Mata-se um povo quando se criam condições que podem levá-lo à destruição
A concepção dos povos originários da América como inferiores e a violência do projeto colonial vão alimentar, em larga medida, as teorias raciais do século 19 e a própria formação dos Estados nacionais, com a noção de homogeneidade que lhe é correlata. A combinação desses ingredientes culminou no nazismo e no Holocausto judeu, chamando a atenção da Europa, pela primeira vez, para o fenômeno da eliminação dos “seus outros”.
Em 11 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Em ambos os casos, parte-se da premissa de que, se os direitos humanos são universais, é fundamental assegurar o pluralismo das sociedades nacionais, com abandono da ideia de superioridade de um grupo sobre os demais.
A convenção diz que o genocídio é crime tanto em tempo de paz como em tempo de guerra e o define como a prática de atos cometidos com a intenção de “destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Já o seu artigo 2º, “c”, diz que constitui ato de genocídio “submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”.
A Constituição Federal determina a demarcação das terras indígenas porque são espaços essenciais à autodeterminação desses povos. A negativa ou omissão deliberadas da demarcação configura o crime de genocídio na modalidade inscrita no artigo 2º, “c”, da convenção —ou seja, mata-se um povo quando lhe são impostas condições de vida capazes de levar à sua destruição física. Seus membros morrem, e os sobreviventes se submetem a um processo de integração à cultura dominante. O povo preexistente deixa de existir. Foi o que aconteceu com vários povos indígenas ao longo do projeto colonial.
Dito isso, é preciso denunciar que está em curso um processo de genocídio dos indígenas no Brasil, capitaneado pelo presidente da República. Discursivamente, ele trata esse segmento da sociedade como inferior e diz que não irá demarcar —como não demarcou— um centímetro de área indígena. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em ação proposta perante o Supremo Tribunal Federal, evidenciou que esses discursos levaram a ondas de invasões de terras indígenas. Dados do Prodes, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de 80% quando consideradas apenas as terras indígenas.
No contexto da Covid-19, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos concedeu medida cautelar em favor dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana, apontando a presença, em seus territórios, de 20 mil garimpeiros. Também assim procedeu em relação aos povos indígenas Munduruku, Guajajara e Awá, todos com seus territórios invadidos e vítimas de ampla disseminação da doença. Relatório de 2021 produzido pelo Conselho Indigenista Missionário aponta que os casos de invasão de terras indígenas em 2020 tiveram um acréscimo de 137% em relação a 2018. Foram atingidas pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.
Jair Bolsonaro organizou toda a burocracia para negar direitos territoriais a esses povos e abrir suas terras para atividades que ele considera produtivas. Embutidas nesse aparato, as velhas ideias da supremacia racial e da necessidade de assimilação das culturas dissidentes. Isso tem nome: genocídio.
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Deborah Duprat: advogada e subprocuradora-geral da República aposentada, participou do Tribunal do Genocídio, no Tuca (Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), como representante da sociedade na acusação.
Audiência pública conjunta das frentes parlamentares em Apoio aos Povos Indígenas e Ambientalista para discutir os direitos fundamentais e a PEC 215. Subprocuradora-geral da República Deborah Duprat e indígena Adauto Guarani-Kaiowá. Foto: Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados. 2015