte.

Dois dias depois, revivi a mesma sensação da Avenida Paulista ao ler a reportagem de Jeniffer Mendonça sobre a investigação realizada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre um juiz do Tribunal de Justiça Militar, Ronaldo João Roth, suspeito de favorecimento ao advogado José Miguel da Silva Junior, defensor de dois PMs acusados de estuprar uma jovem de 19 anos dentro de uma viatura em Praia Grande.

O que chama atenção, nessa história, é o muro da broderagem, a rede de solidariedade masculina que se forma em torno de um grupo de homens para violentar uma menina e depois garantir que ninguém seja responsabilizado pelo crime. No julgamento dos PMs, prevaleceu a ideia de que, se uma jovem, dentro de uma viatura da Polícia Militar, cercada por dois policiais armados, não esboçou reação quando um desses homens ordenou que ela lhe fizesse sexo oral, então é porque ela estava querendo e gostando. Típica bravata de vestiário de academia, mas que ganha ares de argumento jurídico ao ser escrita na forma de sentença pelo juiz: “ela não ofereceu nenhum resistência física, também nada falou, nem pediu ajuda ou socorro ao motorista”. Nas fotos obtidas pela reportagem, os sorrisos do juiz e do advogado dos policiais, dois bons amigos dividindo jantares e eventos. De novo o clima de normalidade, os sorrisos e a broderagem de quem fala em valores elevados enquanto compactua com os piores crimes.

Tudo isso é a cara de um Brasil que faz da monstruosidade o velho normal de sempre e que se acostumou a transformar os monstros em heróis, inclusive na forma de estátuas. O bolsonarismo é hoje a encarnação mais acabada desse monstro e por isso deve ser combatido com todas as força. Mas sabendo que os monstros existiam antes e vão continuar a existir depois, mesmo quando Jair Bolsonaro for passado.

Fausto Salvadori é diretor de redação da Ponte

Manifestantes inflam objeto fálico na Aveinda Paulista na tarde de 7 de setembro de 2021. Foto: Daniel Arroyo / Ponte

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