Reunidos em Nova York, governantes serão incapazes de adotar medidas coordenadas contra pandemia. Lógicas de mercado submetem Direito à Saúde aos lucros corporativos e à concentração internacional de riquezas
por Leila Salim e Raquel Torres, em Outra Saúde
MENOS PROMESSAS, MAIS AÇÕES?
Cercada de expectativas, começa hoje, em Nova Iorque, a 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas. A pandemia e, especialmente, a reconstrução do mundo após a crise sanitária aparecem como tema transversal de quase todos os eixos da agenda a ser discutida por chefes de Estado e de governo. Além disso, as mudanças climáticas, o acesso à alimentação saudável e a garantia dos direitos humanos no atual contexto de crise e crescente instabilidade política e econômica devem protagonizar os debates. “Construindo resiliência por meio da esperança – para se recuperar da Covid-19, reconstruir de forma sustentável, responder às necessidades do planeta, respeitar os direitos das pessoas e revitalizar as Nações Unidas” é o tema oficial da reunião.
Resta saber se, para além das pretensões e promessas expressas no título pomposo, a Assembleia será capaz de arrancar compromissos efetivos, em escala global, quanto a ações e soluções para os problemas a serem abordados. Em relação à pandemia, por exemplo, urge enfrentar o debate sobre a iniquidade de cobertura vacinal entre países ricos e pobres, para que as projeções de “reconstrução sustentável” de um mundo pós-pandêmico possam ser feitas com os pés no chão da (dura) realidade. É o que apontam os pesquisadores Santiago Alcázar e Paulo M. Buss em artigo publicado pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
Relembrando a definição dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável pela Assembleia de 2015, que definiu 17 metas globais a serem atingidas até 2030, eles questionam: “Mais de ano e meio após o anúncio de que estávamos em pandemia, o que se tem? O que há daquela visão generosa e promissora da Agenda 2030, que ganhou todas as manchetes no ano mágico de 2015? Milhões de vidas perdidas. Economia e comércio derretendo, como camadas polares ante o aquecimento global. Empregos esfumados, como florestas queimadas. Solidões e vazios, como o avanço da desertificação. Frustração, raiva, intolerância, discriminação, racismo, xenofobia, violência, negacionismo, como na realidade do dia a dia, tão incompreensível como um mistério divino”.
No ano passado, as primeiras resoluções da Assembleia Geral da ONU sobre a pandemia foram incluídas no bloco que discute os chamados “assuntos de organização, administração e outros”. Para se ter uma ideia da extensão da agenda, somente neste bloco serão 63 itens e 40 subitens em debate. Entre eles, um especificamente dedicado à “saúde global e política exterior”, que deve se concentrar em propor ações para o enfrentamento da crise sanitária.
Como destaca o Health Policy Watch, a discussão já começa com um tema incômodo no ar: o G20, grupo formado pelos ministros das finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia, não cumpriu seu compromisso de fornecer US$ 75 bilhões em financiamento público internacional para a prevenção da pandemia em escala global. O compromisso com as iniciativas de distribuição equitativa de vacinas e tratamentos para a covid-19, como a Covax Facility e o acelerador ACT, impulsionado pela OMS, devem entrar na pauta. Cabe lembrar que o consórcio acaba de anunciar mais uma redução na previsão das doses de imunizantes a serem distribuídas aos países pobres.
Apesar da abertura oficial hoje, o debate propriamente dito começará na semana que vem. No dia 21, acontecem os discursos dos chefes de Estado e altas autoridades e, como manda a tradição, cabe ao Brasil iniciar os discursos oficiais. Bolsonaro já confirmou que irá a Nova Iorque discursar…
APROVEITANDO…
A alta cúpula da ONU parece já estar pegando o embalo da (até agora confirmada) presença de Bolsonaro na Assembleia Geral, na próxima semana, para endereçar críticas e colocar o Brasil sob os holofotes. Ontem, Michelle Bachelet, alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, dedicou um tempo de sua fala na última sessão deste ano do Conselho de Direitos Humanos da ONU para reafirmar que o país integra a lista dos cerca de 40 países onde o estado dos direitos humanos é mais “preocupante”. Bachelet destacou, especificamente, a situação dos povos indígenas e o projeto de Bolsonaro para tornar a legislação “antiterrorismo” brasileira ainda mais perigosa aos movimentos sociais e ativistas defensores dos direitos humanos.
Também ontem, os membros do Comitê da ONU para Desaparecimentos Forçados cobraram do governo Bolsonaro esclarecimentos sobre a relação entre a milícia e agentes do Estado, a violência policial e mesmo sobre a forma pela qual o governo lida com as vítimas da ditadura empresarial-militar brasileira. No entanto, como contou a coluna de Jamil Chade, os membros da delegação brasileira ao Conselho da ONU minimizaram as denúncias sobre a atuação de milícias paramilitares no Brasil e afirmaram que o número de desaparecimentos vinculados à atuação desses grupos por aqui não justificaria a impressão de esforços específicos para coleta de dados e investigações.
CONTRA O REFORÇO GERAL
Um grupo de especialistas da OMS e da FDA (a agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos) publicou ontem, no periódico The Lancet, uma revisão dos estudos sobre a efetividade das vacinas contra a covid-19 ao longo do tempo. A conclusão é que, até o momento, doses de reforço não são necessárias para a população em geral.
Os autores reconhecem que uma dose extra pode ser apropriada para grupos que não conseguiram atingir um nível adequado de proteção com o regime regular, como as pessoas que receberam vacinas de baixa eficácia e as que são imunocomprometidas – embora, nesse último caso, não seja possível ainda quantificar qual seria o benefício da dose adicional.
Dizem ainda que, em algum momento no futuro, a população em geral pode vir a precisar de reforços. Mas esse ainda não é o caso. A revisão mostra que a proteção das vacinas continua muito alta contra todas as variantes, incluindo a Delta: na média, elas são 95% efetivas em prevenir doença grave (os estudos de efetividade analisados se referem, em sua maioria, às vacinas de mRNA).
Apesar de haver uma queda no nível de anticorpos com o tempo, isso é esperado e não significa perda de eficácia, uma vez que boa parte da proteção é conferida pelas células de memória. “Embora uma terceira dose possa propiciar algum benefício, as vantagens de imunizar os não vacinados são muito maiores”, pois isso “impedirá a evolução de mais variantes”, diz o texto.
Além do entrave à melhor distribuição de imunizantes pelo mundo, outro problema da oferta de reforços sem evidências de sua necessidade diz respeito ao cálculo dos riscos e benefícios. Esse balanço é inegavelmente positivo em relação aos regimes de doses adotados até agora. Mas os benefícios dos reforços são marginais para a população em geral, enquanto os riscos podem vir a aumentar. Essa é uma ponta que não deve ficar solta, especialmente quando tantos países ainda sofrem com hesitação vacinal.
Em tempo: o fato de o trabalho ser assinado por dois membros da FDA é digno de nota. Isso porque um mês atrás governo Biden prometeu oferecer o reforço a toda a população – antes de ouvir órgão. Os dois funcionários, Marion Gruber e Phil Krause, inclusive anunciaram que deixarão a agência entre outubro e novembro por conta desse embate. Provavelmente o artigo vai aquecer as discussões na Casa Branca.
POR QUE ESTÃO LÁ?
Um estudo interessante (ainda sem revisão de pares) divulgado ontem sugere que, nos Estados Unidos, quase metade das pessoas internadas com covid-19 após o início da vacinação em massa têm casos leves ou mesmo assintomáticos.
A reportagem do site The Atlantic explica que haveria duas explicações para essa confusão involuntária com os dados das hospitalizações: de um lado, há pacientes com sintomas leves que são internados para observação por terem comorbidades, por exemplo. De outro, há pessoas que foram internadas por problemas não relacionados à covid-19 e descobriram que estão infectados apenas porque há testes de rotina no momento da admissão.
A conclusão dos autores do artigo se baseia nos registros de quase 50 mil internações em cerca de 100 hospitais pelo país. Eles definiram os casos moderados e graves como aqueles em que os pacientes usaram oxigênio suplementar ou tiveram um nível de oxigênio no sangue abaixo de 94%. Viram que, até janeiro de 2021, a proporção de pessoas com doença leve/assintomática era de 36%; depois, subiu para 48%. Dos vacinados, 57% tinham casos leves ou assintomáticos, e isso cresceu até mesmo entre os pacientes não-vacinados – o que talvez se explique por eles serem em geral mais jovens.
Há uma importante limitação: o estudo se estendeu até 30 de junho, pouco antes de a Delta dominar o país. De lá para cá, os casos e internações saltaram e atingiram níveis não vistos desde o começo do ano. Mas, nos hospitais, predominam as pessoas não-vacinadas. E, como os estudos de efetividade continuam mostrando boa proteção das vacinas contra casos graves em face da Delta, é bem possível que as observações continuem valendo.
SÓ UMA DOSE
O Reino Unido tem hesitado em autorizar a vacinação contra covid-19 para pessoas entre 12 e 15 anos sem comorbidades – e tem recebido muitas críticas por conta disso. Ontem, finalmente, cientistas do governo aprovaram uma recomendação. Mas com uma diferença em relação ao que vem sendo feito em outros lugares: esses adolescentes devem receber apenas uma dose do imunizante, que será da Pfizer/BioNTech.
A preocupação das autoridades britânicas quanto a essa faixa etária se deve a um efeito adverso muito raro das vacinas de mRNA: a miocardite, uma inflamação no coração que tem sido mais comum em pessoas jovens, particularmente do sexo masculino, e que em geral acontece após a segunda dose. O risco de isso acontecer é muito baixo (e, apesar de requerer hospitalização, o problema é temporário e a maior parte das pessoas se recupera dentro de um mês). Mas o risco de ter covid-19 grave nessa faixa etária também é muito baixo – daí a cautela.
A decisão de oferecer somente uma dose a essa população já foi tomada também pela Noruega, pelos mesmos motivos. A aposta é que, se uma injeção já protege bem adultos, provavelmente a resposta será melhor ainda entre adolescentes, e pode ser o bastante. Mas, tanto na Noruega como no Reino Unido, o efeito e a necessidade da segunda dose serão avaliados com o tempo.
No caso do Reino Unido, apesar da recomendação, a decisão final será tomada individualmente pelos ministros da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte.
RETA FINAL
Agora tem data pra acabar: no último domingo, a cúpula da CPI da covid definiu que o relatório final das investigações deve ser apresentado por Renan Calheiros (MDB-AL) até o próximo dia 23 e votado daqui a duas semanas, em 28 ou 29 de setembro. Alguns dos próximos passos, no entanto, ainda estão em aberto: não houve consenso sobre a convocação de Karina Kufa, advogada de Bolsonaro, para depor à comissão.
Ontem, Renan Calheiros conversou com o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, a quem pediu ajuda quanto à fundamentação jurídica do texto final da CPI. A principal preocupação do jurista, segundo o Valor, é impedir que a Procuradoria-Geral da República e o presidente da Câmara dos Deputados possam arquivar o relatório final de comissões parlamentares desse tipo. Segundo ele, seria importante que o relatório apontasse a necessidade de mudanças legislativas para minorar os “poderes imperiais” exercidos pelos órgãos de controle.
E está previsto para hoje um depoimentos mais aguardados da CPI: o de Marcos Tolentino, apontado como “sócio oculto” da FIB Bank, a empresa que se apresentou como fiadora no contrato da Precisa Medicamentos no caso Covaxin. Tolentino, como se sabe, é amigo pessoal do líder de Bolsonaro na Câmara, o deputado e ex-ministro da saúde Ricardo Barros, envolvido até o pescoço em suspeitas de irregularidades em contratos na Pasta.
Na quarta será a vez de Marconny Albernaz de Faria, apontado como lobista da Precisa. E novas revelações podem ampliar o leque das investigações: segundo apurou a Folha, o intermediário era próximo do núcleo familiar do presidente e participava de confraternizações com Ana Cristina Valle, ex-mulher de Bolsonaro, seu filho mais novo, Renan, e com a própria advogada Karina Kufa.