Mauro Iasi analisa como Bolsonaro pode ajudar a democracia burguesa a restaurar sua dignidade perdida e mover as forças de esquerda novamente para o pântano da conciliação de classes.
No Blog da Boitempo
“Ganhar uma guerra é tão desastroso quanto perdê-la”
Agatha Christie
Entre os muitos crimes do presidente miliciano, desde o genocídio causado por seu negacionismo e inépcia na pandemia, passando pelos crimes eleitorais em razão do uso de máquinas industriais de massificação de fake news, até a convocação e participação em atos antidemocráticos, e as relações escusas com milícias e supostas práticas criminosas, entre tantos outros que aqui poderíamos enumerar, um crime pode passar despercebido.
O detetive Hercule Poirot, criação da magistral escritora Agatha Christie, disse, certa vez, que em muitos momentos o mais importante não é o que se vê, mas aquilo que se esconde por trás daquilo que se vê. O que vemos é um imbecil, inepto a governar, um provocador e golpista. Sentimos na carne os resultados de seus descaminhos, na inflação descontrolada, no desemprego, na fome, na destruição de serviços essenciais, no desastre ambiental, na vergonha e isolamento internacional e na emergência de hordas de imbecis que se sentem autorizados a abrir as masmorras das trevas irracionais que seus profundos ressentimentos abrigavam.
Entretanto, o que esse quadro visível e evidente esconde? Já avaliamos, em outras oportunidades, as conexões desta forma aparentemente irracional com os interesses de classe que a determinam, as divisões entre as frações das classes dominantes, entre os que já chegaram à convicção de que o miliciano é um problema para o bom andamento da pauta do grande capital e aqueles que temem que seu afastamento possa colocar em risco o bom andamento dessa mesma pauta. Não tenho dúvidas que os interesses de classe são aqui essenciais para a verdadeira compreensão da catástrofe que nos assola. Entretanto, quero agora chamar a atenção para outro aspecto da atual crise, que corre o risco de passar despercebido, mas que pode ter consequências significativas.
A aposta reacionária que se serviu da extrema direita para impor a pauta do grande capital criou uma profunda instabilidade, que acabou desnudando as contradições da forma política burguesa instituída. A República ameaça se dissolver, tornando evidente um conflito entre os famosos três poderes: o Executivo sob comando de um insano golpista; o Legislativo muito ocupado em dar sequência à pauta imposta, que abdica de seu papel de ser um freio quando o poder Executivo sai dos trilhos da racionalidade governativa; e, finalmente, o Judiciário que, logo após legitimar um golpe explícito que afastou uma presidente eleita – com todo o arsenal que lhe confere o monopólio de interpretação da norma constitucional instituída –, prevarica descaradamente contra uma infindável sucessão de crimes praticados pelo mandatário miliciano que ocupa a cadeira presidencial.
Devemos agregar a este naufrágio de princípios consagrados pela teoria política clássica o vergonhoso ziguezague do chamado quarto poder: os grandes monopólios da mídia corporativa. A rede Globo, apenas para dar um exemplo, foi diretamente partícipe e protagonista na conspiração golpista que desestabilizou os governos anteriores, produziu a histeria antipetista e promoveu as manobras espúrias da frente judiciária da Lava-Jato à condição de espada da moralidade contra os descaminhos da corrupção endêmica, elevando o boçal juizeco de Curitiba à condição de herói nacional. Agora, como porta voz da fração das classes dominantes que querem afastar o miliciano incômodo, segue na prática de algo grotesco que em nada se aproxima daquilo que um dia foi o jornalismo.
A primeira pista de nosso mistério está aqui. O bolsonarismo e sua manifestação grotesca torna evidente as contradições de uma forma política que, em uma situação normal, fica disfarçada sob o manto ideológico que a legitima. A operação ideológica que se apresenta para salvar a substância da forma política que corre o risco de mostrar sua verdadeira natureza em sua nudez vergonhosa, fundamenta-se no esforço de apresentar o bolsonarismo como um ataque à forma democrática, buscando criar no polo que a ele se contrapõe uma unanimidade em defesa da ordem institucional que desmorona, apresentando-a como detentora de uma virtude inquestionável.
Vários porta vozes da ordem se apressam a proferir juízos segundo os quais a atual crise tem demonstrado a força das instituições. As eleições são limpas, o Judiciário está vigilante e atua quando a ordem se vê potencialmente ameaçada, o Legislativo investiga o criminoso no espetáculo da CPI e tira de sua cartola discursos em defesa da vida e da lisura, até mesmo quando os digníssimos senadores se estapeiam. A CPI não é propriamente o mágico que tira a justiça da cartola, mas a moça bonita com roupas sumárias que atrai a atenção do público enquanto os mágicos comandam a privatização das companhias elétricas, dos Correios, atacam os direitos dos trabalhadores, mudam a política tributária em favor do grande capital e tramam a reforma administrativa contra os funcionários públicos e os serviços essenciais em nome da saúde do capital financeiro.
No espelho da ideologia se vê de um lado o miliciano que ameaça a democracia e de outro a defesa da democracia. O miliciano não respeitou as regras do jogo e conspirou com a intenção de colocar em marcha um golpe enquanto viabilizava todas as medidas de interesse dos grandes monopólios capitalistas. As instituições democráticas querem mantê-lo sob controle para que não atrapalhe a viabilização dos mesmos interesses.
De todos os crimes do miliciano na presidência, o que as classes dominantes não podem aceitar é que ele opere a ação política por fora das instituições. Não como as classes dominantes sempre fizeram, nos bastidores da República, atuando dentro e fora das instituições e da legalidade que dizem defender, mas de fazê-lo contra o tapume institucional que esconde este bastidor dos olhos do bom público. Mantendo nossa metáfora, seria como se o mágico levantasse o manto negro que esconde o fundo falso por onde a assistente escapa da caixa de onde deveria sumir.
O golpismo do presidente contra o STF e as instituições em geral, como no caso da crítica às urnas eletrônicas, por exemplo, é indesculpável aos olhos dos guardiões da ordem. Não porque é antidemocrático – nossa classe dominante nunca foi democrática –, mas porque revela a farsa da democracia. A intenção maior das classes dominantes é cobrir de legitimidade o massacre contra a classe trabalhadora e para isso precisa das instituições e de sua suposta respeitabilidade.
Aqui nos aproximamos do crime que pode passar despercebido. A ampla unidade em defesa da democracia ameaçada pelo bufão, retirando os aspectos mais evidentes e visíveis, é reduzida à reação contra um mandatário que se dispôs a lançar mão de recursos políticos para além do cenário institucional, como por exemplo, convocar massas para equilibrar a correlação de forças e sustentar seus interesses, esbravejando que, talvez, não respeite as decisões judiciais.
Independente do fato de tal atitude ser ou não uma bravata, não creio que o risco de ruptura esteja descartado como creem os mais otimistas. O que nos interessa aqui e o que se apresenta como contraponto ao golpismo evidente do miliciano é que parece estar se formando um consenso segundo o qual nos comprometemos todos a restringir nossa ação política nos limites da ordem institucional e jurídica estabelecida. A força política que predominou no último período, graças ao transformismo verificado, nos termos gramscianos, já se rendeu há tempos a este princípio. Vejamos um pouco mais atentamente o que isso significa.
Diante do estupro legislativo do texto constitucional, que retira direitos históricos conquistados, do desmantelamento do Estado e dos serviços públicos pela provável reforma administrativa, da reforma da previdência, da reforma trabalhista, da destruição ambiental, do assassinato das universidades e do SUS, teríamos o direito de ir às ruas e protestar. Depois disso, nossas organizações constituiriam advogados e recorreriam ao sistema judiciário que nos diria que as alterações foram realizadas seguindo os ritos e processos legais e, portanto, têm força de lei e devem ser respeitadas. Então, resignadamente nos recuaríamos e seguiríamos nossas vidas pacatas e ordeiras, submetidos ao massacre cotidiano enquanto faríamos planos e rezaríamos aos deuses para que, um dia, possamos eleger a maioria dos deputados e senadores e um presidente da República que pudesse nomear juízes capazes e honestos para o STF para que, absolutamente dentro da ordem política e jurídica vigente, socializássemos os meios de produção e iniciássemos a construção do socialismo.
O presidente, ou uma sequência deles, uma vez que não seria possível atingir esses objetivos em um único mandato, aceitaria agir estritamente dentro dos limites da ordem e constituiria a governabilidade através de acordos parlamentares e não na organização e mobilização de sua base social. Seria impensável, neste caminho, fortalecer formas de poder popular através das quais os interesses da maioria da população e da classe trabalhadora pudessem se constituir em força de persuasão para pressionar o Congresso ou instâncias jurídicas para que não fechem os olhos às necessidades reais da maioria em benefício dos interesses de uma minoria e do enorme poder econômico que dispõe.
O que devemos esclarecer é que esse não é um caminho proposto, é, de fato, a realidade do caminho percorrido pela principal força de esquerda e, além dela, pela quase totalidade das forças progressistas nos últimos quarenta anos. O resultado, o cenário atual em que estamos, é muito diferente das projeções idílicas idealizadas e há um motivo muito simples para isso. O fundamento do pacto poderia ser assim descrito: nós abrimos mão de qualquer perspectiva revolucionária e as classes dominantes abrem mão de interromper o processo político por meio de recursos extra institucionais, como golpes, uso da força ou manobras jurídicas fundadas em casuísmos. Ocorre que as classes dominantes cobram isto da esquerda, mas elas nunca se submeteram aos termos do pacto que nos foi imposto, nunca atuaram nos limites da ordem instituída e nunca abandonaram os instrumentos de poder que lhes permitem melar o jogo institucional quando lhes interessa.
Vamos a alguns exemplos. Temos que escolher nossos representantes por meio de processos eleitorais, mas as classes dominantes nunca abriram mão do enorme poder econômico que frauda a vontade popular e transforma as eleições em campo de batalha de esquemas publicitários milionários, especializados em esconder os verdadeiros interesses e programas efetivos das forças políticas envolvidas na disputa. A isso chamam de “eleições limpas”. Uma vez eleitos, os representantes começam a operar os esquemas e lobbies através dos quais os digníssimos representantes passam a representar aqueles que os financiam e não aqueles que os elegeram. As decisões econômicas e orçamentárias, disfarçadas e legitimadas como se fossem questões absolutamente técnicas, são de fato a gestão das condições que permitem o bom funcionamento da acumulação de capitais em detrimento das questões mais elementares da vida humana. O monopólio das instituições jurídicas, que proclama e interpreta o direito por trás de uma respeitabilidade e domínio da ciência jurídica, é na verdade a prática sistemática de uma justiça de classe na qual as classes possuidoras contratam guias caríssimos que as fazem atravessar o labirinto jurídico e sair impunes, enquanto os pobres são pegos pelas malhas da justiça e apodrecem nas prisões.
Um policial, que cumpre o dever que lhe foi imposto na divisão social do trabalho, patrulha ruas e inibe crimes, ou seja, age dentro da legalidade instituída, mas também pode levar o suspeito para um matagal e eliminá-lo, pode entrar em simbiose com atividades criminosas e passar a protegê-las, transitando para um posto na divisão social do trabalho da economia política do tráfico, por exemplo. Tomado em seu conjunto as duas práticas, o aparato repressivo age dentro e fora da legalidade e isto não é uma prerrogativa dos corpos policiais, mas de toda a ação política das classes dominantes que sempre atuaram dentro e fora da legalidade e que querem nos impor como barreira intransponível. Empresários bem-sucedidos não usam de seu empreendedorismo para vencer a dura luta da concorrência por seus méritos e virtudes, mas, via de regra, pegam o atalho da corrupção e molham a mão de quem pode favorecê-los ou deveria puni-los. O ministro da economia destrói a economia do país sob justificativas técnicas amplamente aceitas, enquanto guarda seu rico dinheirinho em offshores.
As instituições democráticas e a ordem jurídica estabelecida não são o contexto dialógico perfeito – como esperava Habermas –, ao qual todos estamos inseridos e devemos respeitar, são as regras que existem para poder restringir nossa ação nos limites da ordem. Regras estas que as classes dominantes não precisam respeitar ou levar a sério.
Depois de anos respeitando zelosamente estes princípios, uma força política pôde ser afastada da presidência por uma escandalosa manobra política, jurídica e midiática sem nenhum fundamento, bastou que três imbecis, conhecidos como Reale, Bicudo e Janaina, apresentassem um arrazoado com as palavras mágicas corretas, que o presidente do Supremo – indicado pelo força política deposta – chancelasse o rito legal para consolidar a ilegalidade e uma corja de deputados abraçasse uma bandeira, mandasse beijinhos para seus familiares e sua cidade natal e assassinasse a ordem constitucional abrindo caminho para o fascismo.
O crime que pode passar despercebido é que o miliciano que ocupa a presidência com seus crimes pode auxiliar a ordem a levantar o tapume ideológico que esconde o corpo abjeto da democracia burguesa, vestindo novamente sua nudez com finas roupas que voltem a lhe conferir a dignidade perdida, ao mesmo tempo que procura reconduzir as forças de esquerda novamente ao pântano da conciliação de classes, apagando a ignóbil traição recente e desarmando os trabalhadores para que pudessem enfrentar a inevitável traição futura.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
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Imagem: Christopher Ulrich, O Tolo
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