Por Alicia Lobato, em Amazônia Real
Glasgow (Escócia) – Grandes projetos de infraestrutura avançam na Amazônia, ameaçando populações inteiras. Não raras vezes, elas são expulsas ou espremidas para as margens dos empreendimentos. O aquecimento é um problema global, atinge a todos, como está evidente pelas discussões na COP26. Mas para uma parcela populacional periférica os impactos das mudanças climáticas representam habitações em áreas de risco, o não acesso ao saneamento básico, o convívio com a poluição dos rios e mares e até a incerteza de se amanhã haverá um teto para morar. O nome disso é racismo ambiental, um tema que não está na lista de prioridades de líderes mundiais, empresários, ambientalistas e ativistas.
Com uma delegação de apenas quatro pessoas, os quilombolas marcaram presença pela primeira vez na Conferência do Clima da ONU, realizada em Glasgow, no Reino Unido. Desde terça-feira (2), a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) tem circulado pelo evento. Como outros grupos da sociedade civil, eles também têm suas demandas e uma delas é urgente: a titulação dos territórios quilombolas do Brasil. Hoje, existem mais de 3 mil quilombos. Mesmo entrando marginalmente na pauta ambiental, essas terras rurais ou urbanas também são alvos de disputas e são atingidas pela crise climática.
A maioria dos quilombolas brasileiros vive, dia após dia, sob a falta de segurança ambiental em seus territórios. E enfrentam inimigos com poder para inviabilizar suas lutas. Em 3 de outubro, às vésperas da Cúpula do Clima, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) questionou o uso do termo “racismo ambiental” junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU nas discussões sobre o aquecimento global. Desde o início do governo, o governo Bolsonaro titulou apenas três territórios quilombolas.
Para a coordenadora Sandra Pereira, que em Glasgow está acompanhada de mais três quilombolas, está sendo um desafio muito grande falar dos problemas que assolam o país, como é essa questão do racismo ambiental.
O reconhecimento sobre a dimensão racial na crise climática é recente e não é consensual. O movimento ambientalista, predominantemente liderado por pessoas brancas e não raras vezes pertencentes à elite econômica, não prioriza o racismo ambiental nos debates sobre o clima. E, aos olhos desta 26ª edição da COP, os quilombolas perdem em visibilidade para o movimento indígena, que está numericamente em maior peso e finalmente começa a ganhar a atenção dos tomadores de decisão de que eles precisam ser ouvidos.
“A visibilidade indígena é muito grande na Amazônia. Mas nós temos um povo preto na Amazônia, que vive na zona rural, e é importante que tenhamos essa visibilidade”, afirmou Hilton Lucas Durão, morador da comunidade Porto Alegre, localizada no Baixo Tocantins, no Pará, e que conta com 100 famílias. Ele é o único representante quilombola da Amazônia na delegação. Os outros três são dos Estados de Goiás, Bahia e Espírito Santo.
“Apenas uma parte está em um processo de titulação, e são esses territórios que preservam a Amazônia, a fauna e a flora. E atualmente estamos lutando, nos inserindo nos espaços, mostrando nossa luta e tentando trazer a visibilidade que precisamos para a titulação do nosso território e direitos”, afirmou Hilton, que também é engenheiro agrônomo e mestrando em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável. O estado do Pará foi pioneiro na titulação de terras dos quilombolas, que ocupam grandes extensões de terras na Amazônia e 90% delas encontram-se ainda com sua vegetação nativa.
Mesmo com a diferença de tamanho da sua delegação em comparação com outros grupos da sociedade civil, os ativistas quilombolas presentes em Glasgow afirmam que conseguiram mobilizar uma quantidade maior de pessoas para vir até a COP26.
Obras na Amazônia
Para Hilton, quem vive na Amazônia e enfrenta os agravamentos dos problemas ambientais, é muito importante estar presente nesses eventos para tentar ampliar o debate, incluindo o tema do racismo ambiental diante da sanha dos grandes empreendimentos.
“Na minha região, no Baixo Tocantins, temos o grande impacto da Hidrelétrica de Tucuruí. E hoje tem outro projeto de dragagem do rio Tocantins, que acaba com a biodiversidade dos quilombolas e ribeirinhos que vivem na base do rio”, exemplificou Hilton Durão.
Nesta quarta-feira (3), no pavilhão brasileiro, o grupo Coalizão Negra por Direitos se reuniu para discutir os assuntos e encontrar parlamentares do Brasil para falar sobre uma possível agenda que inclua pessoas negras. Parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) ouviram as demandas dos ativistas quilombolas. Kátia Penha, coordenadora da Conaq, falou sobre a ausência dos direitos dos quilombolas e a luta por terras, em sua fala durante a reunião.
“A gente já não consegue mais falar, porque alguém fala por nós, negocia por nós e fala por mais de 3 mil comunidades que estão na fila para serem certificados por esse governo, que só está esperando uma caneta? Como vamos respirar? Será que vamos aguentar? O quilombola renascer da cinzas, é trazer essa pauta ambiental, é falar do cadastro rural, estão todos sobrepostos, precisamos da titulação, que regulamenta as terras quilombolas”, desabafou Kátia Penha.
“Hoje os nossos territórios estão sendo violados, retirados, o desmatamento, a questão das queimadas, impactando a nossa soberania alimentar, e aí tem o racismo muito grande de não titulação dos nossos territórios, isso dificulta nossa vida, nossa dignidade”, acrescentou a coordenadora da Conaq Sandra Pereira. ´”É preciso se colocar juntamente nesses ambientes e “dizer nós temos que discutir, ser ouvidos, a pauta quilombola, racial, dialogada e ter visibilidade.”
De acordo com o Mapa de Conflitos, há 613 conflitos ligados à injustiça ambiental e à saúde no Brasil, sendo que 122 deles na Amazônia Legal. Em muitos deles, é patente a presença do racismo ambiental na origem dos problemas.
Além da Conaq, estavam presentes também membros da Uneafro e da Perifa Sustentável, organizações que defendem pontos diferentes do movimento negro, mas que buscam ampliar as vozes sobre o racismo ambiental.
Negociações de bastidor
Com o início das negociações diplomáticas, após a passagem de 120 chefes de Estado que estiveram presentes nos últimos dois dias em Glasgow, a COP26 entra em uma nova fase. O foco nesta terça-feira foi debater como serão financiadas as ações para frear o aquecimento global.
Com a antecipação das metas e pelo prazo que está cada vez mais curto para o cumprimento do Acordo de Paris, que quer limitar o aquecimento a 1,5ºC até 2030, os governos estão de olho gordo nos 120 trilhões de dólares que uma coalizão de 450 instituições financeiras preveem movimentar para reduzir a emissão de gases estufa. Os debates em torno das formas de financiamento para uma economia de baixo carbono devem se arrastar até o final da COP26, no dia 12.
Também nesta quarta-feira, mais de 40 países concordaram em eliminar gradualmente, entre 2030 e 2040, o uso da energia a carvão, considerada a fonte de combustível mais suja do planeta. O problema é que nessa lista não estão países como Austrália, China, Índia e Estados Unidos, que se recusaram a participar da assinatura do acordo. Para o Reino Unido, berço da Revolução Industrial e anfitrião desta cúpula do Clima, um acordo de eliminação da energia elétrica gerada a carvão seria uma grande vitória.
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Uma comitiva de quatro quilombolas está em Glasgow para mostrar que o aquecimento global impacta bem mais a população periférica. A imagem acima, a comitiva da Conaq durante coletiva de imprensa no Climate Hub em Glasgow (Foto: Luiz Soares Junior/CopCollab26)