Os 100 anos de Paulo Freire em tempos de ódio e desinformação

No Espaço do leitor, Luiz Eduardo Santos defende como o ódio à figura do educador representa a negação de um projeto emancipatório para a maioria do povo brasileiro.

Por Luiz Eduardo Neves dos Santos, no blog da Boitempo

“Mudar não é só preciso, é possível”
Paulo Freire

Dezenove de setembro de 2021 é a data que marca o centenário de Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997), o patrono da educação brasileira. Sua obra é fundamental para o Brasil, não somente para a compreensão dos processos educacionais contemporâneos, mas para o entendimento do mundo e suas contradições. Dialogicidade, práxis, autonomia, ação, reflexão, crítica, utopia, liberdade, esperança, sonho, tolerância, democracia, ideologia são algumas das expressões e categorias que estão presentes em toda a obra freiriana e não são termos aleatórios, abstratos, compõem um todo e repercutem na realidade histórica.

Segundo o educador, é a ação e a reflexão dos homens e mulheres sobre o mundo que permite com que ele seja transformado. É a dialética ação/reflexão, própria do método pedagógico libertador, que favorece uma mudança na consciência humana em relação à estrutura social dos sujeitos e uma aproximação destes com a crítica sobre a realidade em que estão inseridos.

Paulo Freire lançou seu olhar para os educandos de forma a lhes dar condições para que despertassem e se livrassem das amarras sociais e de um contexto de opressão, que é a razão de ser do sistema capitalista ou como ele escreveu: “é preciso desocultar a verdade” (FREIRE, 1996, p.125). Esse processo só pode ser realizado dentro de uma teoria dialógica, ou seja, aquela baseada no diálogo, na horizontalidade, na alteridade, na colaboração, na união, no respeito e no amor entre professores e educandos. Esses seriam os caminhos para uma autêntica prática educativa voltada para a liberdade e a emancipação, daí seu caráter eminentemente político.

A pedagogia freiriana requer rebeldia, no sentido da resistência em se manter vivo para lutar contra injustiças e ter forças para denunciar situações de opressão: desemprego, fome, violência, alienação, corrupção são questões que não podem ser naturalizadas, por isso a resignação e o conformismo das massas só interessa aos grupos dominantes, que trabalham, através da ideologia, para lhes inculcar que a responsabilidade da situação em que se encontram é culpa de suas próprias escolhas.

No atual contexto brasileiro, os ataques a Paulo Freire têm sido intensificados pelos que estão no poder e seus interlocutores, mas isto não acontece por acaso, faz parte de uma estratégia discursiva da política dominante, que dissemina o ódio contra o outro. Isso se realiza através de comportamentos cotidianos num mundo conectado em rede, “uma forma social acelerada e viral da comunicação contemporânea”, como aponta Muniz Sodré (2021, p.229), que prolifera o medo e a desinformação, e tenta aniquilar o pensamento crítico, formando aquilo que o saudoso pensador Umberto Eco chamou de nebulosa fascista (ECO, 2018, p.44), prenhe de contradições, mas adaptado ao pleno funcionamento do capitalismo financeiro, que explora, aprisiona, manipula, aterroriza e assassina grupos sociais subalternizados.

Este tipo de fascismo, além de possuir profundo desprezo pelos excluídos, nas palavras de Roland Barthes também “se propõe sempre e por toda parte como primeiro objetivo liquidar a classe intelectual” (2004, p.279) que, se expressando a partir de uma linguagem muito própria, amparada por um conjunto sistemático de algoritmos e autômatos, possui como meta dizimar quaisquer tipos de construção de uma consciência política autônoma. Tal linguagem resulta na constante tentativa de manutenção da servidão voluntária das massas, agora capturadas pelas artimanhas da extrema direita ou de “ditaduras da ignorância” como na expressão do filósofo Franco Berardi (2020, p.17). Por isso, no Brasil de hoje, é reproduzido em larga escala, uma linguagem depreciativa e caluniosa contra todos aqueles que se colocam à serviço da desmistificação imaginária da realidade concreta, o que inclui nomes, só para citar alguns poucos, como os Marilena Chauí, Miguel Nicolelis, Luís Felipe Miguel, Paulo Arantes, Vladimir Safatle e, claro, Paulo Freire, todos chamados de “comunistas”, “doutrinadores”, “esquerdopatas”, “petistas”, etc.

Pessoas ligadas às artes também são insultadas, a exemplo de Chico Buarque, Caetano Veloso, Chico Cesar, Paulo Betti, Camila Pitanga, Wagner Moura, dentre outros. Mas um dos principais alvos é sempre Paulo Freire, amiúde chamado de “doutrinador esquerdista das escolas”, “embusteiro comunista”, “energúmeno”, “subversivo” e “agitador”, tanto que na campanha de 2018, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que “expurgaria a ideologia freiriana das escolas brasileiras”, como se estas utilizassem seu método no cotidiano. Ademais, há uma característica comum entre os que reproduzem discursos de ódio dirigidos aos intelectuais, qual seja o quase completo desconhecimento ou o desvirtuamento sobre as obras dos vituperados, objetos das mais absurdas qualificações, o que os torna estigmatizados para certos grupos sociais, a exemplo dos autodenominados conservadores, patriotas e cidadãos de bem.

O legado de Freire, exposto em sua vasta e mundialmente reconhecida obra, é exatamente o oposto do que pregam os que estão no poder político do país hoje, já que faz apologia – em uma perspectiva que alguns autores atualmente chamam de decolonial – a uma escola popular da inclusão, do diálogo, da alteridade, da cooperação e da “urgência dos comuns”, não como abstração, mas da forma que ele nos ensinou, “mediada por uma esperança que não é pura espera, mas uma esperança prática, que rompe, decide e se torna concreta historicamente” (FREIRE, 2021, p.15), que combate o “epistemicídio e a subalternização dos saberes” (SANTOS, 2021, p.317), possuindo a potencialidade de subverter a prática educativa no Brasil, transformando-a em ato de conhecimento e desvelamento do mundo, através do exercício permanente da crítica.

A repulsa a Paulo Freire se manifesta através do silenciamento do governo federal em relação ao ano de seu centenário de nascimento, o ódio à sua figura é a abominação e a negação da justiça e da concretização de um projeto emancipatório para a maioria do povo brasileiro, usurpado por uma súcia governamental autoritária, cruel e nociva, que se regozija com as desigualdades sociais e o sofrimento dos oprimidos. Destarte, é necessário relembrar as palavras do próprio educador, proferidas em uma entrevista para o Museu da Pessoa em outubro 1992 e que continuam atuais: “meu sonho fundamental é o sonho pela liberdade que me estimula a brigar pela justiça, pelo respeito do outro, pelo respeito à diferença, pelo respeito ao direito que o outro tem e a outra tem de ser ele ou ela mesma. Quer dizer, o meu sonho é que nós inventemos uma sociedade menos feia do que a nossa de hoje. Menos injusta, que tenha mais vergonha. Esse é meu sonho. O meu sonho é um sonho da bondade e da beleza”. Que o sonho de Paulo Freire permaneça vivo e nos incentive a mudar o estado das coisas no Brasil.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. O grão da voz. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BERARDI, Franco. Asfixia. São Paulo: Ubu, 2020.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 28. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2021.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O futuro começa agora: da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021.
SODRÉ, Muniz. A sociedade incivil: mídia, iliberalismo e finanças. Petrópolis: Vozes, 2021.

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Luiz Eduardo Neves dos Santos é licenciado em Geografia (UFMA), mestre em Economia (UFMA) e doutorando em Geografia (UFC). Professor Adjunto II do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Diretor da Regional Nordeste I do ANDES-SN, autor de O Urbano Ludovicense (2021, Editora Fi/EDUFMA).

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