Por que o aborto ainda não é um direito no Brasil?

No Dia de Luta pela Legalização do Aborto na América Latina, frente nacional feminista questiona o atraso. Uruguai, Argentina e México conquistaram avanços, mas país de Bolsonaro insiste em negar direito mulheres ao próprio corpo

por CFEMEA

Em 2002, a Articulação Feminista Marco Sur lançou a “Campanha Tua Boca é Fundamental Contra os Fundamentalismos”, para enfrentar a explosão de terror e da guerra detonados por Bin Laden e Bush. Organizações e movimentos feministas articulados na América Latina denunciaram assim o avanço dos grupos antidireitos das mulheres, impulsionado por grupos fundamentalistas religiosos contra nossas democracias e os direitos já conquistados, como por exemplo, a cruzada promovida constantemente contra o planejamento familiar e o uso de métodos contraceptivos.

Naquele momento, as feministas denunciaram o início de uma contraofensiva antifeminista feroz no mundo que tem como meta a redomesticação dos corpos das mulheres, ou seja, a volta à “privacidade” do mundo doméstico, a sujeição mais absoluta das mulheres ao patriarcado, na condição única e desejavelmente exclusiva de cuidar.

Para os conservadores e fundamentalistas, o Feminismo e os grupos LGBTQIA+ são os grandes vilões, conforme alardeiam na sociedade, que teriam o plano para acabar com a Igreja e a família. Esta política de intolerância e repercussão desde então se alastrou pelo continente e, no Brasil chegou em seu ápice com a eleição de Jair Messias Bolsonaro, candidato a líder mundial da extrema-direita. Liderança vocalizadora de todo o machismo, misoginia, intolerância e racismo que a sociedade brasileira jamais pensou existir com tamanho obscurantismo.

Diante de tantos retrocessos e tentativas de soterrar direitos já garantidos, como o Aborto Legal, neste 28 de setembro de 2021, Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pela Legalização do Aborto, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto lança uma Nota Pública em que expõe os princípios e a base da luta feminista pelo Aborto Legal no Brasil.

A Frente, formada por organizações feminista e movimentos de mulheres de todo o país, denuncia os retrocessos e reafirmam seu posicionamento político: “a descriminalização e a legalização do aborto é o caminho para amenizar o preconceito, a dor, a discriminação e execração pública de mulheres que optam por ele em determinado momento de suas vidas. E, do ponto de vista da coletividade, o aborto legal é um caminho para a promoção da saúde pública de qualidade, com a proposta de ampliação de serviços de saúde sexual e reprodutiva gratuitos, acessíveis e seguros, e políticas de proteção de meninas e mulheres para além de argumentos morais”.

É pela vida das mulheres, é pela vida das meninas, é pela vida de todas as pessoas que possam gestar!

Confira a nota na íntegra aqui:

Manifesto

28 de setembro – Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto

NOSSA LUTA É POR DEMOCRACIA, JUSTIÇA, DIREITOS e FORA BOLSONARO!

Nesse 28 de setembro, data marcada pela luta dos movimentos de mulheres e feminista do Brasil, e de toda a América Latina e Caribe, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto vem reafirmar seu compromisso com a manutenção do Estado laico e democrático de direito.

Reafirmamos nosso compromisso com a defesa da vida e dos direitos das mulheres e das pessoas que gestam a terem condições de decidirem sobre suas próprias vidas e a construírem seus projetos de existência, compatíveis com suas escolhas, com a justiça reprodutiva e a dignidade humana.

Reafirmamos todas as conquistas libertárias que a ciência e a luta feminista alcançaram para melhorar as condições de vida de todas as mulheres: o planejamento reprodutivo, a pílula anticoncepcional, o DIU, o direito a interromper a gestação em casos de risco de morte para a mulher, por estupro e feto anencéfalo.

Reafirmamos também a importância da existência do Sistema Único de Saúde (SUS), o melhor sistema de saúde do mundo e a possibilidade de atenção e cuidados em saúde sustentadas gratuitamente para todas as mulheres, independente das condições econômicas desiguais entre nós mulheres!

Apesar dos imensos desafios impostos pela pandemia da covid-19 à vida e aos direitos das mulheres, celebramos no Brasil, uma possibilidade de atenção para casos de aborto legal, via telemedicina, procedimento seguro, medicamentoso, que na maioria dos casos não requer quaisquer procedimentos posteriores, mostrando-se um método acessível, barato e sem exposição para as mulheres que o acessam.

Essas conquistas sofrem, no Brasil do governo Bolsonaro, ataques sistemáticos para retrocedê-las.

O governo brasileiro, alinhado a uma política de ultradireita internacional e profundamente conservadora de países autoritários que repetidamente violam direitos, é também regido por forças religiosas extremistas, que pregam a subordinação total das mulheres. Esse governo reforça a divisão sexual do trabalho, que empurra as mulheres para dentro de casa como propriedade dos homens e na tarefa exclusiva do cuidado familiar, sem nenhuma proteção do Estado Brasileiro, sem previdência social, sem equipamentos públicos que possam atenuar a tarefa de cuidado, como creche e ampliação das unidades de saúde.

NEGACIONISMO, MORALIDADE E HIPOCRISIA SOCIAL

No cerne dessa questão está colocada a autonomia reprodutiva das mulheres, centro dos ataques dos governantes e políticos brasileiros, buscando negar direitos às mulheres e pessoas que gestam, especialmente o de planejar sua vida reprodutiva de acordo com suas condições emocionais, financeiras e momentos de vida.

Esse período histórico nos desafia profundamente a enfrentar uma pandemia — que já levou tantas pessoas próximas, familiares e companheiras de vida –, e também um governo negacionista e genocida que insiste em colocar em risco a vida do povo brasileiro ao estimular aglomerações, desdenhar da vacina, do uso de máscaras e menosprezar com piadas a dor e sofrimento das famílias de mais de 590 mil pessoas que morreram em decorrência da covid-19 e suas consequências.

Utilizando os valores morais, que só servem para punir as mulheres, o Governo Federal expressa, defende e produz uma política racista, patriarcal e cisheteronormativa que se realiza em medidas que reforçam um discurso por um modelo de família único e muito distante de nossa realidade.

A família brasileira tem muitas e diversas conformações, existe de diversas formas, que não se encaixam no modelo defendido pelo atual governo federal, e se mostra distante da realidade das famílias que são, em sua maioria, formadas por mães que sozinhas sustentam seus filhos, avós que criam suas netas e netos.

No país em que o “agro é pop, agro é tudo” e um dos grandes exportadores mundiais de alimentos para o exterior, a insegurança alimentar é gigante, atingindo aproximadamente 43 milhões de pessoas. A grave crise econômica, comandada pelo governo Bolsonaro, tem consequências severas e que tendem a se agravar, empurrando cada vez mais pessoas para a fome e para a situação de rua em inúmeras cidades. Entre essas, muitas mães com suas crianças.

A perspectiva controlista e policialesca tem no Legislativo o seu lugar de excelência, tanto a nível federal como a nível local. Recebemos investidas incessantes para tentar criminalizar o direito ao aborto em todos os casos, inclusive naqueles resultantes de estupros de crianças e adolescentes. Vivemos num país em que a violência sexual contra essa faixa etária tem números estarrecedores e revela as consequências de uma política de governo violenta não apenas contra mulheres adultas — muitas vezes abandonadas por seus parceiros ao anunciar uma gestação –, mas também contra suas próprias crianças, adolescentes e jovens.

São vários os Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional e legislativos municipais, reforçados por atos Normativos criminosos desses governos negadores de direitos. Contra essas tentativas de retirada de direitos seguimos, reiteradamente, trazendo a público a defesa da vida e da dignidade de todas as mulheres, particularmente negras e pobres, que vivem sem justiça reprodutiva, vítimas de uma cultura política machista e racista.

Denunciamos a utilização da religião como forma de controlar as mulheres por parte de governos e legisladores. Esse governo tem nos demonstrado que não vê ou trata as mulheres como sujeitos de direitos, mas como corpos a serem manipulados. O governo e boa parte do legislativo brasileiro são os algozes das mulheres e pessoas que gestam, ao invés de garantir saúde, justiça reprodutiva e bem viver para todas as pessoas.

O racismo no Brasil, se expressa entre outras formas, através da estrutura do Estado, com a criação e implementação de leis injustas e também reproduzindo violências nos serviços de saúde, dentre outros. Como é o caso das mulheres negras, que são as maiores vítimas de morte materna no Brasil.

Se o patriarcado já opera controle e opressão sobre os corpos das mulheres, o patriarcado alinhado ao capitalismo e racismo são responsáveis pelas constantes violências e violações de direitos as quais a maioria das mulheres brasileiras estão submetidas. Eles querem nos destituir de nós mesmas e retirar o nosso poder de autodefinição sobre as nossas vidas.

E perguntamos:

Por que, em pleno ano de 2021, as mulheres devem ser controladas?

Por que gestores públicos negam ou permitem que seja negado e dificultado o acesso a métodos contraceptivos, inclusive o DIU, que servem justamente para impedir uma gestação não desejada ou não planejada?

Por que uma Ministra de governo propõe que a abstinência sexual (das meninas) até o casamento como forma de controlar a vida sexual e reprodutiva de adolescentes e jovens?

É PELA VIDA DE TODAS AS MENINAS E MULHERES!

Recentemente, após a conquista do Uruguai em 2012, tivemos no final do ano de 2020 a legalização do aborto na Argentina. Já este ano no México, o aborto foi descriminalizado por unanimidade dos ministros da Suprema corte, garantindo que as mulheres mexicanas não sofram mais penalidades criminais por decidirem sobre seus corpos. Estas conquistas são fruto de décadas de lutas e nos fortalecem a seguir lutando para que tenhamos os mesmos avanços alcançados no Brasil.

Perguntamos ainda:

Por que, sendo o aborto uma intercorrência comum na vida de pessoas que gestam, o Estado insiste em proibir o aborto (inclusive em meninas vítimas de violência sexual), mas abandona crianças nas ruas, deixa famílias sem renda e com fome, sem escola, sem SUS, sem proteção social, sem futuro?

Que hipocrisia é essa que diz defender a vida, mas é campeão em morte materna no mundo, agravada na pandemia, negligenciando assistência adequada em hospitais, maternidades e serviços de saúde; incentivando a violência machista e racista; liberando o uso de armas e a apontando para quem discorda de sua política fascista e, principalmente, negando o direito à maternidade ao assassinar os filhos daquelas que vivem nas periferias, sem políticas sociais, quando, recorrentemente, as polícias, braço armado do Estado, executam vidas nesses territórios?

Esse mesmo Estado que dificulta a prevenção da gravidez — impedindo, por exemplo, que a educação sexual se realize nas escolas — sustenta a proibição do aborto e, em seguida, não permite a vivência da maternidade ao matar crianças, adolescentes e jovens negros nas periferias.

Portanto, afirmamos que a manipulação da fé das pessoas e a falsa defesa da vida esconde uma política do genocídio, levada a cabo pela forma de gerenciar a crise sanitária instalada pela covid-19, mas também pela violência política e da polícia, cada dia mais alinhada ao fascismo bolsonarista.

Assim, a Frente Nacional vem a público novamente, nesse 28 de setembro, para reiterar nosso compromisso com a luta pela maternidade livre e pela vida de todas as mulheres e pessoas que gestam, contra a criminalização do aborto e pelo direito a viver com autonomia e justiça reprodutiva.

Continuamos denunciando a constante violação do princípio do Estado laico, preconizado pela Constituição Brasileira de 1988, que respeita a pluralidade de crenças, mas também distingue os papéis da religião e do Estado.

Reafirmamos que a democracia só é viável pelo debate livre de julgamentos, não sobrevive aos controles, opressões, mitos e preconceitos como os que envolvem os debates e garantia do direito ao aborto, uma prática milenar entre mulheres de todas as classes sociais, e que é o último recurso diante de uma gravidez não planejada, indesejada ou violenta.

Defendemos ainda educação sexual nos currículos escolares, em defesa da autonomia sobre os nossos corpos, para que crianças e adolescentes saibam identificar e denunciar qualquer abuso sofrido, assim como ter informações corretas e seguras para fazer escolhas mais conscientes sobre sua vida sexual e reprodutiva.

E reafirmamos:

Que nenhuma mulher deve ser presa, punida, maltratada ou humilhada por ter feito um aborto. Defendemos a legalização do aborto no Brasil e, reiteramos a defesa, ampliação e fortalecimento dos serviços de aborto legal no SUS, um dever dos governos, do Estado e um direito. Precisamos de menos vigilância sobre a vida, o corpo e a sexualidade das mulheres e mais políticas de atenção integral à saúde sexual e reprodutiva, porque saúde não é mercadoria, mas direito;

A descriminalização e a legalização do aborto é o caminho para amenizar o preconceito, a dor, a discriminação e execração pública de mulheres que optam por ele em determinado momento de suas vidas. E, do ponto de vista da coletividade, o aborto legal é um caminho para a promoção da saúde pública de qualidade, com a proposta de ampliação de serviços de saúde sexual e reprodutiva gratuitos, acessíveis e seguros, e políticas de proteção de meninas e mulheres para além de argumentos morais.

Queremos um Estado brasileiro verdadeiramente laico, antirracista e sem sexismo, onde todas as pessoas possam viver em liberdade e se sentindo seguras. Estamos alertas aos interesses políticos em perpetuar privilégios e aniquilar direitos!

Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto

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