Papai Noel: músicas de natal nos trópicos. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu Papai Noel não vem. /
Com certeza já morreu, ou então felicidade é brinquedo que não tem”. 
(Assis Valente. Boas Festas. 1932).

Meu Papai Noel ainda estava vivo no natal de 1957, embora não fosse roliço como manda a tradição. Era fora do padrão: magérrimo, alto e esquálido, mas identificável pela roupa, o ho-ho-ho e os brinquedos que trazia para os filhos dos funcionários – meu pai era um deles – na festa natalina do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC). Dizem que ele estacionou seu trenó puxado por renas em frente ao bar do Quintino, entrou no edifício do IAPTEC, mas como não tem chaminé, subiu de elevador até o quarto andar, cantando em inglês Jingle Bells, composta em 1857, em Boston, por James Pierpont, um músico estadunidense.

Jingle Bells numa cidade da Amazônia? Não se trata aqui de pergunta nacionalisteira e xenófoba. Essa música, cheia de magia e encanto, ganhou o mundo com versões em dezenas de línguas, confirmando que tudo que é belo, produzido em qualquer parte do planeta, merece ser desfrutado pela humanidade inteira, desde que dialogue com as cultura locais e não seja manipulado para esmagá-las e apagá-las. Existem dezenas de músicas natalinas no Brasil que “celebram um natal triste e muito desigual”, e que foram condenadas ao esquecimento, como nos informa Lucas Brêda em matéria publicada na Folha SP.

Neve de isopor

Boas Festas de Assis Valente é a primeira delas, escrita em 1932, num quartinho em Icaraí, Niterói, num natal em que o músico baiano se sentia triste e solitário e acabava de descobrir seu equívoco: “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”. O seu verso garante que Papai Noel estava morto. Mas quem morreu, em 1958, foi o autor, que tentou o suicídio três vezes: a primeira cortando os pulsos, na segunda, pulou do alto do Corcovado e foi salvo pelas árvores que amorteceram a queda. Na última, tomou formicida, deixando bilhete para seu amigo Ary Barroso pagar seus aluguéis em atraso. Não queria ser um defunto caloteiro.

Levante a mão aí quem se lembra de Assis Valente?  Suas músicas podem até ser tocadas aqui e ali, mas o nome do compositor foi esquecido.

– As estirpes condenadas a cem anos de solidão não têm uma segunda chance aqui na terra – lembra Garcia Márquez sobre os desmemoriados. Estou certo de que aquele Papai Noel que cantou a centenária Jingle Bells, nunca havia ouvido falar em Assis Valente. Desconfio – mas há controvérsias – que dentro da roupa frouxa vermelha se escondia o magérrimo Raimundo Chauvin, irmão da dona Olenka, delegada do IAPC. Naquele ano, ele trouxe de presente uma corneta, que eu não havia pedido, retirada de um saco ao pé de um pinheiro de plástico. O contexto era todo de alienação.

Numa região com floresta exuberante povoada de tantas árvores, o pinheiro de plástico coberto de algodão reforçava o discurso daquele vereador de Manaus, que em discurso na tribuna da Câmara sugeriu à Prefeitura colocar uma gigantesca trituradora de isopor na Praça da Matriz para espalhar à meia-noite “flocos de neve” pelos céus da cidade. Para uma Casa que acaba de aprovar o escandaloso e despudorado “Cotão”, aquilo era café pequeno, era “cotinha”.

Manaus tinha vergonha do calor amazônico, do pirarucu, do tambaqui, do jaraqui, do tucumã, do buriti, do açaí, da castanha do Pará. Precisava celebrar o Natal – uma festa importada, estranha à cultura local – com nozes, passas, figos secos, ameixas, romãs, damascos, peru, tender, pernil, chester. Não havia lugar sequer para o bife de capivara e o creme de cupuaçu preparados por dona Alice, que fazia o bispo de Parintins, dom Arcângelo Cerqua, cometer um dos sete pecados capitais: a gula. Porto de lenha sonhava ser Liverpool, “com uma cara sardenta e olhos azuis”.

Então é natal

Nesse contexto, só havia lugar para Jingle Bells ou Happy Christmas War is over do John Lennon, com versão em português da Simone tocada à saciedade, até o pescoço francês fazer bico, sem abrir espaço para outras músicas. No mundo hispano-americano, as duas canções em inglês convivem, de um lado com cantos religiosos conhecidos como villancicos, que comemoram o nascimento do menino Jesus e, de outro, com canções profanas chamadas de aguinaldos que relacionam o natal com a realidade marcada pela pobreza e pela desigualdade social.

Um desses aguinaldos gravado pelo Quinteto Contrapunto da Venezuela, conhecido internacionalmente, faz a mesma pergunta de Assis Valente: Onde está o Papai Noel? (Donde está San Nicolás). A letra começa com os sinos tocando, um criança triste anuncia uma mensagem de esperança diante de um órfão sem brinquedos e sem o calor de sua mãe, enquanto meninos ricos brincam entupigaitados com os presentes que ganharam.

– Papai Noel, vê se você tem a felicidade pra me dar – implora Assis Valente, gravado por Carlos Galhardo com arranjo de Pixinguinha e depois por João Gilberto e Novos Baianos. Segundo Lucas Brêda, esta música “abriu não só um filão natalino na indústria fonográfica, mas deu bases para uma tradição bastante brasileira de cantar o Natal com certa dose de melancolia”. Meu Natal não tem amêndoas, meu Natal não tem amor cantam Lupicínio Rodrigues e Jamelão. Em Amargo Presente, do Cartola, Beth Carvalho lamenta que em plena festa da cristandade, alguém levou um pontapé na bunda e foi abandonado.

Recadinho de Noel

– Carmen Miranda também imortalizou canções natalinas – escreve Cristina Fonseca, entre elas Dia de Natal de Hervé Cordovil, que pede ao Papai Noel “pra fazer chegar depressa o carnaval” e Recadinho de Papai Noel, outra canção do citado Assis Valente Muitos outros celebraram o natal em suas músicas: Herivelto Martins, Ary Barroso, Braguinha.

Adoniram Barbosa cantou Véspera de Natal:  Cheguei em casa, encontrei minha nega zangada, a criançada chorando, mesa vazia, não tinha nada. Então, ele ensaia o dingo-bel, se fantasia de Papai Noel e fica entalado na chaminé.  Luiz Gonzaga, ouvindo os sinos de Deus repicando na matriz, atacou de Cartão de Natal e até Chico Buarque lembra em Tão Bom que foi o Natal, que quem não vive de amor, não vai viver sempre assim, Papai Noel planta flor onde não tem jardim.  

– O Natal, à medida que vira uma festa comercial, vai se tornando também uma festa que expressa a brutal desigualdade do Brasil entre aqueles que têm e aqueles que não têm – diz o historiador Luiz Antônio Simas, entrevistado por Breda. Ele vê uma certa decadência numa sociedade cada vez mais individualizada, na qual tem muita gente com fome catando osso no lixo: “Esse é o grande dilema brasileiro: um país profundamente injusto, por isso muitas músicas de Natal botam o dedo na ferida da injustiça, da desigualdade, do por que algumas crianças ganham presentes e outras não”.  

Simas lembra que o Natal dos trópicos é melhor representado nas manifestações tradicionais do Nordeste, que não incorporam o imaginário do frio, do inverno da neve. Exemplifica com os pastoris, o bumba meu boi e os reisados: “As folias de Reis reproduzem no fim das contas todo o processo de advento do Cristo e culminam com as visitas às casas ou às pessoas, reproduzindo as visitações dos reis do Oriente ao Menino Jesus na manjedoura”

Referências:

1.Cristina Fonseca: Canções Natalinas dos anos 30. Folha de SP. Especial para a Folhinha. 13 de dezembro de 1997

2.Lucas Brêda: Um Natal à brasileira. Folha de SP. 21 de dezembro de 2021

3.Crônicas do Taquiprati sobre o tema:

2014 – Pedaços de outros natais 

2010 – Natal com Bolo e Bola 

2004 – Tantos natais, tantas crônicas, quanta injustiça 

1996 – Na ceia de Natal, políticos amazonenses juntam panelas 

1993 – O Saco do Papai Noel de Igarapé  

1988 – Diário de tantos natais 

1986 – Natal sem peru e pirão 

1985 –  Neve em Natal, presépio em Belém  

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