Aprendendo a desapegar. Por Abrao Slavutzky

em Terapia Política

Desde que se nasce até a morte o desapego está presente. O primeiro desapego é o nascimento. A gente estava dormindo num lugar bem quentinho na primeira casa-paraíso. De repente, vai sendo empurrado, passa por um canal e já entra no mundo chorando. Aliás, convém chorar forte para revelar saúde, capacidade respiratória. O primeiro desapego gera dores, o ar expandindo os pulmões. A história do ser humano pode ser contada pelas suas perdas, pelos seus desapegos, pois só aí a gente cresce. Depois dos primeiros colos o bebê vai ao chão, senta e depois começa a engatinhar e por fim caminhar. Dá um passo e cai, dá dois, e depois volta a cair. Quantas vezes numa vida a gente cai, e é uma luta e tanto para se levantar.

O desapego de uma casa, de uma escola, de amizades, de amores, das árvores da rua, tudo isso gera tristezas. Vivi há 50 anos o desapego de um exilado, um exílio que busquei ao ir viver em outro país. Depois dos primeiros meses de festa e alegria, comecei a sentir saudades do passado, das casas conhecidas, das árvores conhecidas, enfim, fiquei entristecido. Impossível esquecer um sábado à noite em que só escutei tangos e tomei vinho recordando as amizades, alguma namorada, o conforto de uma vida de classe média. Não sabia que estava fazendo o mestrado em desapego, e só anos e anos depois me abriram as portas de um doutorado que nunca completei.

Nunca serei professor de desapegos, sou um aluno, e por isso escrevi no título aprendendo, pois o desapego vai até o fim da vida. A morte será o último desapego, e até lá a gente ainda pode perder gente essencial, e então se sente medo. Desapego é um desafio e, às vezes, não ocorre e aí se geram apegos sofridos e humilhantes.

Até hoje recordo as frases de despedida de um profeta, poeta, cantor e “payador” argentino, Atahualpa Yupanqui, num “show” em 1979 aqui em Porto Alegre. Disse: “Toda separación duele, y quienes no piense asi que se separe”. É sabido o quanto a gente aprende nas separações. São esses tempos de crise que o mundo muda, que se muda a forma de ver a vida. Viva as metamorfoses, pois são as transformações que enriquecem com novos pontos de vista, e abrem as portas de novos espetáculos.

Há uns 20 anos me pus a escrever e vi que não seria escritor, mas podia aprender a me comunicar. Foi um duro aprendizado que não se conclui, pois as palavras a gente não doma. Elas são caprichosas, e avanço aqui com prudência, pois volta e meio me perco, mas são elas que uso para conversar aqui.

Um dos aprendizados do desapego é diminuir o peso da existência, pois a leveza faz muito bem, daí a insustentável leveza do ser. Aliás, os artistas são mestres da leveza. Foi com eles que aprendi o quanto é preciso aprender a ver a vida não tanto como um peso insuportável, um peso que afunda, aplasta, enterra. Reagir diante do peso, do terror, com as danças, as músicas, alegrias, como fizeram negras e negros na escravidão. É um espanto como, após 12, 14 horas de trabalho escravo, tinham forças para brincar, e assim marcaram nossa cultura, a vida de cada brasileiro. Agora há um anúncio de uma mudança:

  • “Ano passado eu morri
    Mas esse ano eu não morro”

Os armados na História mais destruíram que construíram: mataram em Palmares, Canudos, Contestado, ditadura militar, agora, castigam os negros e índios. Os negros foram a mão de obra de tudo, inventaram a capoeira, o canto, e os índios defenderam a natureza. Todos maltratados, desprezados e mortos até hoje. Portanto, ao lado dos desapegos pessoais que todos precisam para crescer, tem os desapegos culturais.

É urgente que possamos contar uma nova história de quem foram os verdadeiros construtores do Brasil. Paulo Freire e as cotas criticadas para negros, índios e pobres foram só um começo de justiça histórica em nosso país. Vai tardar, mas haverá de se criar um país de verdade com mais justiça. (Publicado no Facebook do autor, em 10/12/2021)

Ilustração: Mihai Cauli

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