Brasil à venda

Joaquim Shiraishi Neto [1]

Embora a Constituição Federal (CF) de 1988 tenha estruturado e ordenado um sistema integral e plural de proteção da Natureza no Brasil, observamos que, após a promulgação do texto, esse sistema passou a ser moldado de forma a corresponder às necessidades da economia de mercado, transformando a sociobiodiversidade brasileira em objeto, mercadoria. Corroborando as teses de Francisco Oliveira[2], do subdesenvolvimento como forma permanente do capitalismo na periferia, o professor de direito econômico da Universidade de São Paulo (USP) Gilberto Bercovici[2] assevera que as reformas neoliberais iniciadas no governo de Fernando Collor de Mello serviram para dissolver as estruturas e os programas contidos no texto constitucional de 1988. A análise econômica do autor sugere um Estado de “exceção econômica permanente”.

No contexto do domínio de uma ordem econômica neoliberal, as leis editadas sobre a questão ambiental não trataram somente de novos temas não regulamentados pelo direito ambiental (tais como recursos hídricos, florestas, acesso à sociobiodiversidade etc.)[3] e de léxicos (escassez, crise, eficiência, gestão, governança, parceria, segurança etc.); abordaram também a construção de uma nova relação entre a sociedade e a Natureza no Brasil, orientada pelos interesses econômicos de um poder global difuso. Os dispositivos legais elaborados e publicados nesse período a pretexto de proteção, inclusive em regime de urgência, como o Projeto de Lei (PL) que deu origem à Lei n.º 13.123/2015, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, estão inscritos no jogo político e nas estratégias econômicas associadas de apropriação da Natureza no Brasil, afrontando princípios expressos na CF de 1988: pluralismo, igual dignidade, isonomia, desenvolvimento sustentável, entre tantos outros.

Entretanto, tais processos econômicos, políticos e ambientais, que ensejaram uma nova relação com a Natureza, sofreram transformações em 2016 – inicialmente, uma espécie de “bloqueio”, que paralisou as ações –, com a posse de Michel Temer, que, para se manter no poder, inseriu no jogo político os direitos fundamentais dos povos indígenas, quilombolas e agricultores familiares, os quais se transformaram em objeto de barganha[4]. Com a inserção dos direitos fundamentais desses grupos e da Natureza no jogo político, esgarçou-se completamente o consenso acordado na Assembleia Nacional Constituinte e expresso na CF de 1988 acerca da necessidade de um sistema de proteção da Natureza.

Com a posse do novo presidente, houve uma mudança, que aprofundou ainda mais os processos de destruição da Natureza no Brasil, diante da eliminação e do afrouxamento dos marcos legais de proteção e da abdicação do governo de promover o que se denomina de governança ambiental[5]. Diante da posição negacionista do governo, baseado em achismos científicos e narrativas conspiratórias, o desmonte de toda a estrutura do sistema de proteção da Natureza edificado à luz da CF de 1988 tem ocorrido desde 2019, conforme a confissão pública do ex-ministro do Meio Ambiente, que, em reunião ministerial, revelou a estratégia do governo: aproveitar a oportunidade da pandemia da covid-19 para desregulamentar e simplificar toda a legislação ambiental infralegal[6], tida como empecilho ao desenvolvimento econômico do país.

Nem a pandemia da covid-19, cujas causas são ambientais, nem os estudos científicos publicados, como os relatórios produzidos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês), têm dissuadido o governo de mudar a sua agenda de destruição da Natureza. O relatório do IPCC, recém-lançado, é um alerta global, pois estamos caminhando em direção ao ponto do “não retorno”[7]. O relatório constata que “as mudanças climáticas são irreversíveis, que a crise é sem precedentes e que o homem tem responsabilidade direta pela situação atual do planeta”, sob pena de novos surtos endêmicos e pandêmicos[8]. As consequências da intrusão de Gaia.

Se, de um lado, o governo federal tem desmontado toda a estrutura do sistema de proteção integral e plural da Natureza para atender a demanda imediata dos madeireiros, garimpeiros ilegais, grileiros, sojicultores, pecuaristas – sublinha-se: todos eles vinculados ao capital internacional, hoje financeirizado[9], que se aproveitam da janela de oportunidade para auferir lucros maiores à custa da destruição da Natureza do Brasil –, de outro lado, parece que o governo tem sinalizado a continuidade de uma política ambiental, igualmente nociva ao contexto de uma sociedade plural, como a nossa, que se tem estruturado desde os tempos do governo Fernando Collor. A Natureza tornou-se uma commodity, enquanto bem ou serviço, como no programa “Adote um Parque”, instituído pelo Decreto n.º 10.623, de 9 de fevereiro de 2021.

Pelo visto, ambas as situações identificadas, que revelam compromissos do governo de curto e longo prazos, têm levado à venda da Natureza do Brasil, isto é, à destruição dos bens comuns da sociedade, o que se vincula não aos interesses e à soberania nacional, mas, antes, ao capital internacional globalizado. Oxalá a sociedade brasileira possa acordar a tempo, diante dos graves problemas ambientais causados pelas ações e medidas desse governo federal, que, ao desfazer-se de toda a Natureza, condena à morte as gerações futuras. O ecocídio está aí, e só não o vê quem se dispôs a tapar os olhos para ser cúmplice dos crimes contra a sociedade brasileira e a humanidade.


[1] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

[2] BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004; BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

[3] Até então, várias coisas da Natureza não eram objeto de cobiça pelo poder econômico. No Maranhão, presenciamos, em alguns lugares, um novo período de conflitos, envolvendo disputas pelo uso e pela apropriação do vento. Se, para a comunidade de pescadores artesanais, o vento informa as condições do tempo, orienta as trajetórias, transforma as paisagens, daí o conviver, para a empresa, é mero objeto de geração de energia eólica.

[4] SHIRAISHI NETO, Joaquim. Xangô! Livre-nos do governo ilegítimo de Temer! O direito das comunidades quilombolas à mercê das conveniências do poder. Combate Racismo Ambiental, 21 ago. 2017. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2017/08/21/xango-livre-nos-do-governo-ilegitimo-de-temer-o-direito-das-comunidades-quilombolas-a-merce-das-conveniencias-do-poder/. Acesso em: 18 ago. 2021.

[5] OBSERVATÓRIO DO CLIMA. “Passando a boiada”: o segundo ano de desmonte ambiental sob Jair Bolsonaro. 2021. Disponível em: https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2021/01/Passando-a-boiada-1.pdf. Acesso em: 12 jul. 2021.

[6] SALLES diz que governo deve aproveitar pandemia e “ir passando a boiada” em medidas regulatórias. 22 maio 2020. 1 vídeo (2:44). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HeQYIbMXbXQ. Acesso em: 19 jun. 2021.

[7] CHADE, Jamil. Painel mundial de cientistas detona tese negacionista de clima. 3 ago. 2021a. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/08/03/painel-mundial-de-cientistas-detona-tese-negacionista-de-clima-de-bolsonaro.htm. Acesso em: 19 ago. 2021.

[8] CHADE, Jamil. Desmatamento aumentará frequência de novas pandemias, diz painel da ONU. 14 ago. 2021b. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/08/14/desmatamento-aumentara-frequencia-de-novas-pandemias-diz-painel-da-onu.htm. Acesso em: 19 ago. 2021.

[9] Entre tantas, conferir as reportagens publicadas: GRILAGEM de terras de Harvard no Brasil é desastre para comunidades e alerta para especuladores. Combate Racismo Ambiental, 15 maio 2020. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2020/05/15/grilagem-de-terras-de-harvard-no-brasil-e-desastre-para-comunidades-e-alerta-para-especuladores/. Acesso em: 28 set. 2021; HENRIQUE, Guilherme; MAGALHÃES, Ana. HStern, Ourominas e D’Gold: as principais compradoras do ouro ilegal da TI Yanomami. Repórter Brasil, 24 jun. 2021. Disponível em:https://reporterbrasil.org.br/2021/06/hstern-ourominas-e-dgold-as-principais-compradoras-do-ouro-ilegal-da-ti-yanomami/. Acesso em: 28 set. 2021; NETTO, Vladimir. Embaixada dos EUA informa à PF sobre apreensão de madeira exportada ilegalmente. Brasília, DF, 21 maio 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/05/21/embaixada-dos-eua-informa-a-pf-sobre-aprensao-de-madeira-exportada-ilegalmente.ghtml. Acesso em: 28 set. 2021.

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