Teatro Dadá: em memória de um bebé morto. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“Prendre un enfant par la main / Pour l’emmener vers demain. /
Pour lui donner la confiance en son pas / Prendre un enfant pour un roi”.
(Canção de Yves Duteil. 1977)

Ah, Mário Neto, com a licença de teus pais, seguro tua mãozinha e te levo, passos ainda trôpegos, a caminhar pelas ruas de Jacutinga, em Mesquita (RJ), com teu irmão Théo, de três anos, a quem dou a outra mão. Entramos na barbearia? Melhor não. Faz de conta que seguimos pelas trilhas da Serra do Mendanha para tomar banho de cachoeira. Depois, nossa imaginação nos transporta a Curitiba, quero te mostrar a exposição “Fragmentos do Teatro de Bonecos Dadá” (TBD) no Museu da Imagem e do Som do Paraná (MIS-PR). Quem sabe conseguimos assistir à peça “Os Palhaços Sem Cabeça”?

Um orgulho que cultivo: no exílio em Lima, Peru, fiz parte do TBD. Manipulei um dos palhaços nesse espetáculo policrômico criado pelo titiriteiro francês Marcel Temporal para todas as idades, até para quem, com um ano e meio, está aprendendo a andar. Essa encenação alegre e divertida brinca com as cores e ajuda crianças bem pequenas a distingui-las. São três palhaços, cada um de cor diferente. Decidem descansar e tiram suas cabeças, mas ao repô-las, descobrem que estão trocadas. Tentam várias vezes até que, orientados pela gritaria do público infantil, conseguem acertar.  

Na visita à exposição, sempre de mãos dadas com Mário e Théo, circulamos pelas salas do Museu, que está repleto de crianças com seus pais e avós. Explico aos dois irmãos a denominação de “fragmentos” justificada pela história do grupo teatral, que teve muitos bonecos destruídos pela polícia na época da ditadura empresarial-militar, outros se perderam quando saíram para o exílio e outros ainda não resistiram à marcha do tempo, mas centenas deles continuam vivos e fazem parte do acervo do TBD. Alguns estão exibidos na mostra inspirada no livro de Dinah Pinheiro “Teatro de Bonecos Dadá – Memória e Resistência”.

A resistência

Enquanto percorremos a exposição, resumo para Mário e Théo a história de mais de meio século do TBD, criado pelo amazonense Euclides Coelho de Souza radicado em Curitiba, hoje com 86 anos, e a paranaense Adair Chevonika, já falecida. A exposição é construída através do diálogo dos bonecos com o acervo do próprio MIS-PR: os objetos tridimensionais, os recursos multimeios, o patrimônio audiovisual, as fotos e cartazes dos festivais e peças do Teatro de Dadá que rodaram o mundo – está tudo lá. Vitrines, painéis, estantes e prateleiras sustentam os bonecos expostos. Entramos em uma das salas e não consigo reter o grito:

Olha ali, Mariozinho, olha ali Théo, a Chapeuzinho Vermelho, a Vovó, o Lobo, eu trabalhei nessa peça no Teatro de Miraflores, em Lima, em 1970, numa montagem do TBD. Era uma versão do Marcel Temporal que pode ser resumida na pergunta provocadora: “Quem tem razão, o Lobo ou a Chapeuzinho?”. O público é quem decidia. E às vezes a favor do Lobo. Depois conto os detalhes pra vocês.

Na outra sala, mostro aos dois irmãos os bonecos da peça de Maria Clara Machado O Boi e o Burro a Caminho de Belém: estão lá São José, Nossa Senhora, o Menino Jesus, anjos, pastoras e os reis magos. Foi encenada no natal de 1970, em Lima, pelo TBD em parceria com o grupo Kusi Kusi.

– “Falar do Teatro de Bonecos Dadá é resgatar a infância que está em todos os curitibanos, ou os que adotaram Curitiba como sua” – disse Mirele Camargo, diretora do Museu, na abertura ao público. “Por mais de 50 anos, Euclides e Adair brincaram com criatividade e imaginação com seus bonecos, cabendo ao espectador a decisão final, o que era a marca registrada do grupo”.

Os espetáculos do Dadá, que faziam as crianças pensar e por isso foram considerados “subversivos”, eram encenados em teatros, mas também em ruas, praças, parques, quermesses, creches, escolas, casas paroquiais, barracões, igrejas, circos, garagens, tablados, carrocerias de caminhão e até em presídios – qualquer lugar onde houvesse uma criança ou um adulto capaz de se encantar com as inúmeras versões das histórias narradas.

As mortes

Essas histórias, Mário e o Théo mereciam mesmo ouvir.  Mas no mesmo dia em que se abria a exposição de bonecos lá em Curitiba, o bebé morto no dia 25 era sepultado no Cemitério de Xerém, ali na Baixada Fluminense, depois de ser atingido mortalmente por uma bala na barriga, que perfurou uma veia de seu coraçãozinho, enquanto cortava o cabelo na barbearia e comia um biscoito. A irmã de 14 anos, ali presente, o amparou em seus braços. Tarde demais. Feriram ainda seu irmão Théo no tornozelo, golpeando a nossa dignidade.

A Policia Civil investiga a atuação de milicianos. Tragédias como essa são cada vez mais frequentes no país governado por um demente, que fomenta a violência ao isentar armas e munições de impostos, facilitando seu uso. O levantamento do Instituto Fogo Cruzado registra 103 crianças baleadas no Grande Rio em cinco anos, 30 delas mortalmente.

Neste ano, só na Região Metropolitana do Rio, quatro crianças foram assassinadas por tiros: Alice Pamplona, 5 anos, morreu no colo da mãe no Rio Comprido; Ana Clara Machado, da mesma idade, na porta de sua casa em Pendotiba, Niterói; Kaio Baraúna, 8 anos, numa festinha infantil em Bangu. Fora da cidade do Rio, outras: em Barra Mansa, Ycaro Santos, de 2 anos, atingido por uma bala enquanto brincava na rua. Quantos mais?

Não consigo desviar o olhar da foto do bebé de apenas um ano e meio, com a chupeta pendurada no pescoço. Ele está sereno, sem saber o que o espera. Com o coração apertado, escuto sem parar a música “Prendre un enfant par la main” do cantor francês Yves Duteil, questionado por sua filiação política conservadora, mas comprometido com os direitos da criança. Assisti o espetáculo “Tous les droits des enfants” com minha filha de oito anos, em 1982, no Théâtre Olympia de Paris. A proposta de todos nós segurarmos a mão de uma criança para protegê-la, abrigá-la, proporcionar-lhe segurança e fazê-la confiar em seus passos se choca com a política de violência generalizada fomentada por política do governo genocida.

Direitos da criança

Artistas, como Yves Duteil, dão visibilidade ao mundo infantil. Ele fez, no campo da música lá na França, aquilo que o Teatro de Bonecos Dadá (TBD) construiu nas artes cênicas aqui no Brasil. Era isso que a sociedade brasileira devia oferecer às crianças: colo, canções de ninar, música, lazer, arte, cores, divertimento, segurança. Em caso de sofrimento, aliviar a dor, secar as lágrimas. Busco a ambos como refúgio para adquirir força e resistir à tragédia que ora vivemos.

– “Até quando vamos perder entes queridos? Senhor, misericórdia. Muita dor na minha alma” – diz o pai do bebê numa postagem nas redes sociais.

A questão é que essas tragédias já viraram rotina, foram banalizadas, até o espaço conferido a elas pela mídia foi reduzido. Desculpem o termo, mas é muita escrotidão a forma como a sociedade brasileira, escondida em sua impotência e protegida por uma carapaça de insensibilidade, vem tratando suas crianças. Somos todos responsáveis e cúmplices por não darmos uma resposta contundente a tais crimes, por aceitarmos conviver com eles.

Nos ensaios do Dadá, Adair Chevonika gostava de cantar “Luzes da Ribalta” de Chaplin. Ela acreditava que “o ideal que sempre nos acalentou, renascerá em outros corações”. Será?

Obs: Tradução livre de Yves Duteil: “Segurar a mão de uma criança / para guiá-lo ao amanhã de esperança. / Para que confie em seus passos com firmeza, / precisamos tratá-la como uma Alteza”. Yves Duteil. 1977. https://www.youtube.com/watch?v=nuaNqlFdFSs

P.S. – Uma notícia alvissareira: nesta quinta (28), Luana Ferreira Rodrigues defendeu a tese: Práticas e Políticas Linguísticas no Alto Solimões: plurilinguismo, formação de professores na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru no PPG em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina. Gilvan Muller (orientador) e Rosângela Morello (co-orientadora). Banca: Carla Valle (UFSC); Eliana Sturza (UFSM) José R. Bessa (UNIRIO); Maria Inez Lucena (UFSC) e Rainer Enrique Hamel (Universidade Autônoma do México). São pequenos passos como esse que ajudam a construir outro Brasil. A tese é dedicada à Sua Alteza João Manuel, que ainda não chegou, mas – diz Luana – “já escuto os teus sinais”.

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