1.700 estudantes trans já adotam o nome social no ensino básico, mas preconceito e agressões, dentro e fora de sala de aula, dificultam quebra do ciclo de exclusão
Por Bruno Nomura, em Agência Pública
Frequentar a escola era um pesadelo para Amora. Ser chamada por um nome que não reconhecia, usar um banheiro que não era o seu e receber olhares tortos de colegas interferia no aprendizado da estudante de Sertãozinho, no interior de São Paulo. “Todo esse tempo na escola foi muito difícil por causa do preconceito”, relata Paula Camargo, mãe de Amora. “Eu tentei tornar minha filha invisível, mas não adiantou.” Cedendo aos apelos da filha, em 2019 a enfermeira aposentada a autorizou a utilizar o nome social em sala de aula e passou a mandar Amora usando “roupas de menina” para a escola. “O rendimento mudou completamente. Ela se tornou outra criança”, recorda Paula.
Aos 10 anos, Amora é uma dos 1.737 estudantes travestis e transexuais que adotam oficialmente o nome social nos ensinos fundamental e médio, aponta um levantamento inédito realizado pela Agência Pública por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto às secretarias de Educação. A maior parte (74%) frequenta o ensino médio. São Paulo é o estado com o maior número de registros (670), seguido por Paraná (287) e Pernambuco (176).
De acordo com o levantamento da Pública, 1.044 são menores de idade. Conforme prevê a resolução do Conselho Nacional de Educação, esses alunos precisam da anuência dos responsáveis para solicitar a adoção do nome social na escola.
Entre esses estudantes, 30 têm até 10 anos e frequentam do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. As quatro crianças mais novas têm 6 anos.
Os dados não contabilizam alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), já que grande parte dessa população é maior de idade e pode pedir a retificação de prenome e gênero no registro civil em cartório, ficando de fora desse levantamento.
Desde 2018, uma resolução do Conselho Nacional de Educação garante a travestis e transexuais o direito de adotarem na escola o nome com o qual se identificam. O documento cita a “responsabilidade das instituições educacionais” de promover o respeito à diversidade sexual e o “impacto positivo que o nome social pode representar” na vida desses estudantes.
De acordo com a resolução, alunos maiores de idade podem requisitar o uso do nome social durante a matrícula ou a qualquer momento do ano letivo. Já os menores de idade precisam da mediação dos representantes legais.
Esse direito já não era novidade em diversos estados. Em 2008, uma portaria pioneira da Secretaria de Educação do Pará já autorizava, no ato da matrícula, a adoção do prenome desejado em todas as unidades da rede pública.
Hoje, além da resolução do Conselho Nacional de Educação, todos os estados têm alguma norma que regulamenta o assunto. Apesar do direito garantido, na prática travestis e transexuais ainda enfrentam dificuldades para permanecer em sala de aula e concluir a educação básica.
Direito ao nome social é parte da solução
Se, por um lado, a conquista do direito ao nome social é um marco importante para essa população, por outro, as escolas continuam sendo um ambiente de violências para travestis e transexuais. Nas salas de aula, 68% afirmaram já terem sofrido agressões verbais e 25% foram alvo de agressões físicas, aponta uma pesquisa realizada em 2015 pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).
Aos 17 anos, a estudante Lara integra essas estatísticas. A jovem, que está concluindo o 3º ano do ensino médio em um colégio público de Sorocaba, no interior de São Paulo, lembra que, antes mesmo de se entender, já era alvo de apelidos maldosos. “[Eu] não tinha muita força, sabe? Eu me reprimia um pouco, o que fazia as pessoas caírem em cima de mim. Faziam coisas bem desagradáveis e muitos professores não falavam nada”, recorda a adolescente.
Foi por volta dos 14 anos que Lara, por meio de pesquisas na internet, entendeu o que estava acontecendo. “Eu não sabia nada sobre transexualidade. Até então, a escola nunca havia disponibilizado acesso a essas informações.”
Apesar de comemorar o fato de ter nome e gênero respeitados por colegas de turma, Lara confidencia que, pela sua segurança, não vai ao banheiro da escola desde quando frequentava o 9º ano. “Já teve caso de eu passar mal por ter que segurar. Também já quase vomitei, inclusive em outros lugares, não só na escola”, conta.
A estudante cita também o constrangimento de não utilizar oficialmente o nome social em sala de aula. Para isso, Lara depende da autorização da mãe – mas a jovem acha que ainda é cedo para tocar no assunto, já que contou sobre a transexualidade para a família há alguns meses. “Ela ainda está tentando aceitar, está num processo bem complicado. Eu não vou reclamar, sou muito privilegiada, até porque muitos pais sequer tentam, né?”
Sem o amparo legal, resta à estudante ouvir o nome morto a cada chamada. A aluna garante que já tentou conversar individualmente com alguns professores na tentativa de ser chamada de Lara, sem sucesso. “Teve algumas exceções, mas é aquilo: se não estiver no papel, eles não respeitam. É um esforço muito grande para eles, né?”, ironiza.
Em meio ao que chamou de “humilhação”, a estudante reconhece que, ao longo dos anos, pensou várias vezes em deixar a escola, mas diz que a pandemia acabou com parte dos problemas. “Para mim, esse momento [de aulas remotas] está sendo ótimo. Não ter que frequentar educação física, não depender do banheiro da escola. Lá, infelizmente, tem os constrangimentos.”
“Eu não me rendi”
Lara percorre um caminho tortuoso pelo qual também passou a professora de história e assistente social Dayanna Louise, que na infância não conseguia se sentir parte daquele universo de sala de aula. “Você sabe que não se encaixa dentro daquele padrão que é institucionalizado. Passei a minha vida escolar inteira sem entender direito o que eu era. Mesmo assim, as pessoas já me apontavam”, recorda Dayanna, que foi se reconhecer como mulher trans quando estava concluindo seu segundo curso de graduação.
“Eu não me rendi, sabe? Criei formas de negociar minha existência dentro desse espaço escolar, mesmo sem conseguir nomear aquilo que estava acontecendo comigo”, conta Dayanna, que, fugindo às estatísticas, terminou os estudos e se tornou mestre em educação pela Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe). Há quatro anos, ela começou a trabalhar na Secretaria de Educação de Pernambuco. Hoje é chefe da Unidade de Educação para as Relações de Gênero e Sexualidades, órgão vinculado à secretaria. Além de formular e monitorar a aplicação de políticas públicas, a unidade promove formações para professores e atua em contato direto com a comunidade escolar, levando diálogos para diversas regiões do estado.
Do outro lado do balcão, pesa sobre Dayanna a responsabilidade de promover uma escola diferente daquela que ela própria viveu no passado. Entre os principais desafios à frente do trabalho, ela aponta a falta de preparo de muitos profissionais para lidar com questões como a transexualidade. “Pessoas trans, travestis e transgêneros têm direito ao uso do nome social. Isso significa dizer que todo e qualquer profissional da educação precisa entender o que são essas pessoas. O problema é que esses profissionais vêm de graduações, especializações, mestrados e doutorados onde essas discussões não foram feitas. Nosso esforço hoje é fazer com que essas normas façam sentido”, avalia.
Além disso, em tempos em que grupos políticos tentam cercear discussões sobre gênero e sexualidades em sala de aula, o trabalho de Dayanna ganha contornos ainda mais delicados. “Algumas pessoas até entendem o que a lei está querendo dizer, mas não aceitam e colocam seus princípios e valores morais à frente da própria política pública.”
A tristeza de Amora
Em Sertãozinho, no interior paulista, apesar de ter sido acolhida pelos profissionais da educação, Amora era uma criança agitada e solitária. “Ela tinha problemas na hora do intervalo. Pelo jeito feminino de ser, a Amora não se socializava. Os meninos a achavam esquisita, as meninas a achavam diferente. Ela não tinha amizade com ninguém”, relembra a mãe, Paula Camargo.
A dificuldade de mandar a filha para a escola só mudou quando ela passou a ser reconhecida com o gênero com o qual se identifica. Amora fez amigos e seu desempenho nas aulas melhorou rapidamente. A mãe lamenta que a pandemia tenha mais uma vez prejudicado os estudos e a convivência social da filha, que precisou se adaptar ao ensino remoto. Apesar do prejuízo de aprendizagem acumulado ao longo dos primeiros anos, Paula comemora que a filha esteja começando a se alfabetizar agora, no 3º ano.
Ao perceber a falta de preparo dos professores para lidar com questões como a transexualidade, Paula correu atrás de capacitação e passou a fazer um trabalho de aconselhamento junto às direções de escolas da cidade. “Eu preciso da escola. Quanto mais a escola for a minha parceira, melhor vai ser para minha filha. Assim que der, vou voltar com o meu trabalho levando as leis, ajudando os professores que não entendem, pensando nessas crianças que precisam de ajuda”, promete.
“Quem problematiza são os adultos”
Estudante do 1º ano em um colégio particular de Fortaleza, capital cearense, Raul, de 7 anos, não aparece nas estatísticas, mas também integra o grupo. Seu pai, o fotojornalista Ribamar Neto, explica que a criança não fez questão de trocar de nome nem se importa quando os pais alternam os pronomes de tratamento, mas que ela se identifica como uma garota. Aos 7 anos, Raul se socializa na escola como qualquer outra criança, garante Ribamar. “Quem problematiza são os adultos, né? É interessante porque, para as crianças, foi como se nunca tivesse existido uma questão.”
Desde muito cedo, Raul passou a trazer essa questão aos pais. A discussão sobre sua transexualidade acabou se transferindo também ao ambiente escolar. No entanto, “por sorte”, nas palavras de Ribamar, as instituições que a criança frequentou cooperaram. “Quando entrou em uma delas, o coordenador pedagógico perguntou como Raul gostaria de ser tratada, se era no feminino ou no masculino. Ela disse que tanto faz”, recorda.
“Por volta dos 3 ou 4 anos as crianças manifestam a sua identidade de gênero. Nessa idade, começa uma diferenciação entre o que é de menino e o que é de menina. E isso tem uma grande importância na nossa cultura, é um marcador dos relacionamentos sociais”, explica Alexandre Saadeh, psiquiatra e coordenador do Ambulatório Interdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), ligado ao Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).
Desde a criação do ambulatório, em 2010, a demanda de menores de idade por atendimento só aumentou. Hoje são cerca de 60 crianças e 180 adolescentes em acompanhamento. Raul é uma delas. A procura foi tão grande que o ambulatório passou a atender exclusivamente esse público, entre 4 e 16 anos. Outros 180 cadastros aguardam na fila para triagem.
Na avaliação do psiquiatra, o universo escolar é um tema muito recorrente nos atendimentos do ambulatório, já que é o espaço em que crianças e adolescentes se socializam. “A escola pode ser uma experiência traumatizante, pesada, ou pode ser uma experiência muito enriquecedora. Se todo mundo lida de uma maneira tranquila, sem bullying, sem chacota, esses estudantes vão se desenvolver como são, naquela particularidade que eles têm”, defende Saadeh.
Se ainda é um desafio garantir uma escola acolhedora e segura para adolescentes trans, a questão ganha contornos mais complexos no caso das crianças. Ribamar e a esposa, sentindo a reticência de uma escola em que Raul estudou, sentaram com o conselho pedagógico para ministrar uma palestra sobre a transexualidade. “Eu não quero que Raul tenha mais direitos do que os outros estudantes, entendeu? Não estou brigando para ela ter o espaço inteiro, estou brigando para que ela possa ter o espaço dela e seja respeitada.”
Em casa, Ribamar sente que Raul está protegida do preconceito, mas lamenta que, da porta para fora, sua transexualidade continue sendo um tabu. “O melhor seria que temas como esse fossem discutidos na escola, porque ali são seres em formação. É muito mais fácil você dialogar com uma criança, e a partir disso ensinar o respeito para o futuro, do que conversar com um adulto cabeça-dura”, brinca.
Educação para a diversidade
Em seus tempos de estudante, a professora de arte Fernanda Ribeiro não teve direito ao banheiro ou ao nome social. Anos depois, já graduada, ela voltou a ser impedida de usar o banheiro feminino e a conviver com colegas que não respeitavam seu nome e identidade de gênero. “O fato de a gente ter sobrevivido, alcançado esse espaço e ainda se perpetuado dentro desse sistema excludente é um fator a ser pensado e, principalmente, reverenciado”, defende Fernanda, que hoje é coordenadora de um colégio estadual centenário em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
Acompanhando de perto a caminhada de alguns estudantes LGBTQIA+, Fernanda revive parte das lutas que enfrentou no passado. “O sistema educacional é totalmente excludente com pessoas trans porque é binário, um reforço de comportamentos que são divididos entre masculinos e femininos. Quando ultrapassamos esse limite de normalidade imposto pela sociedade, automaticamente somos excluídas do pilar principal de sustentação de um ser humano, que é a família”, explica a coordenadora.
Sem apoio em casa, torna-se ainda mais difícil sobreviver ao cotidiano de violências em sala de aula. É por isso que muitos especialistas não falam em “evasão”, mas em “expulsão” de estudantes travestis e transexuais da escola. “A gente quer ocupar um espaço onde a gente consegue se ver, se identificar, ter uma referência. O fato de não reconhecer a diversidade e não incluí-la como uma peça-chave dessa construção escolar significa negar sua existência, até que o próprio indivíduo se retire. E aí depois dizem que saiu porque quis.”
O dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), relatório anual que reúne informações sobre a violência praticada contra essa população, traça um ciclo comum de exclusões que vão culminar no Brasil como país líder mundial de assassinatos motivados pela transfobia. Para muito além de implementar políticas de nome social, o documento indica que é preciso garantir uma sala de aula segura e acolhedora para permitir que esses estudantes permaneçam na escola e quebrem o ciclo. “Incentivar e incluir a discussão sobre diversidade nas escolas pode proporcionar um cenário em que as pessoas LGBTI+ não mais sejam expulsas do ambiente escolar, possam se fortalecer dentro do processo educacional/formativo e, consequentemente, consigam a entrada no mercado formal de trabalho”, indica o último dossiê.
O frequente silêncio em sala de aula sobre assuntos como a transexualidade, no entanto, também é uma mensagem, avalia a professora Dayanna Louise. “Quando a escola não discutia esses assuntos, no fundo ela estava colocando temas como a transexualidade no campo do proibido, do imoral, do sujo, da aberração. Para mim, foi uma escola que gritou na minha cara várias vezes, como se fosse um alerta carinhoso, mas na verdade era um convite para que eu saísse de lá.”
Dayanna e Fernanda ostentam o título de primeiras mulheres trans a ocuparem seus cargos. A chefe da Unidade de Educação para as Relações de Gênero e Sexualidades de Pernambuco, no entanto, não se sente satisfeita com o título. “Ser a primeira aqui significa dizer que há muitos problemas em nossas escolas. Significa dizer que o nosso time da educação é ainda muito falho”, ressalta Dayanna.
Fernanda reconhece que ainda há muito trabalho, mas diz que está contente atuando como coordenadora. “Vejo neles todo o reflexo do sistema excludente, toda a violência institucionalizada que eu vivenciei. Então meus alunos são o meu reflexo, e eu sou o reflexo de tudo aquilo que eu não tive. Eu me sinto extremamente realizada de exercer essa profissão, de ocupar esse espaço, de ser a referência que eu gostaria de ter tido e não tive.”
O esforço de Fernanda é para que outras meninas, assim como ela, tenham escolhas muito além da prostituição, o que ocorre com muitas mulheres trans sem direito à educação e empregos de qualidade. “A gente precisa resgatar aquelas que abandonaram os estudos e reinseri-las nesse sistema que é público, é delas também. Principalmente para que tenham a formação mínima para ingressar no mercado de trabalho formal e não sejam empurradas socialmente para a marginalidade”, defende.
Se o discurso oficial já atribuiu a existência de estudantes LGBTQIA+ a “famílias desajustadas”, no dia a dia de sala de aula é possível enxergar avanços. Dayanna, por exemplo, entende sua presença na Secretaria de Educação pernambucana como prova de que a população trans está disputando a escola. “E não está disputando só a secretaria, mas também a docência, os grupos estudantis. Hoje temos escolas que têm coletivos LGBT que estão pressionando a educação a repensar as discussões sobre gênero e sexualidades. Digamos que eu sou apenas a ponta de um iceberg”, idealiza.
Lara, que está concluindo o ensino médio, tem vontade de ingressar em uma universidade a partir do ano que vem, mas diz que ultimamente tem tido crises. As dúvidas geradas pela transfobia que ela vive dentro e fora de sala de aula minam suas esperanças – como se temesse ter nadado tanto para “morrer na praia”. “Aí penso ‘sou trans’, e isso me puxa para baixo. Além da escola, estou fazendo vários cursos diferentes porque tenho muito medo de não ser aceita no mercado de trabalho. Mas será que, mesmo com tudo isso, vou conseguir um emprego? Será que eu realmente vou conseguir fazer minha vida?”
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Chefe da Unidade de Educação para as Relações de Gênero e Sexualidades, Dayanna trabalha com a formulação de políticas públicas para promover uma escola diferente daquela que ela própria viveu no passado (Arquivo pessoal)