Reconhecido mundialmente, Freire desperta críticas da extrema direita no Brasil por propor uma pedagogia emancipadora
Por Daniel Giovanaz, no Brasil de Fato
Há exatos cem anos, nascia no Recife (PE) um dos mais influentes pensadores brasileiros: Paulo Reglus Neves Freire.
O intelectual pernambucano é um dos autores mais lidos e celebrados da pedagogia mundial.
“Paulo Freire não é só um filósofo, um pedagogo: é um pensador que transita por vários saberes”, observa Adelino Francisco de Oliveira, doutor em Filosofia e professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
“A cada leitura, você percebe sua densidade e qualidade teórica, mas também a generosidade, que é um marcante da personalidade dele.”
Viúva de Paulo Freire, Ana Maria Araújo, conhecida como Nita, afirma que os livros dele são cada vez mais procurados.
“Paulo está sendo mais lido hoje do que nos anos 1990, quando estava vivo. Porque naquela época vigorou muito a desconstrução da utopia, era o neoliberalismo pragmático. E Paulo é um autor utópico”, analisa.
“Hoje, com o mundo em crise, cheio de ódios e antagonismos, há a necessidade de um mundo mais ameno, onde ‘amar seja possível’, como ele dizia, então as pessoas procuram mais a literatura de Paulo.”
Nita escreveu a biografia Paulo Freire – Uma história de vida, um dos livros vencedores do Prêmio Jabuti de 2007.
Relembre a trajetória do patrono da educação brasileira e entenda a relevância de sua obra.
Formação e amadurecimento
Paulo Freire viveu com a família no Recife até os dez anos. O pai, Joaquim Temístocles Freire, era capitão da Polícia Militar. A mãe, Edeltrudes Neves Freire, fazia trabalhos domésticos, bordava e tocava piano.
Embora fizessem parte da classe média, os Freire chegaram a passar fome em meio à crise do final da década de 1920. Paulo só conseguiu estudar, porque os irmãos Stela e Temístocles ajudaram desde cedo com as despesas da casa.
Em 1931, a família se mudou para o município vizinho, Jaboatão dos Guararapes (PE).
Paulo cursou o ginásio no Colégio 14 de Julho, no centro do Recife. Depois de perder o pai, aos 13 anos, mudou para o Colégio Oswaldo Cruz. Em troca da gratuidade na matrícula, trabalhou como auxiliar de disciplina.
Aos 22, ele ingressou na Faculdade de Direito do Recife (FDR), que hoje faz parte da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Durante e após a graduação, Freire foi professor de Língua Portuguesa no Oswaldo Cruz. Com o diploma em mãos, também passou a dar aulas de Filosofia na Escola de Belas Artes da UFPE.
Em 1944, casou-se com a funcionária pública Elza Maia Costa de Oliveira, que também se formou em direito e dedicou a vida à pedagogia. Ela foi uma das pioneiras em arte-educação no Brasil e faleceu em 1986.
A inquietação de Freire com os métodos de ensino tradicionais se materializou, pela primeira vez, em 1955. Na época, ele liderou a fundação do Instituto Capibaribe, que funciona até hoje. A ideia era construir uma escola “alternativa”, sem fins lucrativos, para fazer contraponto à educação acrítica e conservadora da época.
Freire afastou-se da direção do Instituto Capibaribe um ano depois, mas logo seria conhecido nacionalmente com experiências ainda mais inovadoras.
Em 1958, ele apresentou as bases teóricas de seu sistema de alfabetização de adultos no II Congresso Nacional de Educação de Adultos, no Rio de Janeiro (RJ).
A primeira elaboração sistemática de seu pensamento veio no ano seguinte, ao submeter uma tese de concurso para a cadeira de Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco.
Da teoria à prática
Em 1961, ocupando o cargo de diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife, Freire montou um grupo de educação popular que alfabetizou 300 cortadores de cana da região em 45 dias.
Na época, ele atuava no Movimento de Cultura Popular (MCP), que apostava na alfabetização e na conscientização dos trabalhadores por meio de círculos de cultura.
“Paulo Freire acreditava, de verdade, na práxis [processo pelo qual uma teoria é executada ou praticada]. Não era uma questão apenas de discurso. Ele se metia nas coisas, queria saber, estava junto, participava”, afirma Lisete Arelaro, doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e amiga de Paulo Freire.
“Isso o distinguia de um intelectual de caráter mais tradicional, que faz sua palestra, depois vai para casa, deita e dorme. Ele foi um educador militante, até o final da vida.”
A experiência mais conhecida de Freire naquela época ocorreu em 1963, em Angicos (RN). Lá, cerca de 300 trabalhadores foram alfabetizados após 40 horas de estudo.
Uma das novidades da sua proposta era a utilização de palavras comuns ao cotidiano dos trabalhadores como ponto de partida para a alfabetização – por exemplo, “tijolo”.
O professor Adelino Francisco de Oliveira conta que ouviu falar em Freire pela primeira vez ao testemunhar essa construção na prática, anos depois.
“Eu era menino, morava na entrada do Grajaú, na periferia de São Paulo, e acompanhava minha irmã Márcia, que dava aulas de alfabetização para adultos à noite, em uma ação coordenada pelo Paulo Freire como secretário municipal de educação”, lembra Oliveira.
Freire exerceu o cargo na gestão de Luiza Erundina (então no PT, hoje no PSOL) na Prefeitura de São Paulo (1989-1992).
“Uma das primeiras coisas que me impactou foi o conceito de palavra geradora. Lembro como se fosse hoje: minha irmã escrevendo na lousa a palavra ‘trabalho’, e a partir dela dialogando sobre o seu sentido”, relata.
“Eu me recordo de uma senhora falando que trabalho, para ela, significava sofrimento. Então, as pessoas debatiam, contavam suas experiências, e ao mesmo tempo aprendiam a ler e escrever a realidade.”
Projeção nacional
A experiência de Angicos, que gera frutos até hoje, repercutiu em todo o país.
“Estávamos vivendo o nacional-desenvolvimentismo, e foram anos de efervescência, muito criativos e mobilizantes. Havia uma compreensão de que a educação formaria o ‘homem novo’ e mudaria o mundo”, lembra Lisete Arelaro.
“Havia a participação cristã, por meio da Teologia da Libertação, havia o Partidão [PCB], que investia na formação política da juventude. Enfim, eram diversos grupos políticos que começavam a fazer, realmente, propostas de nação.”
Paulo Freire não havia publicado suas obras mais importantes, mas seus conceitos já eram influentes.
Em São Paulo, no início dos anos 1960, o Centro Regional de Pesquisas Educacionais já produzia slides a partir das propostas de Paulo Freire.
“Em Campinas (SP), a gente passava os slides com caixas de sapato, com as luzinhas dentro”, conta Lisete, que na época era uma liderança estudantil.
“A UNE [União Nacional dos Estudantes] estava empenhada na alfabetização de adultos. E a gente sabia que havia um ‘método’ de Paulo Freire, mas os textos dele não chegavam. Então, eu era jovenzinha, e nós fazíamos o que achávamos que era Paulo Freire”, explica.
O conceito de palavra geradora foi um dos primeiros a se difundir. Outro questionamento de Freire que se espalhou rapidamente era sobre a disposição das cadeiras na sala de aula.
“Paulo Freire dizia que, muito melhor do que olhar o pescoço dos colegas da frente, é olhar nos olhos dele. Colocar as cadeiras uma atrás da outra só desestimula a prestar atenção”, afirma Lisete.
Os grupos de alfabetização de adultos, coordenados pela juventude, geralmente se formavam em paróquias onde havia padres progressistas. Naquela época, a Juventude Agrária Católica (JAC) e a Juventude Universitária Católica (JUC) também debatiam marxismo e estavam comprometidas com a transformação social.
Adelino Francisco de Oliveira, que também é mestre em Ciências da Religião, diz que a perspectiva cristã está presente em toda a obra de Paulo Freire.
“Ele bebe da Teologia da Libertação, mas também traz contribuições definitivas a esse grande pensamento teológico, que estava sendo construído na América Latina”, diz.
O pensador brasileiro teve contato, nessa época, com a teoria da dependência – que também dialogava com a Teologia da Libertação.
“Esse é um conceito-chave, que parece lateral, mas está presente na obra de Freire. Ela é uma das bases para a crítica da América Latina como um ‘quintal’ dos EUA”, ressalta.
“A própria Pedagogia do Oprimido traz, de certa maneira, essa leitura. A autonomia, sobre a qual Paulo Freire dedicou muita atenção, é a antítese da dependência”.
A viúva de Freire conta que ele enxergava diferentes etapas na atuação da Igreja Católica, e via a Teologia da Libertação como um caminho necessário.
“Paulo interpreta o comportamento da Igreja Católica como moderna, depois modernizante, e depois como testemunho, que é a igreja que acredita no pobre, no negro, no indígena, e trabalha para inclui-lo”, relata Ana Maria Araújo.
Embora fosse cristão, Freire lia a realidade a partir de categorias que foram consagradas na obra de Karl Marx e Friedrich Engels, autores do Manifesto Comunista.
“Paulo Freire entende a dinâmica da luta de classes, com base no pensamento de Marx. Então, o processo de tomada de consciência, que ele propunha, e que leva à transformação da realidade, tem a ver com consciência de classe”, ressalta Oliveira.
A ruptura
Em 1963, meses após o experimento de Angicos, Darcy Ribeiro, então ministro da Educação, recomendou que Paulo Freire concebesse um programa nacional de alfabetização.
Na mesma época, foi instituída no Ministério uma Comissão de Cultura Popular, da qual Freire foi nomeado presidente. A primeira tarefa era levantar o número de analfabetos de 15 a 45 anos, para então elaborar seu programa. A contagem ultrapassou os 20 milhões.
O Programa Nacional de Alfabetização foi publicado oficialmente em janeiro de 1964, com metas ousadas. Entre elas, alfabetizar 1,8 milhão de pessoas, com o “sistema Paulo Freire”, já no primeiro ano.
Muitos dos sonhos daquela geração foram interrompidos com o golpe civil-militar de 1964. O então presidente João Goulart foi deposto e centenas de trabalhadores e intelectuais passaram a ser tratados como inimigos.
Em 16 de junho, Paulo Freire foi preso e levado para Olinda (PE). Acusado de “subversivo e ignorante”, passou 70 dias detido em um quartel, até ser liberado.
Sem condições de realizar seu trabalho, dois meses depois, o educador partiu para o exílio.
Sementes pelo mundo
Parte significativa da obra de Freire foi escrita fora do país. O único livro dele que circulou no Brasil no fim dos anos 1960 foi Educação como Prática da Liberdade, baseado na tese apresentada na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife.
Após uma passagem breve pela Bolívia, o educador brasileiro chegou ao Chile em novembro de 1964 para trabalhar no Instituto de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (ICIRA).
No país andino, permaneceu cinco anos e escreveu sua obra mais lida: Pedagogia do Oprimido propôs uma revisão da relação entre educadores e educandos. O diálogo é visto como “exigência existencial” e deve ser a base para a constituição do processo de ensino e aprendizagem.
“Paulo Freire tem uma opção clara pelos oprimidos. Ele denunciou que o processo de desumanização de homens e mulheres no mundo é fruto de uma ordem social e econômica injusta, que leva à alienação. E a solução que ele apresenta é uma educação crítica e problematizadora, que conduz à emancipação”, ressalta Lisete Arelaro.
O livro questiona a hierarquização das escolas e salas de aula e defende que o estudante seja sujeito do processo de aprendizado. Ou seja, os conteúdos não deveriam ser padronizados nem “depositados”, seguindo uma cartilha ou diretriz curricular: todo o processo deve ser construído coletivamente, porque as realidades são diversas.
A proposta é uma educação libertadora, em que o oprimido supere sua condição sem pretender assumir o papel de opressor.
A Pedagogia do Oprimido foi escrita e publicada pela primeira vez em 1968, mas só seria editada no Brasil por volta de 1984.
O impacto fora do país foi tão grande que, em 1969, Freire tornou-se professor visitante da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. No ano seguinte, mudou-se para a Suíça para exercer a função de consultor educacional do Conselho Mundial de Igrejas (CMI).
Nesse período, entre outras tarefas, assessorou o Ministério da Educação de países como Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, que eram colônias portuguesas até meados da década de 1970.
Doutor em Educação e professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR), Juliano Peroza conta que Freire foi criticado muitas vezes sobre os resultados dessa experiência no continente africano – em comparação com os programas de alfabetização no Brasil, por exemplo.
O educador deixava claro que as experiências educativas não podem ser transplantadas: devem ser reinventadas de acordo com os problemas de cada contexto.
“Freire assumiu uma posição de humildade, radicalmente democrática, para aprender com aquela realidade, e ao mesmo tempo criticando certas decisões tomadas pós-independência”, explica Peroza.
“Ele dizia que a reconstrução do continente deveria ter como propósito ‘reafricanizar a África’, ou seja, retomar elementos centrais das culturas daquele continente.”
Uma das discussões à época era o idioma da alfabetização: português, que era a língua do colonizador, ou crioulo, falado pela maior parte da população?
“Paulo Freire sustentava que a alfabetização deveria ser feita na língua crioula, só que ainda não havia uma literatura, uma gramática consolidada. Era predominantemente oral. E os revolucionários que lideravam a independência precisavam avançar no processo de alfabetização, e acabaram optando pelo português”, explica o professor do IFPR.
Diante dessa decisão, Freire sugeriu que, paralelamente, se construísse uma produção cultural na língua crioula, para possibilitar a alfabetização no futuro.
“Freire entendia que a leitura do mundo é anterior à leitura da palavra. Não dá para impor a leitura de uma palavra que seja estranha a meu mundo. Então, os resultados da experiência da África não podem ser mensurados da mesma forma que no Brasil”, analisa Peroza.
Antes de voltar ao Brasil, Freire esteve em mais de 30 países, prestando consultoria educacional e desenvolvendo projetos de educação voltados para a alfabetização e para a redução das desigualdades.
A experiência de Freire no CMI contribuiu para que sua obra fosse lida e estudada em todo o planeta.
“É impressionante o impacto, do ponto de vista intelectual, que a obra dele tem no mundo. Ela tem uma capilaridade, uma transversalidade, um caráter interdisciplinar, que expressam a universalidade do seu pensamento”, completa o professor do IFPR.
Em 2016, o projeto Open Syllabus listou os 100 títulos mais citados nas ementas de programas de estudos de universidades dos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia. Pedagogia do Oprimido é o único livro brasileiro na lista e o segundo do campo da educação, com 1.021 citações.
De volta ao Brasil
O processo de abertura política do Brasil, que permitiu que as obras de Freire circulassem no país, também possibilitou seu retorno, na virada dos anos 1980, com a Lei da Anistia.
O educador se filiou ao recém-fundado Partido dos Trabalhadores (PT) e atuou por seis anos como supervisor para o programa do partido para alfabetização de adultos.
Meses após o fim da ditadura, faleceu a primeira esposa de Paulo Freire, Elza. Casados por 42 anos, eles tiveram cinco filhos: Maria Madalena, Maria Christina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgarde.
O educador casou-se novamente em 1988, com Nita. Ela também é educadora, pernambucana, e conhecia Freire desde a infância.
Meses depois, ao se tornar Doutor Honoris Causa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Paulo Freire dedicou o título “à memória de uma e à vida da outra”.
Um dos anos mais importantes da história política do Brasil, 1988 também teve a promulgação da Constituição Federal e a eleição da primeira prefeita de São Paulo: Luiza Erundina.
Secretário de Educação
“Muitos colegas e amigos não queriam que ele assumisse a Secretaria de Educação na gestão Luiza Erundina. Diziam que ninguém passa pela administração pública sem algum vício, sem ‘cheirar mal’. Se ele aceitasse, diziam que, o mito iria virar pó.”
O relato de Lisete Arelaro mostra que Paulo Freire já era um autor consagrado no final da década de 1980. Hoje professora da Faculdade de Educação da USP, ela teve o privilégio de conviver com o intelectual pernambucano e fazer parte daquela Secretaria ao lado dele.
“Eu já tinha me encontrado com referências políticas que tinham saído do país, exilados em 1964, e estavam voltando. E confesso que tive uma decepção pelo fato de essas pessoas serem saudosistas, com as mesmas propostas, como se os últimos 15 anos pudessem ser anulados”, lembra.
“A minha surpresa com Paulo Freire foi ver que ele era um homem que estava no século 21. No retorno, não pretendia repetir Angicos, por exemplo. Ele estava mais avançado.”
Liderar a Secretaria era uma oportunidade de enfrentar na prática um modelo educacional ultrapassado, que Freire havia questionado nas décadas anteriores.
“Geralmente, encontramos nas escolas currículos acabados, prontos para serem aplicados. Infelizmente, impera um caráter conteudista, ou o que Freire chamava de educação bancária, depositária, desconsiderando a realidade concreta em que o professor irá atuar”, ressalta Juliano Peroza.
“Ele dizia esses modelos não passam de um ‘balé de conceitos’, pura teoria.”
O desafio descrito pelo professor Peroza não foi o único enfrentado pela gestão Freire. O secretário de Educação anterior, Paulo Zingg, era assumidamente anticomunista e havia demitido sumariamente 2,5 mil professores grevistas em 1988. Ao todo, 12 mil foram punidos, de diferentes formas.
A primeira tarefa da nova Secretaria foi tornar sem efeito as demissões e anistiar todos os grevistas.
Lisete Arelaro conta que houve boicote da gestão anterior e de fornecedores.
“Era uma política de terra arrasada. Assumimos sem saber que contas tínhamos que pagar no dia seguinte. A direita raivosa, evidentemente, queria que a gestão não desse certo”, relata.
“Para a merenda escolar, não tinha óleo, feijão, arroz. Não tinha papel higiênico. Encontramos escolas já inauguradas, com matrículas, plaquinha e tudo, e algumas tinham só 20 centímetros de parede para fora da terra. Outras eram só um galpão, sem divisórias, sem banheiro.”
Até hoje, a gestão de Erundina e Freire é vista como referência. Ao final do mandato, a rede municipal tinha 120 mil alunos a mais, e centenas de conselhos de escola, com caráter deliberativo, em funcionamento. Para democratizar as contratações para cargos de baixa escolaridade, a prova se tornou classificatória, e não mais eliminatória.
“Ele defendia que os professores tivessem uma jornada de trabalho que possibilitasse ficar parte em sala de aula, parte com seus pares, para discutir como trabalhar”, acrescenta Lisete.
O Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), criado em São Paulo em 1989, foi replicado por centenas de prefeituras do Brasil.
Outra iniciativa lembrada com carinho era a possibilidade de abrir a escola nos finais de semana para refeições e atividades recreativas. Estudantes e pais assumiam o compromisso de manter a escola limpa, e até ajudavam na pintura e na manutenção.
“Então, ele arriscou, e foi muito bem-sucedido”, observa a professora Lisete Arelaro. “Nunca teve medo de assumir posições, fazer propostas, ver o que estava acontecendo nas escolas. Era um homem que estava disponível para enfrentar esse novo momento histórico que estávamos vivendo.”
A experiência na Prefeitura de São Paulo foi descrita por ele em 1991, no livro A Educação na Cidade.
Últimos anos
O Instituto Paulo Freire, que preserva e difunde até hoje o legado do pensador pernambucano, foi criado logo após sua experiência como secretário. Parte dessa responsabilidade, após a morte do intelectual pernambucano, coube a Nita.
“Eu já trabalhava com Paulo nos livros, ajudando no que era possível. Evidentemente, não escrevia por ele, mas ajudava na parte burocrática, no contato com a editora. Eu já estava muito assenhorada disso. Então, não foi uma novidade e não me assustou”, lembra a viúva.
Durante o segundo casamento, em 1992, ele publicou uma de suas obras mais importantes.
“Sugiro Pedagogia da Esperança como um livro iluminador para quem quer entrar no pensamento de Freire”, afirma o professor Juliano Peroza.
“Ele escreve de maneira narrativa, fazendo uma leitura dialógica da Pedagogia do Oprimido, mas também falando dos dramas da sua própria existência. Foi um livro que me cativou, me situou historicamente e trouxe reflexões do ponto de vista existencial – que não está distanciado de uma perspectiva social e coletiva”.
Editado em 1996, um ano antes de seu falecimento, Pedagogia da Autonomia é o livro de cabeceira de muitos educadores brasileiros que compartilham da utopia de Freire.
“A rotina do professor iniciante é intensa, exaustiva. Ele precisa se desdobrar em várias escolas para sobreviver, minimamente, com dignidade, não tem tempo para refletir sobre a prática e desenvolver sua autonomia profissional”, explica Peroza.
“Paulo Freire propunha que cada professor fosse autor da sua própria prática, e a obra elementar dessa proposta é a Pedagogia da Autonomia.”
Doutor Honoris causa por 41 universidades diferentes, Freire faleceu em 2 de maio de 1997, às 6h53, em São Paulo, em decorrência de um infarto do miocárdio.
Nita não esconde o carinho pelo eterno companheiro, e o sentimento que permanece vivo é uma motivação a mais para difundir seu legado.
“Eu e Paulo vivemos tudo que um homem e uma mulher podem viver quando se amam. Vivemos na plenitude, embora ele dissesse que não existe plenitude de nada. Mas o máximo que é possível viver, como casal, nós vivemos.”
Dados compilados por ela apontam que 1.461 dissertações de mestrado e 363 teses de doutorado no Brasil se fundamentaram no pensamento dele entre 1987 e 2011.
Os pesquisadores que estudam seus conceitos vêm das áreas mais diversas: pedagogia, letras, direito, serviço social, linguística, psicologia, antropologia, comunicação, artes, enfermagem, medicina, ecologia, nutrição, engenharia, economia e arquitetura.
Isso não significa que os educadores que leram Paulo Freire serão capazes de reproduzir os conceitos na prática.
“As estruturas escolares, de maneira geral, não são democráticas, e isso dificulta que a proposta de Paulo Freire seja implementada. Não se trata de aprender o máximo possível de conceitos. É preciso disposição para desconstruir os modelos tradicionais de avaliação, de hierarquia e do próprio poder do professor”, pondera Adelino Francisco de Oliveira, professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
“Não quer dizer que tudo é permitido na pedagogia de Paulo Freire. No ambiente que ele propõe, a disciplina é um elemento fundamental, mas a crítica e a diversidade também são”.
Alvo da extrema direita
Reconhecido como patrono da educação brasileira conforme a Lei 12.612, de 13 de abril de 2012, Freire nunca foi unanimidade. Não à toa, houve várias tentativas, por meio do Poder Legislativo, de revogar esse título.
O ódio ao educador pernambucano é anterior à ascensão do bolsonarismo no Brasil, e mesmo à ditadura civil-militar. Um mês após o experimento de Angicos, por exemplo, o município registrou sua primeira greve de trabalhadores, e latifundiários locais atribuíam aquele acontecimento a Freire – que chegou a ser chamado de “praga comunista”.
As ofensas a seu legado se tornaram mais frequentes nos últimos dez anos. Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e do movimento “Escola sem partido” costumam associá-lo à “doutrinação” de estudantes nas escolas e universidades.
O professor Adelino Francisco de Oliveira diz que se arrepia ao ouvir “críticas” como essa.
“Freire entende o processo educacional como tomada de consciência do mundo: a educação precisa trazer a realidade à tona, tirar os véus que a cobrem. Por isso, não é uma educação ideológica nem doutrinadora”, explica.
“Mas o conhecimento da realidade não é apenas uma elucubração teórica. Ele conduz a uma tomada de posição contra as injustiças.”
Para Juliano Peroza, os ataques ao intelectual pernambucano refletem justamente a frustração daqueles que desejam controlar o que acontece nas salas de aula.
“Quem chama Paulo Freire de doutrinador geralmente vê nele uma pedra no sapato de sua própria sanha doutrinadora”, analisa.
“E é difícil para um reacionário engolir que um autor declaradamente socialista ocupe tamanha evidência no cenário educacional. Daí, vem essa tentativa insistente de atacá-lo. Não há debate de ideias. As ‘críticas’ que lhe fazem são, em sua maioria, ataques de cunho meramente moralista, com enorme fragilidade.”
Lisete Arelaro enfatiza que o pensamento de Freire não interessa às grandes corporações do setor educacional.
“O processo de uniformização, que Paulo Freire sempre foi contra, está se instalando hoje no Brasil. Por isso, a reação a ele continua mais viva do que nunca”, diz.
“Hoje as grandes empresas vendem apostilas, lucram, e estão dominando inclusive o Plano Nacional do Livro Didático. E quanto mais se uniformizar, mais lucro eles terão.”
Paulo Freire costumava dizer que esperança deve ser entendida como verbo: “esperançar”. O termo é dificilmente encontrado em sua bibliografia, mas foi consagrado pelos relatos de amigos e colegas.
Em tempos de ascensão do autoritarismo e da volta da fome, esse verbo resume a atualidade de seu pensamento.
“[Esperançar] é uma referência ao que ele chamava de sonho possível, ou inédito viável. Ele dizia que às vezes só não enxergamos um futuro diferente porque a ideologia que prevalece no momento obscurece nossa capacidade de vislumbrar algo novo”, enfatiza Peroza.
“Por isso, ele critica o fatalismo embutido na ideia neoliberal, que concebe a história de maneira estática e imóvel, como se não houvesse outro mundo possível.”
Para Adelino Francisco de Oliveira, é justamente o potencial revolucionário da obra de Freire que faz dele perigoso aos olhos do atual governo.
Aos que atacam seu legado seu conhece-lo, o professor do IFSP faz um convite oportuno.
“Todo sistema totalitário tem como base cercear a capacidade de as pessoas pensarem de maneira crítica”, afirma.
“Então, de um lado você tem uma cúpula ideológica que tem total consciência do poder e da força de Paulo Freire. Mas a massa, a média das pessoas que se opõem à obra dele, desconhecem totalmente. Uma leitura da obra dele certamente iria iluminá-las”, finaliza.
* Colaborou José Eduardo Bernardes.
Edição: Anelize Moreira
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Foto: Nita e Freire em 1988 / Arquivo pessoal