A sociedade gaúcha não conhece os bens ambientais que podem ser destruídos com os projetos de mineração. Entrevista especial com Marcelo Pretto Mosmann

“A grande questão envolvendo a sustentabilidade, que diz respeito ao tipo de impacto que esses empreendimentos minerários vão causar nos modos de vida tradicionais, não foi analisada”, adverte o advogado

IHU

A “pedra de toque” dos conflitos socioambientais gerados pelos megaempreendimentos, como a mineração, “é justamente a localização em que os empreendimentos são instalados”, disse o advogado que atua em causas ambientais, Marcelo Pretto Mosmann, na palestra virtual “Megamineração e conflitos socioambientas: o direito está pronto para nos proteger?”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na última quinta-feira, 16-09-2021.



Segundo ele, o que se observa ao acompanhar casos envolvendo o setor de mineração de carvão no Rio Grande do Sul, por exemplo, é “a convergência entre os empreendedores e o setor público” para “impedir ao máximo a participação das comunidades [nos processos decisórios]. Diversos expedientes são adotados para isso, desde a cooptação de lideranças, a não observância de instâncias de participação e de consultas prévias a comunidades tradicionais, a não observância de análises por parte dos conselhos de meio ambiente e órgãos gestores, que propiciariam maior participação”.

A seguir, publicamos uma parte da conferência de Mosmann no formato de entrevista, na qual ele critica a decisão do governo Sartori de transformar o Rio Grande do Sul em um estado minerador em 2018. “O governo que atuou no Rio Grande do Sul até 2018, simplesmente sem consultar a sociedade, se entendeu legítimo para dizer que agora o Rio Grande do Sul vai se tornar a nova ‘coqueluche’ da mineração. Quer dizer, vamos virar um estado minerador. Ninguém foi consultado sobre isso: não teve plebiscito, não teve audiência pública, não teve consulta ao Conselho Estadual do Meio Ambiente. Simplesmente o governador e a secretária do Meio Ambiente fizeram um diagnóstico do desenvolvimento do carvão no estado, para o qual convidaram somente as empresas”, menciona.

Marcelo Pretto Mosmann é graduado e pós-graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Foi conselheiro do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama entre 2011 e 2012.

Confira a entrevista.

IHU – Qual é a principal causa de conflitos socioambientais envolvendo a mineração?

Marcelo Pretto Mosmann – A pedra de toque dos conflitos socioambientais é justamente a localização em que os empreendimentos são instalados. A convergência entre os empreendedores e o setor público, como é o caso do Rio Grande do Sul, é impedir ao máximo a participação das comunidades [nos processos decisórios]. Diversos expedientes são adotados para isso, desde a cooptação de lideranças, a não observância de instâncias de participação e de consultas prévias a comunidades tradicionais, a não observância de análises por parte dos conselhos de meio ambiente e órgãos gestores, que propiciariam maior participação.

Todos os empreendimentos costumam “jogar” a participação [das comunidades] para uma única audiência pública. Há uma grande organização para levar uma série de pessoas à audiência, que às vezes recebem um lanche pago para irem e dizerem que apoiam o empreendimento – muitas vezes isso acontece com pessoas que nem são da comunidade. Além disso, pessoas também se apresentam de forma violenta nesses espaços, cerceando as falas daquelas que são contrárias ao empreendimento.

IHU – Como as empresas agem na prática para viabilizar os empreendimentos?

Marcelo Pretto Mosmann – Uma das formas é o financiamento de entidades ditas ambientalistas que, ao tentar se apropriar e disputar esses espaços com as entidades preocupadas com o meio ambiente, buscam enfraquecer, diminuir, dividir ou dissuadir a participação da sociedade civil nesses espaços.

A participação visa justamente propiciar que as comunidades e a sociedade tenham o direito de influenciar de forma positiva, com argumentos, documentos, relatos e pontos de vista, acerca da localização dos empreendimentos. Afinal de contas, o local onde o empreendimento vai ser instalado faz toda a diferença. Se fosse instalada em uma área que tem plantio de eucalipto, por exemplo, que é uma área completamente deserta de ocupação humana, e ficasse limitada a esse espaço, a mineração não causaria grandes impactos. Agora, em um local onde existe uma atividade tradicional, desenvolvida por várias famílias, como agricultura ou pecuária, que é a melhor atividade para ser realizada no Pampa gaúcho, a mineração se torna um problema.

Ocorre que para os empreendedores a liberdade de escolha sobre o local dos empreendimentos está diretamente relacionada à margem de lucro. Então, limitar essa liberdade de escolha do empreendedor diminui a sua margem de lucro. Essa é uma questão central e um dos principais motivos de por que há tanto empenho do poder público e das empresas em dissuadir e diminuir a participação da sociedade nesses processos de decisão de grandes empreendimentos de impacto socioambiental, especialmente nos casos de mineração, que estão se desenrolando no estado do Rio Grande do Sul nos últimos anos. Além disso, é preciso pontuar que a megamineração não impacta gravemente apenas as comunidades locais onde ela é implantada; traz também um grave impacto ambiental e ecológico. É uma das atividades econômicas mais impactantes. Dependendo do tipo de mineração e do uso que será dado a esse produto, reforça ainda mais os problemas ambientais graves do planeta.

Precisamos levar em conta que estamos em um estágio do desenvolvimento em que o ser humano está causando no planeta algo nunca visto: a mudança climática. Esse contexto é o que tem de ser considerado quando vamos avaliar os casos de megamineração.

IHU – Quais são os pontos fracos da legislação ambiental brasileira quando se trata de legislar acerca desse tipo de atividade, tendo em vista o contexto das mudanças climáticas?

Marcelo Pretto Mosmann – A legislação ambiental brasileira é muito elogiada, tem pontos importantes, vantagens e benefícios, mas não foi feita para evitar a destruição do planeta a qual estamos observando. Ela surge dentro do paradigma que coloca o homem acima da natureza; não é um paradigma que enxerga o homem como uma parte da natureza ou ligado a ela. É o paradigma da racionalidade da Revolução Francesa: a noção de individualidade, de direito individual, de direito de propriedade exclusivista, que exclui todos os demais usos da terra. Esse sentido de propriedade exclusivista, que entende que pode destruir tudo que está dentro das dimensões da propriedade, é um conceito novo e muito recente dentro da civilização humana. O conceito mais tradicional que existiu na Europa, e ainda existe em algumas comunidades, é o de propriedade comum, que se desenvolveu por volta de 1300 como reação da sociedade a crises ecológicas ocorridas na Europa no passado.

IHU – Quais são os principais conflitos e problemas em torno do projeto da Mina Guaíba, no Rio Grande do Sul?

Marcelo Pretto Mosmann – O governo que atuou no Rio Grande do Sul até 2018, simplesmente sem consultar a sociedade, se entendeu legítimo para dizer que agora o Rio Grande do Sul vai se tornar a nova “coqueluche” da mineração. Quer dizer, vamos virar um estado minerador. Ninguém foi consultado sobre isso: não teve plebiscito, não teve audiência pública, não teve consulta ao Conselho Estadual do Meio Ambiente. Simplesmente o governador e a secretária do Meio Ambiente fizeram um diagnóstico do desenvolvimento do carvão no estado, para o qual convidaram somente as empresas. Inclusive, as empresas informam em seus sites que foram convidadas pelo estado, mas no encontro realizado não estava presente a sociedade; só empresários e políticos.

O diagnóstico do estado chega a ser uma piada, porque fala em sustentabilidade para colocar a mineração como o grande mote para a recuperação econômica do Rio Grande do Sul. Apesar de se falar em desenvolvimento sustentável da mineração, primeiro, não se explica o que se considera como sustentável e, depois, se considera como sustentável fazer a recuperação da qualidade da água. Isso não é sustentabilidade. Fazer tratamento da qualidade da água é a coisa mais básica de um licenciamento ambiental.

Sustentabilidade

A grande questão envolvendo a sustentabilidade, que diz respeito ao tipo de impacto que esses empreendimentos minerários vão causar nos modos de vida tradicionais, não foi analisada. Que tipo de impacto esse empreendimento vai causar na biodiversidade? Isso não foi analisado. Que tipo de impacto esse empreendimento vai causar nas mudanças climáticas? Essa questão também não foi analisada. As principais questões e problemas ambientais que deveriam ser considerados para uma análise de sustentabilidade foram completamente ignorados nesse estudo.

Esse estudo já denota uma grande aliança – afinal [na reunião organizada pelo estado] só participaram os empresários e os políticos – que se consolidou em novembro [de 2018] e que se manifestou depois em “canetaços” em massa em processos administrativos. Vou citar dois processos principais: o processo de mineração na região metropolitana de Porto Alegre e casos de mineração no Pampa gaúcho.

 

Mineração no RS

O caso da mineração em Porto Alegre é emblemático porque o estudo ambiental é feito para não reconhecer os bens ambientais e os limites que a legislação estabelece ao empreendedor a partir da existência desses direitos ambientais. É um estudo flagrantemente omisso, extremamente malfeito do ponto de vista metodológico, e que recebeu críticas de pesquisadores. O estudo sonegou bens ambientais que têm proteção na legislação para tentar evitar que as limitações ambientais previstas na legislação, as quais já são poucas, incidam sobre o projeto, e para diminuir as compensações ambientais que o empreendedor tem que fazer. O estudo não apresenta o número de nascentes existentes no local do empreendimento, não apresenta de forma correta a localização e a qualificação da vegetação, e as espécies da mata atlântica também não foram adequadamente estudadas. Uma mineradora quer fazer um empreendimento de milhões de reais, e o biólogo fica três dias em campo. É uma coisa impensável. Na hora de se instalarem, a análise é profundamente superficial e ignora os bens ambientais que estabelecem as limitações a esses empreendimentos.

O mesmo se observa no caso de fosfato no Pampa gaúcho. A própria Fundação Estadual de Proteção Ambiental – Fepam apontou que o estudo disponibilizado em uma audiência pública não é fidedigno. A Fepam aponta contrariedades e omissões no estudo. Posteriormente, o empreendimento apresentou uma nova versão do estudo, com complementações, mas a Fepam novamente disse que elas não haviam sido contempladas. Essas informações e complementações foram sonegadas à sociedade, que foi consultada com base em um estudo que sonegava os bens ambientais existentes no território.

Portanto, o estudo apresentado à sociedade é algo fraudulento. Não sei se intencionalmente ou não, mas frauda a participação da sociedade na medida em que ela não conhece os bens ambientais que podem a vir a ser destruídos nesse tipo de empreendimento. Essas mineradoras, além de sonegarem a localização e a existência dos bens ambientais principais – que estabelecem as limitações ao empreendimento –, como áreas de proteção permanente, mata atlântica e espécies ameaçadas de extinção, trazem uma alegação de rigidez locacional do empreendimento.

Mapa cedido por Rualdo Menegat

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

two + 5 =