A cor do inconsciente. Por Abrao Slavutzky

No Terapia Política

Quando a conhecida psicanalista francesa Françoise Dolto pediu a palavra, fez-se silêncio: “Me perdoe, não tenho o que falar. Sua fala sangra. Sua fala é você, a Psicanálise lhe deve isso, temos que pensar sobre isso.” Foi à reação de Dolto, a grande parceira de Jacques Lacan, à fala da jovem Isildinha Baptista Nogueira sobre sua vida de mulher negra. O ano era 1984 e estavam em Paris, num Congresso sobre Psicanálise e o Terror, entre franceses e latino-americanos. Uma das origens desse livro foi o desafio que lançou Dolto sobre as marcas do racismo na realidade psíquica.

Num país onde mais da metade da população é negra, os sintomas do racismo estão na violência física e psíquica contra os negros. Os armados matam muito mais negras e negros ao longo de toda história brasileira.

Portanto, quando fui indicado pelo PPD -Psicanalistas pela Democracia – para entrevistar colegas, propus que uma das entrevistas fosse sobre o racismo. A psicanalista sugerida foi a colega Isildinha Baptista Nogueira, a primeira brasileira a escrever uma tese de doutorado sobre a realidade psíquica dos negros. Sua tese original foi “Os significados do corpo negro”, mas a autora tinha pensado primeiro no poético título “A cor do inconsciente”. Na nossa entrevista para o PPD, há pouco mais de um ano, pergunto para a colega Isildinha por que não manter o título original em um futuro livro e então, ela concluiu o atual título: “A cor do inconsciente – Significados do corpo negro”, publicado agora pela editora Perspectiva. E na hora da entrevista que está no site do PPD, Isildinha expressou seu desejo que eu fizesse o prefácio do livro, o que aceitei, honrado.

A expressão “a cor do inconsciente” choca, pois o inconsciente, em princípio, não tem cor, mas essa imagem revela uma verdade psíquica, intuída talvez por Françoise Dolto ao dizer o quanto a psicanálise devia à colega Isildinha. No inconsciente há marcas mnêmicas, as marcas na memória e na infância de negros e brancos feitas pelo racismo, uns sofrendo e outros gozando o estranho da diferença da cor, desde uma lógica branca. No capítulo VII do livro “Interpretação dos sonhos” de Sigmund Freud, consta como as marcas mnêmicas vão constituindo o inconsciente. Este livro estuda as raízes psíquicas do racismo estrutural, um racismo entranhado até hoje na sociedade branca, marcas de uma história de escravidão, abandono, maus-tratos, assassinatos.

O racismo é uma paixão que busca se fundamentar numa doutrina, onde o essencial é o desprezo que justifica o ódio. O racista despreza o negro como se fosse um resto, uma imundície cujo protótipo é objeto fecal, pois tem convicção de que todo o mal está fora de si: o inimigo é odiado e ridicularizado. Os racistas são os irmãos do ódio, unidos contra a raça negra, a raça maldita. Portanto, o racismo é um fenômeno de grupo, e, sendo uma paixão, é um desejo posto em tensão. O desejo racista é exterminar o seu objeto de ódio. O racismo tem uma história na condição humana – na segunda guerra mundial, por exemplo, foram os judeus perseguidos e assassinados pelo nazismo.

Os efeitos psíquicos do racismo são essenciais para se entender o Brasil. Pensar, por exemplo, como as humilhações das palavras e olhares de desprezo constituem marcas mnêmicas.

O livro “A cor do inconsciente – os significados do corpo negro” da psicanalista Isildinha Baptista Nogueira foi lançado recentemente e as notícias de venda são alvissareiras. Um Brasil está acordando, somos um povo que ainda conhece pouco sua história de violência e crueldade. Precisamos aprender o que é mesmo nosso país, pois o passado está vivo no presente e precisamos construir outro amanhã. O Brasil tem que ser para todas e todos, é urgente a justiça para nossas raças maltratadas, feridas e mortas.

(Publicado no Facebook do autor, em 26.11.2021)

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