Na Terapia Política
Sei que estou velho e descrente demais para escrever cartinha para você. Acreditei e escrevi quando criança. Descri quando, menos criança, outra me disse que Papai Noel era meu pai. Bati nela. Aprendi naquele dia que, às vezes, a verdade dói. Especialmente quando atiça nossos medos e destrói as esperanças e que quando não sabemos lidar com a dor disso, passamos adiante esmurrando a cara dos outros. Esperanças destruídas são perigosas.
Você era, ao menos para mim, um misto de encantamento mágico e dúvida. Passei muitas horas da minha infância tentando entender como é que conseguia numa noite presentear tanta gente. E se na minha casa não tinha chaminé, por onde você entrava? Se voava num trenó, por que ninguém via? Na falta de respostas, a resposta era uma só: mágica.
O real estava ali, impávido e indiferente às nossas fantasias. Na casa sem chaminé, na criança com fome na rua e na falta de sentido do dia do nascimento do Cristo ser comemorado com presentes dados por aquele velhinho de vermelho lá do shopping center. Mas o pensamento mágico o camufla, colore e veste de medos e esperanças as verdades nuas. Da mesma mágica, vinha você e o bicho papão que habitava o escuro do quarto.
Na mágica, o real se torna compreensível para uma criança. Em parte, porque esconde. Parte, porque transforma. A mágica tinha razões que a minha razão desconhecia. Hoje eu sei que a razão da mágica é desconhecer a razão.
Naquele soco bem dado – confesso que eu já não gostava daquele garoto e aquela de dizer que Papai Noel era meu pai foi a gota d’água! – acertei um nariz empinado, mas, antes, ele me acertou o encanto. Quebrou-se. O nariz, felizmente, não. Eu nem tinha força para quebrar um nariz, mas já tinha compreensão suficiente para acertar um bom murro na cara do pensamento mágico. Não precisava ter me irritado. Nem socado aquele chato. Mas naquele tempo eu ainda não sabia disso.
Crescemos. Eu, você e o chato de nariz socado. Uns passam seus dias observando, entendendo e destruindo pensamentos mágicos. Outros – talvez a maioria – crescem sem se livrar deles. Livraram-se de você, do seu trenó e outras infantilidades. Em compensação, encheram o mundo de outros encantamentos como o crescimento econômico que traria igualdade e felicidade para todos; messias autoproclamados que nos salvarão de nós mesmos; méritos que não vêm da admiração dos outros; discriminações; preconceitos e outras tantas formas de perversidade fantasiadas de normalidade.
Os encantos da infância são levados pela idade. Os da vida adulta, se fortalecem com o tempo. Talvez, todos nós ainda sejamos crianças que precisam de encantos e pensamentos mágicos para entender e tocar a vida. Talvez, nos falte maturidade ou mesmo coragem para encarar a vida sem medo do escuro e sem a esperança de resolver todos os problemas ganhando na Mega-sena. Talvez…
Na dúvida, seleciono meus encantamentos. Desgosto dos que se prestam ao entristecimento e à dominação. Mas gosto daqueles que aliviam a dor de encarar as coisas como elas são.
Gosto de acreditar que os abraços que nos damos têm alguma mágica e devem ser apertados e demorados. Gosto de acreditar, por fé, em um mundo de pessoas capazes de se amarem umas às outras, ainda que pareçam tão longe disso. E gosto de acreditar que possamos ser felizes e fazer outros verdadeiramente felizes, ainda que por encanto, ainda que só por um dia, ainda que só pelo instante de um abraço.
Feliz Natal!
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Ilustração: Mihai Cauli