Estatuto da Pessoa com Câncer: realidade ou fantasia?

José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, acha que a resposta está nas lutas pela Saúde Pública. Pois o Congresso que aprovou direitos inéditos para os pacientes é o mesmo que mantém o SUS estrangulado, por meio do “teto de gastos”

Por Flávio Dieguez, no Outra Saúde/Outras Palavras

O Congresso Nacional acaba de dar ao país motivo de muito orgulho mas, ao mesmo tempo, de perplexidade. A satisfação decorre da aprovação pela Câmara dos Deputados, em 27/10, do Projeto de Lei 1605/19, instituindo o Estatuto da Pessoa com Câncer, que proporciona um arcabouço legal bastante amplo sobre os direitos do cidadão nesse campo. Pela lei – que já havia passado no Senado e seguiu para sanção presidencial –, passa a ser dever do Estado adotar as necessárias para diminuir as desigualdades existentes; desenvolver políticas públicas de saúde específicas para o câncer; realizar ações e campanhas preventivas; assegurar acesso universal, igualitário e gratuito aos serviços de saúde concernentes; e assegurar também capacitação contínua dos profissionais que atuam diretamente nas fases de prevenção, diagnóstico e tratamento da pessoa com câncer.

UM CONGRESSO DE DUAS CARAS

São inúmeros motivos de comemoração. Os pacientes dos serviços públicos passam a ter direito a acompanhante, a atendimento educacional no hospital ou domiciliar, garantia de acesso aos medicamentos, assistência psicológica, tratamento adequado da dor, atendimento multidisciplinar e cuidados paliativos. Prevê-se, inclusive, formalmente, a avaliação periódica do serviço prestado pela rede pública. No entanto, tudo isso é incerto. “Há uma contradição aí”, pondera, prudentemente, o médico sanitarista e ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão. “O mesmo Congresso que aprova o estatuto, aparentemente tão avançado ou importante, que busca proteger os direitos das pessoas com câncer, nega permanentemente ao Sistema Único de Saúde os recursos financeiros necessários para que o que está no estatuto seja cumprido”.

AS CONSEQUÊNCIAS DO DESFINANCIAMENTO

O Brasil já era, antes do estatuto, um dos poucos países em desenvolvimento que dispunha de uma política nacional voltada para a detecção do câncer, e cerca de cento e oitenta centros especializados de tratamento do câncer. Como lembra Temporão, essa política vem sendo desenvolvida ao longo das últimas décadas e é de alta qualidade. “Mas o que está no estatuto hoje, o que está nas normas já existentes, o que está nos princípios e diretrizes do SUS – se considerarmos o atual contexto de financiamento do SUS — são inexequíveis”. Ele ressalta que já existe um descompasso enorme entre o que se busca e a realidade. “Há uma iniquidade gigantesca no sistema. Os pacientes portadores de câncer demoram mais para fazer o seu diagnóstico. Demoram mais para fazer sua quimioterapia, demoram mais para iniciar a radioterapia, demoram mais a fazer cirurgia do que os brasileiros que dispõe de acesso ao sistema privado de planos e seguros de saúde”.

UM MOTIVO A MAIS CONTRA O “TETO DE GASTOS”

O ex-ministro reitera a contradição lembrando da EC-95, a emenda à constituição, aprovada em 2016, que impôs um limite absurdo às despesas do orçamento. “A emenda”, diz Temporão, “já retirou mais de vinte bilhões de reais do orçamento do SUS. Então é muito contraditório ouvir os discursos dos zelosos parlamentares defendendo os brasileiros que sofrem de câncer. Esses são os mesmos deputados e senadores que votaram pela aprovação da emenda”. Em conclusão, diz ele, o estatuto é um avanço do ponto de vista do fortalecimento legal que dá ao que hoje está em uma série de normas administrativas (como portarias, políticas públicas e outras disposições). Mas se tornará simples letra morta se o próprio Parlamento não der ao SUS condições financeiras, tecnológicas, assistenciais de acesso a tratamento, para que essa norma legal seja efetivamente cumprida.”

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