Defensoria recorre ao STJ contra decisão de desembargadores que manteve prisão de uma mãe de cinco filhos que furtou R$ 21,69, em mercadorias de um mercado, por estar ‘com fome’; decisão é ‘criminalização da miséria’, diz Padre Julio Lancelotti
Jeniffer Mendonça, Ponte Jornalismo
“Reincidência” foi a palavra que o desembargador Julio Caio Farto Salles mais utilizou em voto como relator, especificamente sete vezes, para negar o pedido de liberdade provisória a uma mulher de 41 anos, mãe de cinco filhos, que furtou duas Coca-Colas, dois pacotes de miojo e um suco em pó Tang, avaliados em R$ 21,69, de um minimercado e alegou que “roubou porque estava com fome”. O caso foi revelado pela Ponte em 1 de outubro e a prisão aconteceu em 29 de setembro.
É a segunda vez que o Tribunal de Justiça de São Paulo rejeita o pedido da Defensoria Pública, que requisitou que a mulher respondesse ao processo em prisão domiciliar, já que é uma alternativa prevista no artigo 318 Código de Processo Penal e ratificada em determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) para gestantes ou mães com filhos de até 12 anos, para crimes sem violência ou grave ameaça. Em nova decisão, a 6ª Câmara de Direito Criminal ratificou, em 7 de outubro, os argumentos dados pelo promotor Paulo Henrique Castex e pela juíza Luciana Menezes Scorza, que enfatizaram que a mulher praticou furtos outras vezes, que a prisão preventiva (sem tempo determinado) se faz necessária para garantir a ordem pública e por ela representar um “risco à sociedade”, além de ter informado que os filhos estavam sob os cuidados da avó.
No voto do acórdão (decisão de um grupo de magistrados), acompanhado pelos desembargadores Eduardo Abdalla e Ricardo Tucunduva, Farto Salles escreveu que a mulher “se encontrava em cumprimento de pena em regime aberto quando do cometimento do delito em questão, tudo a desvendar índole indiscutivelmente voltada à delinquência ou persistência na senda do crime, revelando-se a segregação imprescindível para se obstaculizar risco real de novas recidivas, considerado o caráter nocivo próprio daqueles que fazem dos delitos seu modo de vida”.
Na sua decisão, o desembargador ainda justificou que “fosse a dificuldade financeira, por si só, suficiente para delinear o estado de necessidade, a maior parte da população receberia um bill de indenidade [garantia de impunidade] voltado à prática dos mais diversos delitos, algo temerário”. E que a mulher não poderia se beneficiar da prisão domiciliar por causa da reincidência e que ela mesma seria a culpada de permanecer longe dos filhos pelo crime que cometeu. “Ainda a respeito, não se demonstrou a imprescindibilidade da soltura para cuidar das crianças, tarefa igualmente possível aos avós ou outros familiares (cuja inexistência não se cogitou, indicando-se, ao contrário, estar a prole sob os cuidados de sua genitora fls. 39), cabendo salientar haver a própria ré provocado seu afastamento dos menores ao se envolver, em tese, com a prática de novo ilícito”.
Segundo o site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Salles recebe salário bruto de R$ 78.309,32. Com os descontos, o salário que cai na sua conta é de R$ 59.001,52.
À Ponte, na primeira matéria sobre o caso, o defensor público Diego Polachini argumentou que “o artigo [sobre a prisão domiciliar para mães] não exige a demonstração dos cuidados da criança”. Na petição, ele destacou reportagem do jornal Extra que mostrou pessoas garimpando restos de ossos e carne rejeitados em supermercados do Rio de Janeiro.
O defensor entrou com um pedido de liberdade provisória ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) em 8 de outubro, que ainda não foi julgado. O relator é o ministro Joel Ilan Paciornik.
Para o Padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, o sistema de justiça não auxilia pessoas em situação de vulnerabilidade social, o que gera um círculo vicioso. “É a criminalização e punição da miséria, quando a Justiça não reconhece que uma pessoa furtou porque estava com fome”, critica. “Os fabricantes da pobreza são inatingíveis e é como a frase do Eduardo Galeano: ‘a justiça é uma serpente que só morde os pés descalços’”.
Momento da prisão
O supervisor do estabelecimento viu através das câmeras de segurança do mercado Oxxo, na zona norte da capital, a mulher colocando os produtos dentro de uma sacola e saindo sem pagar. No mesmo momento, uma viatura da Polícia Militar passava pelo local e uma funcionária chamou os policiais. A mulher tentou fugir, mas foi alcançada pelos PMs.
Quando foi apresentada no 27º DP (Campo Belo), a acusada estava com escoriações na cabeça. Segundo a versão dada pelos policiais e que consta no boletim de ocorrência, os ferimentos teriam ocorrido porque, na fuga, ela teria caído duas vezes. A Defensoria Pública contesta esta versão. “A empresa vítima não relata qualquer dessas quedas e a paciente permaneceu em silêncio. Ressalte-se que a sua lesão ocorreu na testa, não sendo compatível com uma suposta queda, em que as lesões ocorrem, via de regra, nas mãos e joelhos”, descreveu Polachini.
“Portanto, sem a realização da audiência de custódia e sem qualquer documento médico a atestar a integridade física do flagrado, não é possível concluir pela higidez do ato de prisão, o que a torna ilegal”, concluiu o defensor.
No acórdão, o relator Farto Salles justificou que a ausência da audiência de custódia está embasada na suspensão decretada pelo Tribunal de Justiça por causa da pandemia. Esse tipo de audiência voltou a ser retomada em São Paulo a partir de 4 de outubro.
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Imagem: Farto Salles ao tomar posse como desembargador, em junho de 2019 | Foto: Secretaria da Justiça e Cidadania