Empresa alemã atestou segurança da barragem da Vale antes do rompimento. Processo pode estabelecer precedente para pedidos de indenização a familiares de vítimas e ao município mineiro onde ocorreu o desastre em 2019.
por Bruno Lupion, em DW
Uma Corte de Munique, no sul da Alemanha, inicia nesta terça-feira (28/09) um julgamento que definirá se houve responsabilidade da empresa de inspeções e certificação alemã TÜV Süd no rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, em janeiro de 2019, que deixou 270 mortos.
Participam da audiência familiares de Isabela Barroso Câmara Pinto, que trabalhava como engenheira da Vale quando a barragem se liquefez. Ela morreu soterrada, aos 30 anos de idade. Também estará na Corte de Munique o prefeito de Brumadinho, Alvimar de Melo Barcelos, que luta para que a empresa alemã indenize o município pela tragédia.
A ação civil representa apenas seis familiares de Isabela e o município de Brumadinho, mas servirá de paradigma para muitos outros familiares de vítimas e afetados pela tragédia que cogitam buscar indenização da TÜV Süd na Justiça alemã. O escritório de advocacia atuante no caso, PGMBM, representa cerca de 1.500 pessoas afetadas pelo rompimento da barragem.
Nesta terça, ocorrerá a audiência de instrução e julgamento do processo. Um painel composto por três juízas, que já receberam as alegações e documentos apresentados pelos autores e pela TÜV Süd, poderá fazer perguntas, solicitar mais pareceres ou pedir que testemunhas se pronunciem sobre o caso. Os advogados dos familiares estimam que a decisão final seja tomada no segundo semestre do próximo ano.
Além dessa ação, há pelo menos duas outras frentes jurídicas na Alemanha buscando a responsabilização da TÜV Süd pelo rompimento da barragem em Brumadinho. Uma outra ação civil representa 183 familiares de vítimas e foi apresentada pelo advogado brasileiro Maximiliano Garcez em conjunto com os advogados alemães Ruediger Helm e Ulrich von Jeinsen. Além disso, um inquérito criminal conduzido pelo Ministério Público de Munique investiga se a TÜV Süd e dois funcionários alemães da empresa cometeram corrupção, negligência e homicídio culposo.
Por que a TÜV Süd é alvo
Com sede em Munique, a TÜV Süd tem 23 mil funcionários pelo mundo e é especializada na realização de trabalhos de auditoria, inspeção e testes, consultoria e certificação. É considerada uma referência do setor.
A subsidiária da TÜV Süd no Brasil era a empresa contratada pela Vale para avaliar e certificar a segurança da barragem de Brumadinho, entre outras. Em junho e setembro de 2018, poucos meses antes da tragédia, a empresa emitiu certificados atestando que a barragem de Brumadinho era estável.
Após o rompimento da estrutura, que provocou o maior acidente industrial da história do Brasil em número de vidas perdidas, investigações conduzidas por diversos órgãos reuniram indícios de que funcionários da TÜV Süd teriam conhecimento de problemas graves na barragem, mas atestaram a sua segurança apesar disso.
Documentos levantados pela Polícia Federal, pelo Ministério Público brasileiro e por uma Comissão Parlamentar de Inquérito apontaram que funcionários da TÜV Süd estavam cientes do baixo nível de segurança da barragem, mas sofriam pressão da Vale para emitir a certificação.
Há suspeita de que a TÜV Süd teria certificado a estabilidade da barragem ciente dos problemas para não perder o contrato milionário com a mineradora brasileira. Um diretor da certificadora na Alemanha, que supervisionava a equipe brasileira e viajava cerca de uma vez por mês ao Brasil, teria sido informado sobre o caso e questionado pelos funcionários sobre como eles deveriam agir.
A TÜV Süd afirma que os atestados de estabilidade da barragem foram emitidos em conformidade com as normas brasileiras vigentes à época e que seus funcionários recomendaram à Vale melhorias de segurança. A empresa alemã diz não ter responsabilidade legal pela tragédia.
Por que a Justiça alemã foi acionada
As ações civis se baseiam em tratados da União Europeia que estabelecem que empresas sediadas nos seus países-membros podem responder judicialmente por alguns danos provocados por suas atividades em países de fora do bloco.
Nesses casos, a lei usada para definir as responsabilidades e as indenizações é a do país onde ocorreu o dano – as normas do Brasil, no caso de Brumadinho. Mas as regras processuais, que definem o rito do julgamento, é a do país onde o processo corre – nesse caso, as da Alemanha.
As ações argumentam que a TÜV Süd teria certificado a segurança da barragem ciente de que ela não detinha as condições para isso, e portanto deve também ser considerada responsável pelo rompimento.
“A TÜV Süd é tão responsável como qualquer outro réu brasileiro. Os autores têm a prerrogativa de processar quem eles quiserem. Além disso, hoje as atividades econômicas se dão em escala global. A TÜV Süd, uma empresa alemã, foi lá prestar serviços no Brasil, a ela é permitido prestar serviços de forma global. A gente considera que a Justiça também tem que ser global, e que as pessoas podem acessar os responsáveis no local onde eles estão”, diz Pedro Martins, advogado do escritório PGMBM.
O irmão de Isabela, Gustavo Barroso Câmara, foi a Munique para a audiência, acompanhado do viúvo da vítima. Ele diz que sua família decidiu recorrer à Justiça alemã por considerar esse caminho mais ágil e eficiente.
“Eu falei: vai acontecer igual Mariana [cidade mineira onde ocorreu rompimento de barragem semelhante em 2015], eles não vão culpar ninguém, isso não vai dar em nada. Queria achar uma maneira de processar eles fora do Brasil, conseguir uma Justiça mais rápida e mais eficiente. A minha preocupação sempre foi abrir caminho para outras famílias. A intenção é abrir um precedente”, disse.
Para Gustavo, “as mãos da TÜV Süd estão tão sujas de sangue e de lama quantos as da Vale. Ela fez isso por corrupção, eles aceitaram a pressão da Vale para não perder contratos. Temos que mostrar para as grandes empresas que elas não podem fazer errado, para não acontecer de novo, que isso custa caro. Mostrar para elas que não vale a pena, que não é lucrativo matar.” A sua família também está processando a Vale, na Justiça brasileira.
O que a prefeitura de Brumadinho pede
Além dos familiares da engenheira da Vale morta na tragédia, a ação tem como parte o município de Brumadinho, que pede que a TÜV Süd pague uma indenização à cidade.
Barcelos, o prefeito de Brumadinho, conhecido na região como Nenen da Asa e filiado ao PV, afirmou que o município quer uma compensação de R$ 11 bilhões pelos gastos extras e a queda de receitas que enfrentou após a tragédia.
Segundo ele, o gasto mensal da cidade com saúde mais que dobrou, e os moradores da cidade estão adoecendo mais, inclusive mentalmente. Ele menciona que, antes da tragédia, 200 pessoas eram atendidas regularmente pelo CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) local, e hoje são 2 mil. “Foi uma destruição na saúde da população. Achávamos que nos próximos seis meses o problema acabaria, mas pelo contrário, os problemas de saúde da população estão triplicando, quadruplicando”, diz.
Questionado sobre o envolvimento da TÜV Süd, Barcelos afirma que “eles foram criminosos, igualzinho à Vale”, ao emitir o laudo sobre a estabilidade da barragem. “Precisamos de Justiça, e tenho certeza que a Corte alemã vai se sensibilizar”, diz.
Outras frentes jurídicas na Alemanha
Assim como os parentes de Isabela, Maximiliano Garcez, advogado da outra ação civil que tramita em Munique, também afirma que um dos motivos para recorrer à Corte alemã seria obter um “efeito pedagógico” para multinacionais que atuam no Brasil.
“Tenho certeza que a TÜV Süd não agiria como agiu no Brasil em obras na Alemanha ou no Canadá. Duvido que dariam uma certificação a uma empresa com tantos problemas escancarados. É um neocolonialismo coorporativista”, afirmou. A ação que ele patrocina tem o apoio financeiro do sindicato alemão IG BCE, que representa os trabalhadores dos setores de mineração, químico e de energia.
Já o inquérito criminal em curso em Munique foi provocado por cinco mulheres que perderam familiares na tragédia, apoiadas pelo Centro Europeu para Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR, na sigla em inglês) e pela organização católica de ajuda humanitária Misereor. Eles apresentaram, em outubro de 2019, uma queixa-crime aos promotores de Munique, que então decidiram iniciar a investigação.
Os familiares das vítimas alegam que os funcionários alemães sabiam das falhas da barragem antes de certificá-la e, portanto, deveriam ser responsabilizados criminalmente na Alemanha. A expectativa é que a investigação seja concluída no início de 2022, quando o Ministério Público decidirá se apresenta ou não denúncia.
Se a TÜV Süd for responsabilizada criminalmente, os funcionários podem ser presos e a empresa, condenada a pagar uma multa. Além disso, uma decisão na esfera criminal também pode fortalecer os pedidos de indenização. Em seu site, o ECCHR afirma que decidiu se envolver no caso para evitar a repetição de desastres do tipo pelo mundo.
Funcionários da TÜV Süd também são alvos de uma ação criminal no Brasil, ao lado de funcionários da Vale.
Em fevereiro, a Vale fechou um acordo com o governo de Minas Gerais para pagar uma indenização de R$ 37,7 bilhões pela tragédia, mas familiares das vítimas e atingidos dizem não ter participado e discordam da divisão das verbas. O município de Brumadinho também critica o acordo, que destina verbas a projetos sem relação com o acidente, como a ampliação do rodoanel e do metrô de Belo Horizonte.
O que a TÜV Süd diz
A TÜV Süd na Alemanha aceitou responder a perguntas da DW Brasil sobre o caso por escrito.
A empresa afirma que os certificados de estabilidade emitidos pela sua subsidiária brasileira sobre a barragem em Brumadinho foram feitos em conformidade com as normas e referências em vigor no Brasil, e que isso foi atestado por um parecer técnico elaborado por especialistas americanos e brasileiros.
A TÜV Süd acrescenta que autoridades brasileiras responsáveis pela regulação do setor inspecionaram a barragem de Brumadinho em novembro de 2018 e não levantaram preocupações sobre a sua segurança.
Segundo a companhia, os atestados de estabilidade emitidos pela subsidiária brasileira “não provocaram nem contribuíram para o acidente e os danos resultantes”.
A empresa também ressalta que sua subsidiária brasileira, ao atestar a estabilidade, emitiu diversas recomendações vinculantes à Vale para a manutenção e a melhoria da segurança da barragem. “Além disso, cortes brasileiras já estabeleceram a responsabilidade da operadora da barragem pelo acidente e a operadora reconheceu a sua responsabilidade.”
Questionada sobre as dúvidas manifestadas por funcionários da TÜV Süd sobre a segurança da barragem em Brumadinho, conforme revelado pelas investigações, a empresa respondeu que não comentaria casos individuais, mas observou que “os técnicos brasileiros do escritório da TÜV Süd realizaram a análise de estabilidade da barragem de forma autônoma e independente”, e que o atestado estava de acordo com as normas brasileiras em vigor.
A empresa não respondeu se o gerente alemão responsável pela subsidiária estava ciente das preocupações expressadas pelos funcionários brasileiros.
Por fim, a empresa diz que “o acidente em Brumadinho foi uma tragédia terrível” e que continua pensando nas vítimas e em seus familiares. “No entanto, a TÜV Süd está convicta que não tem nenhuma responsabilidade legal pelo acidente.”
–
Angélica Andrade e Marcela Rodrigues, que perderam irmã e pai, apresentaram queixa-crime na Alemanha contra a TÜV Süd