Bolsonaro repete discurso para base na ONU com autoelogio para políticas que devastam a Amazônia

Presidente mentiu diante do mundo sobre corrupção, economia, geração de emprego, Amazônia e meio ambiente. Também voltou a defender o tratamento precoce (e ineficaz) contra a covid-19

Por Felipe Betim, no El País Brasil

O presidente Jair Bolsonaro prometeu levar “a verdade” para a abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU. “Venho aqui mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões”, afirmou ao iniciar seu discurso nesta manhã. Mas, como é habitual nessas ocasiões, acabou levando nesta terça-feira para o encontro de chefes de Estado e de Governo a sua verdade. A expectativa de um discurso mais moderado não aconteceu, e o presidente mentiu diante do mundo sobre corrupção, economia, geração de emprego, Amazônia e meio ambiente. Também atacou a imprensa e as medidas de restrição à circulação contra a covid-19. Ao invés de focar na importância da vacinação em massa, preferiu atacar “o passaporte sanitário ou qualquer obrigação relacionada à vacina” e defender de novo o tratamento precoce que a ciência prova que não existe. “Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial”, afirmou ele, que no dia anterior fez questão de dizer em um encontro com o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que “ainda não” se vacinou.

Bolsonaro aproveitou a ocasião para levar compromissos climáticos, antecipando de 2060 para 2050 o objetivo de alcançar a neutralidade climática. “Os recursos humanos e financeiros, destinados ao fortalecimento dos órgãos ambientais, foram dobrados, com vistas a zerar o desmatamento ilegal”, discursou. Mas a realidade mais uma vez se choca com as expectativas: durante seu mandato, os órgãos de controle ambiental — IBAMA e ICMbio — foram desmantelados e o desmatamento vem registrando suas maiores altas em anos. Em 2020, a taxa de desmatamento no bioma foi a maior em 12 anos de acordo com relatório do Instituto Socioambiental feito com base nos dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Mas Bolsonaro insistiu na desinformação: “Os resultados desta importante ação já começaram a aparecer! Na Amazônia, tivemos uma redução de 32% do desmatamento no mês de agosto, quando comparado a agosto do ano anterior”, discursou. Porém, o desmatamento em agosto deste ano foi 7% maior do que em 2020 e é o maior para o mês em dez anos, segundo os dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônica (Imazon). Além disso, o Governo enfraqueceu ainda mais o INPE, retirando do órgão o papel de divulgar dados sobre queimadas, e anunciou um corte de 240 milhões no Ministério do Meio Ambiente, sendo 19 milhões de reais só nas contas do Ibama.

“Em seu Governo, o desmatamento cresceu por dois anos consecutivos e, neste terceiro, deve manter o patamar de 10.000 quilômetros quadrados, ampliando as emissões de gases de efeito estufa do país”, afirma o Observatório do Clima. A ONG ressalta que a média de desmatamento na Amazônia foi de 6.719 quilômetros quadrados nos cinco anos anteriores a Bolsonaro, segundo o INPE. Já nos dois primeiros anos da atual gestão a média foi de 10.490 quilômetros quadrados, um aumento de 56%. “Incêndios florestais bateram recordes e a grilagem de terras explodiu com o estímulo presidencial a atividades ilegais e uma série de medidas do governo contra a fiscalização ambiental”, acrescenta.

Bolsonaro também destacou que 14% do território nacional é destinado às reservas indígenas, nas quais “600.000 índios vivem em liberdade e cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades”. Também destacou que o “nenhum país do mundo possui uma legislação ambiental tão completa”, com um Código Florestal que “deve servir de exemplo para outros países”. Porém ele também omitiu que algumas iniciativas de seu Governo vão na direção contrária. “Os investidores não serão ludibriados por afirmações do discurso de que o Brasil teria uma forte legislação ambiental, quando é sabido que o governo Bolsonaro vem enfraquecendo órgãos de fiscalização como IBAMA e ICMBio e tentando aprovar no Congresso leis para dificultar a demarcação de terras indígenas e enfraquecer as regras de licenciamento ambiental”, argumenta Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos.

Vacinação e defesa do tratamento precoce

Em linhas gerais, o discurso de Bolsonaro serviram de contraponto às falas do secretário-geral da ONU, António Guterres, e do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Ambos foram enfáticos ao alertar para a emergência climática e em defender a vacinação em massa. Havia uma expectativa de que Bolsonaro anunciasse a doação de vacinas para países latino-americanos a partir do ano que vem, mas isso não aconteceu. Ele destacou que milhões de doses já foram distribuídas e aplicadas no Brasil, mas voltou os holofotes para o tratamento precoce ineficaz contra a covid-19. “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial”, afirmou ele. “Não entendemos porque muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial. A história e a ciência saberão responsabilizar a todos”, completou, em tom desafiador.

O presidente também se mostrou contrário às medidas que tornam a vacinação obrigatória, como o passaporte sanitário —que só permite a entrada em bares, restaurantes e outros locais fechados mediante a apresentação do comprovante de vacinação. “Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina”, afirmou ele, criando um constrangimento para o Brasil. Ele também atacou as medidas de restrição à circulação, em contramão ao que foi feito pelos Estados brasileiros e também pelos países que levaram a sério a luta contra a pandemia. “Sempre defendi combater o vírus e o desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade. As medidas de isolamento e lockdown deixaram um legado de inflação, em especial, nos gêneros alimentícios no mundo todo”.

Bolsonaro também destacou que seu Governo pagou 800 dólares para 68 milhões de pessoas em 2020. Mas o valor se refere à soma de todas as parcelas —que podiam chegar a 1.200 reais, no caso de mães chefes de família. Além disso, o benefício foi aprovado graças a uma articulação dentro do Congresso, já que a equipe econômica falava em conceder cerca de 200 reais de ajuda. “As poucas medidas positivas apresentadas no discurso de Bolsonaro, como o pagamento do auxílio emergencial e a vacinação de quase 90% da população, aconteceram apesar do presidente, e não como resultado de sua atuação”, argumenta Asano.

Liderança ultraconservadora no mundo

As mentiras permearam o discurso de Bolsonaro do início ao fim. “O Brasil mudou, e muito, depois que assumimos o governo em janeiro de 2019. Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção”, começou afirmando ele, omitindo o fato de que seus quatro filhos e outras pessoas próximas do clã familiar estarem sendo investigadas na Justiça. Além disso, seu Governo está sendo investido pela CPI da Pandemia por irregularidades na compra de vacinas contra a covid-19.

Mas Bolsonaro também buscou se afirmar como um dos principais líderes da direita internacional, após a derrota de Donald Trump nas eleições norte-americanas de 2020 e da queda de Benjamin Netanyahu em Israel neste ano. “Estávamos à beira do socialismo. (…) Nosso Banco de Desenvolvimento era usado para financiar obras em países comunistas, sem garantias”, afirmou.

O presidente também apontou para os valores conservadores que norteiam seu Governo. “Temos a família tradicional como fundamento da civilização. E a liberdade do ser humano só se completa com a liberdade de culto e expressão”, afirmou. Essa defesa da liberdade de expressão é outro aceno a seus apoiadores ultraconservadores que espalham mentiras e desinformação pelas redes sociais. Plataformas como Facebook, Youtube e Twitter têm restringido a difusão desses conteúdos, algo visto por Bolsonaro como censura. Além disso, o próprio mandatário e seus apoiadores mais próximos são alvos do inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal (STF).

Outro aceno para sua base foi feito no final do discurso, ao destacar as manifestações promovidas por seu Governo no feriado de 7 de setembro. “Milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história, mostrar que não abrem mão da democracia, das liberdades individuais e de apoio ao nosso Governo”, afirmou. Na realidade, os atos tiveram um caráter abertamente golpista, com ameaças explícitas ao Supremo.

Economia e Direitos Humanos

Apesar da queda da economia no segundo trimestre deste ano, Bolsonaro também tratou de apresentar uma visão otimista —e falsa— da economia. “Somente nos primeiros 7 meses desse ano, criamos aproximadamente 1 milhão e 800 mil novos empregos. Lembro ainda que o nosso crescimento para 2021 está estimado em 5%”. Essa previsão, apresentada inicialmente pelo FMI, vem sendo revisadas após o desempenho pífio do PIB brasileiro. Bolsonaro também afirmou que seu “novo Brasil” teve sua “credibilidade recuperada”, com “um grande mercado consumidor, excelentes ativos, tradição de respeito a contratos e confiança no nosso governo”. O investimento público e privado está em seu pior momento no Brasil, mas ainda assim Bolsonaro afirmou que o país “possui o maior programa de parceria de investimentos com a iniciativa privada de sua história”. Ele também citou leilões de aeroportos e terminais portuários, além da aposta no ressurgimento do modal ferroviário.

O problema é que, segundo economistas, a inflação, dólar alto, desemprego elevado e outras debilidades da economia brasileira são causadas, em boa medida, pela instabilidade política causada pelo próprio presidente. “Boa parte do discurso foi dedicada a tentar convencer investidores externos de que o Brasil teria tudo o que buscam. Mais uma vez o presidente parece ignorar que os investidores se afastam cada vez mais de países com governos que não respeitam os direitos socioambientais”, explica Asana.

O presidente também tentou mostrar que seu Governo é comprometido com os Direitos Humanos, citando a ratificação da Convenção Interamericana contra o Racismo e a acolhida de refugiados venezuelanos. Mas, ainda de acordo com Asana, nunca houve uma preocupação em apresentar políticas públicas de combate ao racismo. “Ao falar de refugiados afegãos, fez questão de destacar que acolherá cristãos, reforçando o caráter discriminatório contra as demais religiões, o que em nada combina com acolhimento humanitário”, acrescentou.

Foto: Alan Santos-PR

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