Na DW
Nos últimos tempos, tem ganhado destaque nas redes sociais a palavra aporofobia, que significa pavor de pobres. Diante dessa aversão, praticada cotidianamente, pergunto: que tipo de sociedade queremos construir?.
As palavras, assim sozinhas, guardam histórias e significados. Muitas vezes, conceitos inteiros – que estruturam o mundo que conhecemos – nos são apresentados pelo mergulho naquelas poucas letras que, juntas, e há muito tempo, construíram sentidos específicos. Não por acaso, muitas vezes a etimologia nos é apresentada na nossa experiência escolar. Seja nas aulas de ciências ou biologia em que conhecemos aquele tanto de espécies de vida, cujos nomes científicos (difíceis de serem lembrados, mas que muitas vezes explicam características centrais desses seres) nada mais são do que palavras de origem grega e/ou latina. Seja nas aulas de história e sociologia, em que conceitos como democracia e república são trabalhados a partir da origem dessas palavras – o que, uma vez mais, também nos ajuda a entender os significados desses termos.
Pois bem, nos últimos tempos, uma palavra de origem grega tem ganhado algum destaque nas redes sociais: APOROFOBIA. O sufixo “fobia” nos é conhecido e é frequentemente utilizado para designar medo exagerado ou aversão a algo. Aracnofobia é o medo de aranhas e outros aracnídeos. Claustrofobia é o pavor que algumas pessoas sentem de lugares fechados. O prefixo vem do grego á-poros e significa pobre, desamparado. Sendo assim, aporobofia nada mais é do que o pavor de pobres.
Vejamos bem, não estamos tratando do medo da pobreza. O que, em certa medida, seria legítimo, já que a pobreza é uma situação de penúria na qual muitas pessoas se encontram e da qual todos querem fugir. Estamos falando aqui de uma palavra utilizada para designar o pavor, a intolerância aos pobres, ou seja: a aversão às pessoas que se encontram em estado de penúria.
Não podemos ser ingênuos e imaginar que esse tipo de medo seja recente na história da humanidade. Muito pelo contrário. No entanto, o uso recorrente de uma palavra específica para designá-lo diz muito sobre o mundo em que vivemos. Ou melhor, diz muito sobre o tipo de gente que somos. Gente que tem medo de pobre.
Esse medo não fica num cantinho profundo do nosso ser, escondido pela vergonha de podermos ser tão mesquinhos e repugnantes a ponto de sentirmos medo de pessoas pobres. Não. A aporofobia é ação e prática cotidiana. E recentemente tem se materializado numa série de intervenções urbanas em espaços públicos. Lojas e bancos instauraram estacas ou pedaços de concreto e ferro para evitar que pessoas pobres durmam em suas marquises durante a noite. Prefeitos e governadores têm instalado esses mesmos instrumentos debaixo de pontes e viadutos com o mesmo fim: espantar os pobres.
Vale pontuar, uma vez mais, que essas ações se dão em espaços públicos, que podem e devem ser usufruídos por toda a população, independentemente de sua condição. Desse modo, o que estamos presenciando são posturas políticas que querem limar os pobres desses espaços. Uma versão abjeta da máxima: “O que os olhos não veem, o coração não sente”.
Impedir que pessoas pobres (muitas vezes em estado de miséria) se abriguem em marquises ou, literalmente, debaixo da ponte, não faz com que a pobreza deixe de existir. E, na verdade, essa não é a preocupação de quem tem aversão a pobre. Estamos tratando de ações que têm um objetivo simples de limpar os espaços, impedindo que pessoas pobres estejam neles. Se essa limpeza significar a morte dessas mesmas pessoas pobres, azar.
E quando essas ações têm a anuência ou são praticadas por pessoas que representam o Estado, elas ganham o status de política pública. Vivemos num país em que representantes do poder Executivo nas suas três esferas – municipal, estadual e federal -– elaboram e executam políticas públicas baseadas na intolerância aos pobres, em vez de desenvolverem ações que efetivamente combatam a pobreza. Essas políticas públicas antipobres se efetivam tanto por meio dessa desprezível “limpeza urbana” quanto da demora do Estado no auxílio à população do sul da Bahia, que nos últimos dias foi ceifada por enchentes que destruíram cidades inteiras, deixando dezenas de mortos e milhares de desabrigados.
O ano de 2022 está logo ali, se anunciado. Será um ano de muitas recordações do passado, quando comemoramos 200 anos de nossa Independência. Mas, por ser um ano eleitoral, 2022 também será um momento de exercício do voto. Um ano de escolhas políticas, decisões que irão projetar nosso futuro. Por isso pergunto: que tipo de gente nós somos? Pessoas que têm aversão aos pobres, ou pessoas que querem combater a pobreza? Que tipo de sociedade queremos construir?
Para este ano que se inicia, desejo que possamos ser a mudança que queremos.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.