Amazônia queima – e não tem quem apague

Em plena temporada de incêndios, Bolsonaro atrasou a contratação de profissionais e cortou mais da metade da verba para os brigadistas. Estados agem por conta própria através de voluntários. Veja as regiões mais críticas

Por Fernanda WenzelPedro PapiniBettina Gehm e Naira Hofmeister, em O Eco

As chuvas do inverno amazônico que começaram a cair em outubro foram uma benção para a população do Acre, que desde agosto respirava um ar contaminado pela fuligem das queimadas da floresta. Foram também uma saída para o governo do estado, que abriu mão de investir em equipes de combate ao fogo no período seco e acabou na dependência de São Pedro para acabar com as chamas. Mesmo sendo o campeão de focos de incêndio por hectare na Amazônia em 2020 (uma liderança que manteve até outubro deste ano), o Acre não agiu por conta própria para reduzir o problema: “Não temos recursos específicos para isso”, assume o tenente Freitas Filho, do Corpo de Bombeiros do estado. A alternativa, desenvolver parcerias com ONGs e prefeituras para custear a mão-de-obra extra, tampouco foi acionada. “Este ano, não houve nenhuma movimentação nesse sentido”, admite.

Um levantamento exclusivo do ((o))eco, feito através de pedidos de Lei de Acesso à Informação e com checagem junto às assessorias de imprensa dos governos locais, mostra providências tomadas pelos estados da Amazônia Legal para combater o fogo na floresta. Enquanto o Acre não tomou nenhuma medida, Mato Grosso, Tocantins, Roraima, Rondônia e Amapá decidiram contratar brigadistas temporários pela primeira vez em cinco anos. O Amazonas recorreu a voluntários e instalou uma força-tarefa no chamado “Arco do Fogo”, enquanto o Maranhão remanejou efetivos para as áreas de maior incidência de queimadas. O Pará não contratou brigadistas, e tampouco informou sobre outras ações de combate.

“A gente percebe claramente que os estados têm buscado cada vez mais protagonismo no combate aos incêndios florestais”, aprova Gabriel Constantino Zacharias, analista ambiental do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais, o Prevfogo, do Ibama.

A pressão para que governadores agissem começou a aumentar em 2019, quando o governo federal cortou em mais da metade a verba para os brigadistas e atrasou em dois meses a contratação dos profissionais – mesmo diante de um número de focos de calor 40% maior que no ano anterior. Em 2020, o número de focos na região foi o maior dos últimos dez anos, mas o auxílio federal chegou tarde mais uma vez. Neste ano, o Ibama começou a temporada do fogo com apenas 52% do efetivo contratado. Zacharias nega que tenha havido atraso neste ano, pois os brigadistas são enviados gradativamente a campo para cobrir toda a temporada de incêndios.

Brasília também sabota outra importante fonte de recursos para o combate aos incêndios florestais: o Fundo Amazônia, que entre 2012 e 2020 destinou R$ 91 milhões para compra de equipamentos e programas de capacitação aos bombeiros de Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Acre, Pará e ao próprio governo federal. Depois que o presidente Jair Bolsonaro bateu de frente com os principais patrocinadores do fundo, Noruega e Alemanha, nenhum novo projeto saiu do papel.

Para completar, nunca os olhos do mundo estiveram tão atentos ao que acontece na Amazônia, apesar de a região já ter vivido períodos mais críticos de queimadas – em 2010 foram 222 mil incêndios, quase 70 mil a mais que no ano passado. “A percepção do problema dos incêndios florestais aumentou no mundo todo, especialmente por causa do melhor entendimento das mudanças climáticas. O fogo leva à liberação imediata de carbono para atmosfera”, explica Zacharias, que trabalha no Prevfogo há 16 anos, cinco dos quais como chefe.

Baixa efetividade

Ainda que o governo federal estivesse cumprindo exemplarmente seu papel, os brigadistas do Ibama e ICMBio atuam apenas em áreas da União, como unidades de conservação, terras indígenas e assentamentos do Incra – não têm atribuição de combater incêndios em propriedades privadas e unidades de conservação estaduais. Mas no Mato Grosso, essas áreas somadas representam quase 70% do território do estado e, no Tocantins chegam a 50%. Em Rondônia, a área florestal perdida dentro das reservas públicas estaduais já beira os 10%, como ((o))eco mostrou em reportagem anterior.

Por isso, os governadores resolveram reforçar o time de bombeiros militares nas áreas sob sua responsabilidade, em alguns casos, apoiados ainda por brigadistas municipais. A boa vontade, entretanto, esbarra na falta de verba ou mesmo de planejamento – em grande parte dos casos, quando os bombeiros entram em campo boa parte da floresta já queimou.

No Amapá, onde unidades de conservação estaduais correspondem a 23% do território, a decisão de lançar pela primeira vez na história um edital para contratação de brigadistas temporários estaduais não se materializou: até o dia 11 de novembro, nenhuma convocação ou concurso havia sido publicado no Diário Oficial, embora a Secretaria Estadual do Meio Ambiente tenha dito um mês antes que “o edital encontra-se em fase de elaboração”. Agora, o pico das queimadas no estado já passou – o número de focos de calor saltou de 19, em agosto, para 401 em outubro.

“Não adianta gastar dinheiro no momento posterior [ao pico das queimadas]. É preciso saber aplicar recursos e pessoal antes”, lamenta Zacharias.

Caso semelhante aconteceu no Amazonas. Em julho, o governo anunciou um aporte de R$ 11,5 milhões provenientes do banco alemão KfW para a compra de drones e a contratação de 240 brigadistas para atuarem na estação seca deste ano. Seis meses depois (que incluíram o pior agosto da história do estado em termos de queimadas)  o banco ainda não havia liberado o dinheiro. Segundo o KfW, a verba chega ainda em novembro – tarde demais para os bombeiros do Amazonas, que já começaram a desmobilizar uma força-tarefa de combate às queimadas.

A outra solução dada pelo governo do estados, treinar 175 brigadistas voluntários, também não trouxe alívio significativo. “O brigadista voluntário não funciona, porque estas pessoas precisam trabalhar e não tem como ficar à disposição dos incêndios florestais. Esta não pode ser uma política de combate a incêndios florestais”, critica o chefe do Comando de Bombeiros do Interior do Amazonas, tenente-coronel Josélio da Silva Monteiro. 

No Maranhão, terceiro estado com maior número de focos de calor por hectare em 2020, o governo optou por deslocar 192 bombeiros da capital para o interior – estratégia que tampouco garante cobertura permanente ao longo de toda a temporada do fogo. “É de acordo com a necessidade. Quando isso ocorre, os recursos logísticos e de equipamentos são fornecidos pelo governo do estado e o governo federal realiza o pagamento das diárias”, explicou o governo do estado em nota. Todos os esclarecimentos dos estados podem ser lidos aqui.

A regra é não prevenir

Na maioria dos estados da Amazônia Legal, o auge da temporada de fogo costuma acontecer entre agosto e setembro, conforme a média de focos registrados pelo INPE entre 2010 e 2020. Mas as ações contra queimadas deveriam começar bem antes de a floresta arder, com campanhas de conscientização de produtores rurais e comunidades tradicionais que usam fogo para limpar a terra e renovar as pastagens. “O combate é o pior momento, então tudo o que a gente puder fazer antes, melhor”, explica Zacharias.

A abertura de aceiros – nome dado à remoção de faixas de vegetação para criar zonas livres de material combustível – bloqueia a propagação do fogo, por exemplo. “É importante nas beiras das estradas e em outros locais com muita matéria orgânica. Isso impede que um incêndio se torne um grande incêndio”, explica Ana Paula Valdiones, do Instituto Centro de Vida (ICV), que atua na área de governança ambiental no estado do Mato Grosso.

Mas entre os estados que possuem floresta em seus territórios, apenas Roraima e Tocantins contrataram profissionais a tempo de atuarem na prevenção. “Trabalhamos de forma integrada”, orgulha-se o tenente-coronel Erisvaldo de Oliveira Alves, do Corpo de Bombeiros Militar, destacando o trabalho conjunto entre as equipes das forças federais, municipais e estaduais.

Rondônia passou raspando no teste de pontualidade das contratações: seus brigadistas entraram em campo em agosto, pico histórico das queimadas regionais – só que eles chegaram apenas na última semana do mês, quando a maioria dos 4.319 focos de calor (quase 40% a mais do que o registrado em agosto do ano passado) já ardia. No Mato Grosso, o reforço chegou no 13° dia do mês, com efetivo inferior ao planejado “devido a desistências” segundo o Corpo de Bombeiros.

Em Roraima, onde as queimadas começam a aumentar em janeiro e chegam no auge em março, os brigadistas estavam trabalhando já no início de 2021, com um contrato de dois anos. Por outro lado, apenas 197 (65%) dos 300 postos ofertados foram preenchidos – e houve nova redução, devido a “quebras de contrato”, o que faz com que, atualmente, o número de brigadistas seja de 161, praticamente a metade do que o estado definiu como meta.

“É um serviço exaustivo, você fica o dia todo combatendo incêndio, em condições inóspitas, sai cedo e não tem hora para voltar. O pessoal civil não está acostumado com este tipo de serviço, por mais que tenham recebido a capacitação”, avalia a Comandante do Batalhão de Emergências Ambientais (BEA) do Mato Grosso, tenente-coronel Jusciery Rodrigues Marques. 

Outros riscos envolvidos na atividade também podem estar afastando potenciais candidatos. Em agosto deste ano, uma viatura de bombeiros do Mato Grosso foi alvo de tiros no município de Cotriguaçu, a mais de 900 quilômetros da capital Cuiabá. A corporação suspeita que os disparos tenham partido de grileiros de terra que usavam o fogo para limpar a área desmatada. Uma situação que se repete em outras partes da Amazônia. “É comum encontrar grileiros armados, jagunços ou capangas”, resume o tenente-coronel Monteiro, do Amazonas. 

Zero reforços

Os especialistas são unânimes ao afirmar que por ser uma floresta tropical extremamente úmida, a Amazônia não pega fogo sozinha. Por isso, a maior parte dos incêndios florestais no bioma está associada ao desmatamento, explica a tenente-coronel Marques, do Mato Grosso. “Se você colocar fogo na floresta, o fogo não vai pegar. O que acontece é que eles desmatam e depois colocam fogo para limpar o terreno”. Em 90% dos casos, a área queimada é convertida em pastagem para criação de gado, mas nenhum dos estados amazônicos divulga dados sobre a movimentação de seus rebanhos, dificultando o controle social sobre a atividade, como ((o))eco mostrou em outra reportagem.

Como cada estado tem uma dinâmica de desmatamento diferente, a incidência das queimadas também varia de região para região. De novo, sobram evidências de que o Acre deveria ter agido para prevenir incêndios, já que as taxas de desmatamento no estado vêm escalando desde 2017. A curva de derrubadas é acompanhada de perto pelos focos de calor, que no ano passado atingiram o maior número em 15 anos (9.193). “Desmatou mais, queima mais”, resume Ane Alencar, Diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Sem investimento próprio, o único reforço para o estado veio de 29 militares de outros estados enviados pela operação Guardiões do Bioma, uma iniciativa lançada neste ano pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para dar apoio humano e logístico aos estados. 

O Pará, que no ano passado foi o segundo estado da Amazônia Legal com maior número absoluto de focos de calor (38.603), atrás apenas do Mato Grosso, também informou que “não trabalha com contratação de brigadas”.

Governadores buscam alternativas ao Fundo Amazônia

Não basta contratar brigadistas para reduzir as queimadas. “Quem trabalha na Amazônia sabe que o mais complicado aqui é a logística para você transportar a estrutura até o interior. A gente leva viatura e efetivo por terra, por balsa e por avião”, conta o tenente coronel Monteiro, do Amazonas. O combate ao fogo também exige investimentos em drones, monitoramento por satélite, equipamentos de proteção, abafadores, sopradores e uma série de outros equipamentos. 

Mas o Fundo Amazônia, que com um aporte de R$ 12 milhões em 2012 permitiu ao Mato Grosso estruturar o Batalhão de Emergências Ambientais (BEA), por exemplo, não está aceitando novos projetos desde 2019. Segundo o BNDES, gestor do fundo, os projetos já contratados seguem seu fluxo de implementação, mas os estados estão indo atrás de alternativas.

O Banco Mundial desponta como opção: o Mato Grosso já assinou um contrato de financiamento e o Amazonas está nas tratativas finais com a instituição. Em ambos os casos, o Bird exigiu como contrapartida aos empréstimos que as unidades da federação atualizassem seus planos de ação de combate à incêndios, que estavam vencidos – como ((o))eco revelou recentemente. “Este tipo de apoio é importantíssimo para a gente estruturar as nossas bases, expandir e contratar mais gente para trabalhar tanto nas fases de preparação como de resposta ao fogo”, destaca a comandante do BEA do Mato Grosso, a tenente-coronel Jusciery Rodrigues Marques.

O estado também conta com o apoio do Programa Global REDD Early Movers, que já tem garantidos cerca de €44 milhões do banco de desenvolvimento da Alemanha (KfW) e do governo do Reino Unido. A transferência dos recursos, no entanto, está condicionada ao compromisso de manter o desmatamento abaixo da linha de 1.788 km²/ano – meta que não foi atingida no último ano, quando o Inpe registrou a derrubada de 2.263 km².

O combate às queimadas também é uma das prioridades do Plano de Recuperação Verde, lançado em julho pelo Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, formado pelos governadores da Amazônia Legal com o objetivo de atrair recursos para a proteção da floresta — o que até agora não aconteceu. Segundo a assessoria de imprensa do presidente do consórcio, o governador do Maranhão, Flávio Dino, o único recurso confirmado até agora são R$ 100 milhões de um fundo financiado pelos próprios estados, e que estará disponível em 2022.

Enquanto patinam nas ações de combate ao fogo, os prejuízos das queimadas se estendem do agronegócio (da destruição lavouras inteiras à diminuição da fertilidade dos solos), à biodiversidade: estima-se que 17 milhões de animais vertebrados tenham morrido em 2020, apenas nas queimadas do Pantanal. E provocam rombos nos cofres públicos. Segundo um estudo da Fiocruz e do WWF-Brasil, os incêndios na Amazônia levaram ao aumento das internações hospitalares por problemas respiratórios nos últimos 10 anos, a um custo de quase R$ 1 bilhão. “Queimar a vegetação é queimar dinheiro”, resume Zacharias, do  Ibama.

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