O racismo ambiental e climático nas favelas do Rio

A crise ecológica não afeta todos de maneira igual. Da mesma forma que grupos vulnerabilizados são alvos do uso desproporcional da força por agentes policiais, também são os que mais sofrem com os impactos das mudanças climáticas e da crise ecológica, sobretudo em função do racismo ambiental e climático

Por Gabrielle Alves e Mariana de Paula, no Diplomatique Brasil

O Brasil – e o mundo – nunca testemunhou tantos desafios ambientais e climáticos. Nos últimos anos, os biomas têm enfrentado picos de desmatamento ilegal, queimadas provocadas pela ação humana, invasões de terras, garimpo ilegal e extração ilegal de madeira. Somam-se a tudo isso a degradação ambiental e os impactos das mudanças climáticas, com eventos extremos cada vez mais intensos e difíceis de se prever — entre ondas de calor, chuvas torrenciais, secas prolongadas, enchentes e deslizamentos de terra.

A crise ecológica afeta o meio rural e as cidades brasileiras, com impactos negativos sobre a economia, a renda, saúde e bem-estar das pessoas de modo geral. E essas dinâmicas não afetam todos de maneira igual. Da mesma forma que grupos vulnerabilizados são alvos do uso desproporcional da força por agentes policiais, também são os que mais sofrem com as consequências da arquitetura hostil — mecanismos institucionais de planejamento e ordenamento urbano que produzem uma distribuição altamente desigual — e com os impactos das mudanças climáticas e da crise ecológica, sobretudo em função do racismo ambiental e climático.

O racismo ambiental se refere, por exemplo, à ausência de serviços públicos e programas voltados ao combate da segregação socioespacial, além do racismo estrutural que fundamenta a elaboração de políticas públicas ambientais urbanas. Com frequência, tais políticas não levam em consideração os impactos desproporcionais da degradação ambiental sobre populações muitas vezes atravessadas pela pobreza, como negros, povos indígenas e comunidades tradicionais. Portanto, o racismo exacerba desigualdades pré-existentes, além de minar possibilidades de renda, de segurança alimentar e de garantia do bem estar e da dignidade dessas populações.

Já o racismo climático se relaciona, entre outros fatores, com a distribuição desigual de recursos e capacidades de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Ele também agrava situações de risco pré-existentes, inclusive em contextos de desastre. O relatório “O custo humano de desastres: um panorama dos últimos 20 anos (200-2019)”, do Escritório das Nações Unidas para a Redução de Riscos de Desastre (UNDRR), afirma que, no período de 2000 a 2019, ocorreram 7.348 grandes desastres ambientais no mundo, afetando 4.2 bilhões de pessoas. No entanto, pesquisas mostram que, após a ocorrência de um desastre, governos tendem a alocar assistência de formas que negligenciam ou prejudicam populações negras, indígenas e de baixa renda.

Em muitos contextos, o cerne do problema está na tomada de decisão sobre como os recursos urbanos são alocados e, de uma forma mais geral, nos modelos de governança – que concentra os recursos em regiões com melhor estrutura e serviços públicos e não conta com participação social.  Por isso, o combate ao racismo ambiental e climático denuncia mecanismos institucionais que excluem as populações afetadas desproporcionalmente pela degradação ambiental e as mudanças climáticas.

Soma-se a essa tendência o desmonte dos espaços democráticos de participação: de acordo com uma pesquisa do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), 75% dos comitês e conselhos nacionais de participação popular mais importantes foram extintos ou estão sendo esvaziados, como o Conselho Nacional do Meio Ambiente.

Lutas nos territórios

Da mesma forma, o combate ao racismo ambiental e climático também se opõe à criminalização de movimentos sociais que lutam pelo território. O relatório “Conflitos no Campo Brasil – 2020”, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela o maior número de conflitos por terra, invasões de territórios e assassinatos em conflitos pela água já registrados desde 1985. O levantamento chama atenção para as consequências do racismo estrutural, o qual invisibiliza e silencia — muitas vezes, por meio da violência e da necropolítica — vozes fundamentais para a construção de um futuro possível.

Desse modo, a série de entrevistas produzidas pelo LabJaca em parceria com a Plataforma CIPÓ busca combater esse ciclo de silenciamentos, de modo a documentar e ampliar as vozes de moradores das comunidades do Jacarezinho e do Manguinhos, no Rio de Janeiro, sobre as suas vivências e como enxergam a relação entre racismo, a degradação ambiental e os efeitos das mudanças climáticas nas favelas cariocas.

A falta de água potável, a falta saneamento básico, a instabilidade da energia elétrica, falta de atendimento básico de saúde durante a pandemia, insegurança alimentar, o rio poluído… a gente vê que o racismo faz com que tudo isso seja normalizado, o racismo ambiental deixa bem claro que todas essas faltas e carências são por conta de um sistema bem organizado que é o racismo. Ana Nascimento, 23 anos, Favela da Cachoeirinha — Complexo do Lins

Essas discussões, que interseccionam recortes de raça, classe, gênero, meio ambiente, justiça e democracia, trazem para a superfície problemas em nível local, quando os governos direcionam os danos ambientais para as regiões periféricas e onde, desde o período colonial, a (des)ocupação dos espaços urbanos conta com o estabelecimento de políticas sanitárias higienistas que objetivam o controle de determinados estratos sociais em nome de uma suposta segurança do conjunto da população. Um exemplo histórico emblemático no Rio de Janeiro diz respeito à destruição, em 1893, do cortiço “Cabeça de Porco”, um despejo violento e possível embrião do processo de favelização vertical carioca.

Problemas similares também são enfrentados no nível internacional, no qual, com frequência, países mais ricos depositam em países mais pobres os custos ambientais de sua produção. Por exemplo, como mostra Thomas Naadi em  reportagem para a BBC, Gana, já conhecida por abarcar um “cemitério de lixo eletrônico”, passou a abrigar também um “lixão a céu aberto” — destino das roupas descartadas vindas dos Estados Unidos e Europa. Ou seja, problemas que atravessam fronteiras devido aos fundamentos do sistema capitalista atual: o racismo e a colonialidade, motores da exploração e degradação ambiental.

Dentre os diversos exemplos que podem ser citados no caso brasileiro, merecem destaque as  1074 favelas situadas no estado do Rio de Janeiro. De acordo com o relatório Coronavírus nas favelas: a desigualdade e o racismo sem máscaras, no início da pandemia de Covid-19, além da insegurança alimentar, muitas das 763 favelas da capital fluminense chegaram a ficar sem água por vários dias seguidos. A insegurança hídrica, que inclui a contaminação da água, somada à insegurança sanitária recorrente nessa e outras regiões periféricas, foram responsáveis pelo alto número de infectados pelo novo coronavírus.  Esse cenário também contribui para a recorrência de arboviroses como a dengue, zika, chikungunya e febre amarela, reportadas pelo Projeto #Colabora.

A enchente aqui é sempre que tem chuva forte. O rato incomoda também, ele morde, eu já fui mordida, e os pernilongos também trazem muita doença. Uma vez eu fiquei chorando na escada porque a chuva, a enchente, levou todas as minhas coisas. Maria dos Santos, 81 anos, Manguinhos

No contexto da favela do Jacarezinho, localizada na zona Norte do Rio de Janeiro, onde essas inseguranças também estão presentes, destaca-se um caso pouco noticiado, porém muito danoso: o terreno abandonado da antiga fábrica de lâmpadas da empresa General Electric (GE), repleto de materiais tóxicos – tais como mercúrio, chumbo e arsênio – que contaminam o ar, os lençóis freáticos, as estruturas dos prédios e as populações do seu entorno.

Esse exemplo ilustra uma tripla exclusão: a primeira, relacionada ao modelo de desenvolvimento e industrialização brasileiro, uma vez que, embora fábricas tenham se deslocado para as periferias, essas regiões e comunidades acabam não usufruindo do avanço econômico e industrial vivenciado pelas regiões centrais ou de alta renda. A segunda, como citado anteriormente, a falta de representatividade dos espaços de tomada de decisão para mudar e prevenir essa realidade. E por fim, a terceira: a exclusão do direito ao meio ambiente equilibrado a determinados grupos. Por exemplo, as periferias tendem a sofrer desproporcionalmente com os problemas gerados pela poluição (estudos mostram que crianças em favelas do Rio de Janeiro têm altos índices de asma, sibilância e outros problemas respiratórios), e também pela contaminação e degradação ambiental—temas levantados por Carolina de Jesus em Quarto de Despejo.

Para além dos passivos ambientais das fábricas, também destaca-se a falta de uma gestão correta de resíduos sólidos, os quais podem contaminar os lençóis freáticos com chorume, bloquear rios e sistemas de drenagem, causando inundações e aprisionamento de água estagnada, agravando assim a propagação de doenças em comunidades periféricas.

Esses impactos também afetam a regulação do clima global, uma vez que processos envolvendo resíduos podem emitir Gases do Efeito Estufa (GEE): a decomposição da matéria orgânica libera gás metano, enquanto a queima descontrolada de certos materiais produz dióxido de carbono, dois gases responsáveis pela intensificação do efeito estufa. Lixões a céu aberto, como o da  favela da Rocinha, também no Rio de Janeiro, representam um grande risco para a saúde coletiva e para o meio ambiente.

O agravamento das mudanças climáticas e as crises da dinâmica urbana se retroalimentam. Nas favelas da capital carioca, já são frequentes as mortes, acidentes e deslocamentos forçados causados pelas chuvas intensas, ventanias e deslizamentos de terra. Nesse contexto, emerge a categoria dos migrantes ambientais e climáticos, que ainda carecem de proteção legal e de políticas públicas voltadas à sua assistência.

Uma coisa que me marcou muito foi a enchente de 1966, muitas pessoas ficaram feridas nesse rio que teve uma enchente devastadora, e esse rio que vocês estão vendo aqui matou uma família inteira, a família do meu amigo. E não é a primeira vez que isso acontece, nós já perdemos muitas pessoas nesse rio. Rumba Gabriel, 67 anos, Jacarezinho

Cientes dos impactos diferenciados que a degradação ambiental e as mudanças climáticas possuem sobre determinadas populações, a sociedade civil tem demandado que o tema do racismo ambiental e climático receba maior atenção de tomadores de decisões a nível local e global. Durante a COP26, em Glasgow, na Escócia, lideranças negras, indígenas e jovens destacaram a urgência de promoção da justiça climática e do combate ao racismo ambiental. Na abertura da Conferência, a jovem indígena Txai Suruí, de Rondônia, alertou para a urgência de mudanças imediatas, com a participação imprescindível de povos indígenas: “Precisamos tomar outro caminho com mudanças corajosas e globais. Não é 2030 ou 2050, é agora!”. Já Douglas Belchior, cofundador da Coalizão Negra por Direitos, que pela primeira vez participou de uma COP, afirmou: “O impacto socioambiental é ainda mais agressivo nas populações quilombolas e negras das periferias (…) Estamos falando, sim, de um novo colonialismo, mas agora pintado de verde.”

Semanas antes da Conferência do Clima, o governo de Jair Bolsonaro  havia rejeitado o  termo ‘racismo ambiental’ durante uma reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, embora o tema seja diretamente relevante às principais agendas do desenvolvimento globais, inclusive a Agenda 2030, cujos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) incluem metas de redução das desigualdades, preservação ambiental e promoção da justiça e da ação climática.

Embora historicamente excluídos dos espaços de decisão locais e globais, os saberes e vivências das populações negras e indígenas são fontes de conhecimento, liderança e mobilização. É urgente que políticas públicas ambientais, climáticas e de planejamento urbano priorizem a participação, experiências, demandas e as realidades locais desses grupos. Um passo importante nessa direção seria a ratificação e implementação do Acordo de Escazú, um instrumento internacional voltado à promoção do acesso à justiça ambiental e à participação da sociedade civil em processos decisórios em temas ambientais, além de buscar contribuir para a garantia de segurança de defensoras do direito da terra, meio ambiente e clima.

Durante a pandemia, coletivos fizeram essa ajuda e assistência pros moradores enquanto toda a comunidade não teve um aporte do Estado, não teve nem mesmo um aporte de segurança alimentar. Desde o início da pandemia o meu coletivo, o Instituto de Desenvolvimento Sócio Cultural e Econômico de Favelas – DESCE FAVELA, a gente fez ações de segurança alimentar onde a gente distribuía cestas e isso foi a única medida para ter algum alimento na casa das pessoas, já que as pessoas faveladas, não só do Complexo do Lins, mas do Rio de Janeiro vivem uma insegurança financeira enorme. Ana Beatriz Nascimento, 23 anos, Favela da Cachoeirinha — Complexo do Lins

Sem a conscientização da população e dos tomadores de decisão sobre o racismo ambiental e climático, e na ausência de políticas públicas inclusivas, problemas tais como os enfrentados por Nascimento, Maria dos Santos e Rumba Gabriel, moradores de Manguinhos e do Jacarezinho, persistirão. É por isso que a Plataforma CIPÓ e o LabJaca buscam ampliar as suas vozes. Até porque, a justiça ambiental e climática só será possível com a justiça racial.

Gabrielle Alves é pesquisadora da Plataforma CIPÓ e Mariana de Paula Gestora financeira e de operações no LabJaca

Favela da Rocinha em contraste com os edifícios de São Conrado no Rio de Janeiro. Foto: Alicia Nijdam /Flickr

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