Como parentes das águas que somos, sentimo-nos na obrigação de levantar nossas vozes quando elas são ofendidas
Ana Paula Lemes de Souza*, Brasil de Fato
Decisão do juiz de direito da Comarca de Caxambu (MG), Hilton Silva Alonso Junior, acolheu, parcialmente, o pedido da Codemge/Codemig, nos autos do mandado de segurança em que a empresa estatal mineira questiona o registro, por parte do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (COMPAC), do ato centenário de coleta de águas minerais do Parque de Caxambu como patrimônio imaterial.
Algumas vezes, é preciso transformar em palavras o que pesa no peito como pedra. Palavras que são como águas. Seguindo o conselho da chicana Gloria Anzaldúa, não deixarei a tinta coagular em minha caneta, e prometo colocar minhas tripas no papel.
Da minha caneta de dor, jorram águas, com a força bruta da terra, como em cada um dos fontanários dos parques da região do Circuito das Águas, sul de Minas Gerais. Como povo das águas que sou, nascida e criada aqui, são elas que brotam em minhas veias.
Vou irromper no estarrecedor silêncio, de forma a transformá-las em matéria bruta de texto. Lapidá-las com o esforço de aprender a lidar com os afetos que me transpassam como facas na garganta. Já dizia o velho ditado: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Eu tento furar a pedra que me pesa no peito com a força de minhas palavras, repletas de fluidezes, brotadas do sentimento de desconforto.
Nós, povos das águas, aprendemos desde cedo a sermos águas, mas não quaisquer delas: falo das águas minerais do Circuito sul mineiro da Mantiqueira. E o ato de coletá-las, passado de geração a geração, é o que nos banha de vida e nos conecta com a nossa ancestralidade, é o que nos identifica enquanto coletivo.
E foi isso que provocou a fúria da Codemge/Codemig, detentora do manifesto de mina das águas de Caxambu, Cambuquira, Lambari e de outras Estâncias Hidrominerais.
Aqui, devo empreender um breve parêntese, no esforço de ensinar ao não nativo sobre o que falo: é que essas águas, desde a lógica minerária colonial da expedição das bandeiras, são tratadas como minérios, dotadas de valor econômico. Não são consideradas como essenciais à vida, pertencentes à cultura e à história da população local.
Mas, para nós, povos que são águas, elas são algo diferente disso, inclusive da forma como se tentou catequizá-las na modernidade, por meio do mercado exploratório, objetificando-as como mercadoria. E pensá-las como inodoras, incolores e insípidas, típico da mentalidade liberal, causa-nos estranhamento.
No Circuito, elas possuem significâncias e significados que ultrapassam as palavras, ousando transbordar nas entrelinhas. São águas que nascem gaseificadas, vertidas do subsolo, vestidas milenarmente em diferentes minérios, com poderes de cura.
Têm vozes, cheiros, cores, sabores e, ouso dizer, até humores. E como parentes das águas que somos, sentimo-nos na obrigação de levantar nossas vozes a cada vez em que elas são ofendidas.
E eis que, nesse esforço canhoto de ter respeitada a nossa própria ancestralidade, de invocar o poder das palavras escritas da lei para garantir esse direito para as gerações presentes e futuras, fomos sorrateiramente atravessados. Para falar como Kopenawa, as leis se fizeram como meros desenhos em peles de papel, nascidas de florestas derrubadas.
Água: mercadoria explorada até a exaustão ou bem cultural imaterial?
É que a Codemge/Codemig, por algum transbordamento violento no passado, ganhou o direito de transformar essas águas em meras mercadorias, ou melhor, mercadorias dela, podendo ser exploradas e engarrafadas até a exaustão.
E então, empreenderam um tremendo esforço de magia para fazer com que os povos se esquecessem daquelas outras águas, fazendo-as adormecer, de forma que os tempos distantes se desvanecessem. E não raras vezes se utilizou da força da lei para fazê-lo.
Mas os povos não adormeceram. Famintos e sedentos daquelas outras águas, a magia não foi bem-sucedida, então ensinaram aos seus filhos, netos e bisnetos a amá-las como mais que águas. E nesse amor, quiseram registrar no papel a herança, de modo que a coleta de águas fosse registrada como patrimônio cultural imaterial dos caxambuenses.
A Codemge/Codemig, fracassando no seu feitiço, resolveu buscar naquilo que ousam chamar de Justiça o seu direito de propriedade, violentamente conquistado nos últimos séculos, querendo as águas somente como sua própria mercadoria. E então, pediram ao juiz de Caxambu que cancelasse o registro das águas como bem cultural imaterial dos caxambuenses.
Esse registro, inédito no Brasil, transformava a prática centenária das Estâncias Hidrominerais do Sul de Minas Gerais em patrimônio cultural e imaterial, reconhecendo e valorizando a coleta de água mineral e destacando a relação dos povos — moradores do Circuito das Águas da Mantiqueira — com suas águas minerais.
Uma forma de defender a relação de pertencimento e de identidade cultural da região, perfazendo a memória histórica e afetiva e os saberes locais, produzidos com as águas minerais, desde os povos originários sul-americanos Tupi e Jê, que viveram na região nos períodos pré e pós-colonial.
Empresa pública, interesses privados
Daí o incômodo inevitável da Codemge/Codemig que, embora fantasiada de empresa pública, defende interesses claramente privados. Sua raiva veio em decorrência de meros comentários técnicos do registro de coleta, mencionando a necessidade de nova legislação que garanta o uso sustentável das águas minerais e sobre evidências empíricas quanto à prejudicialidade e riscos do envasamento em possível superexploração de águas, apontados brevemente no “Inventário da Coleta de Águas Minerais” e circunstanciados em documentos de cunho sociológico e antropológico.
Raivosa que ficou, ingressou com mandado de segurança na justiça, pedindo a defesa da liberdade econômica e do direito à propriedade, protegendo os interesses da exploração predatória de gigantes do ramo alimentício, como Nestlé, Ambev, Coca-Cola, dentre outras, tudo em prejuízo da memória e da ancestralidade dos povos das águas.
Uma decisão esdrúxula
O juiz, em sua decisão, em seu direito caolho, converteu o mandado de segurança de remédio constitucional em veneno mordaz, a ser penetrado nos veios da terra. Ao invés de proteger o direito à memória dos povos em conflito com o direito da propriedade, optou pelo último.
Uma Justiça engarrafada, portanto. Povo da água que ele não é e jamais será, cego e enfeitiçado pelo mundo dos povos da mercadoria, entendeu que o franqueamento de acesso aos parques é ato de mera liberalidade da empresa estatal. Nas tintas estranhas do juiz e nas suas palavras titubeantes e desajustadas, as águas são públicas, porém privadas.
Apesar de não ter anulado o decreto municipal do registro das águas como patrimônio cultural e direito ancestral da população caxambuense, fez algo ainda pior: gravou no papel que o município, representando os povos das águas, deveria se abster de interferir, de qualquer forma, na gestão das fontes do Parque das Águas de Caxambu e do empreendimento como um todo, inclusive quanto ao acesso franqueado do público às fontes e quanto à atividade de engarrafamento e comercialização de águas minerais, todas mantidas absolutamente incólumes.
No espetáculo dos absurdos indizíveis, embora previsíveis, disse mais: que nada obriga a Codemge/Codemig a disponibilizar o acesso gratuito das fontes à população local, filhos da terra e parentes da água, povos aquanos que vivem delas e com elas há milênios!
Uma decisão esdrúxula, em tempos nefastos, nascida da entranha dos povos da mercadoria, que priorizou os interesses do mercado em detrimento dos direitos ecológicos e culturais dos povos locais.
O juiz de Caxambu reinventou, em 2021, o que fez outro juiz de lá, em 1841, quando ordenou a queima de quarenta ranchos nos arredores do Parque, a fim de buscar a purificação das águas, em nome da racionalidade científica.
Agora, em tempos de queda do céu e de colapso climático, é o registro das águas de Caxambu como patrimônio imaterial que está em jogo. Os povos das águas são expulsos e têm, simbolicamente, as suas corporeidades queimadas, mas, desta vez, é a racionalidade econômica que dita o que são as águas.
Na Estância Hidromineral de Caxambu, as águas são jogadas na latrina e se tenta, pelo poder da força, obrigar os povos a esquecê-las. A guerra é secular e a resiliência também.
Águas para a vida
Eu, como povo das águas que sou, registro com o sangue da minha caneta essa promessa: aquelas outras águas não serão esquecidas e nem mesmo emudecidas.
Se o exercício da humanidade é o exercício da desumanização — tornar pedra, bicho, planta, coisa, água — seremos águas, insistentes, batendo nas pedras. Abriremos caminhos no subsolo, como elas fizeram outrora, em seus tempos geológicos.
Brincando com Manoel de Barros, as águas não aceitam mais ser vistas por pessoas razoáveis, elas desejam ser olhadas de azul.
Faremos a defesa do nosso modo de vida, mesmo caminhando nos escombros. Algumas tintas tempo nenhum poderá apagar: não as deixemos coagular…
*Ana Paula Lemes de Souza é doutoranda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, da UFRJ. Pesquisadora, ensaísta, professora, advogada e colunista. Nascida e moradora da região do Circuito das Águas do Sul de Minas Gerais, Brasil. Escritora, poeta e ativista ambiental.
Edição: Elis Almeida
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Imagem: Caxambu faz parte do Circuito das Águas de Minas Gerais – Reprodução
Que lindeza poética e potente, esse artigo!!!!