Padre Júlio Lancellotti: o que é a arquitetura ‘antipobres’ denunciada por religioso em São Paulo

Por Felipe Souza, na BBC News Brasil

Pedras, grades e espetos de ferro. Esses objetos foram inseridos na arquitetura de diversas construções e equipamentos públicos em diversas cidades do Brasil, como São Paulo e Florianópolis, para evitar a presença e permanência dos mais pobres, principalmente os moradores de rua.

Há meses, o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, usa as redes sociais para criticar essas intervenções e pressionar para que empresas e até mesmo órgãos públicos recuem e retirem essas instalações.

Em uma das fotos publicadas pelo padre, é possível ver um banco de praça com uma grade no meio dele, para evitar que uma pessoa se deite. Júlio Lancellotti define essas ações como aporobofia — aversão aos mais pobres.

Outra imagem mostra o banco de um ponto de ônibus em Florianópolis feito com ferros em forma de cilindro e espaçado. A estrutura também impede que alguém se deite. Nessa mesma foto, aparece um morador de rua dormindo no chão, em cima de um papelão.

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Florianópolis informou, por meio da Secretaria Municipal de Mobilidade e Planejamento Urbano, que os abrigos de passageiros que aparecem na publicação do padre Júlio no Instagram “já estão sendo substituídos por novos há mais de um ano”.

A prefeitura disse ainda que “os novos pontos de ônibus são humanizados, modernos e têm baixo impacto na paisagem”. A administração municipal afirmou que os novos modelos já estão implantados em diversos pontos da cidade e que os antigos serão reciclados e transformados em balizadores urbanos de proteção de pedestres nas calçadas.

A pasta concluiu dizendo que “o modelo antigo de abrigo de passageiros foi feito em outra gestão” e que não sabe quem o projetou.

Com quase 1 milhão de seguidores no Instagram, o padre Júlio Lancellotti disse à BBC News Brasil que está sensibilizado pela quantidade de pessoas que estão mobilizadas nessa campanha para denunciar instalações hostis.

“Eu não peço nada, mas elas me mandam fotos e dizem: ‘lembrei de você’. Outros falam que não percebiam que existiam construções hostis na cidade e agora estão percebendo. Isso tem sido importante porque a intenção das minhas publicações é sensibilizar as pessoas e sair da hostilidade para a hospitalidade”, afirmou.

O padre ressaltou que é importante não confundir instalações hostis com o portão de uma casa ou a grade de um jardim. Mas ele afirmou que algumas pessoas instalam alguns objetos quase imperceptíveis, como obras de arte, vasos e plantas que servem como obstáculo, com a intenção de apenas obstruir um espaço público.

Entre os exemplos mais desumanos, o padre cita um sistema de gotejamento instalado em uma calçada na cidade de Santa Rita do Sapucaí, no interior paulista, para evitar que pessoas fiquem paradas na calçada.

“Teve gente dessa cidade que ficou irritada porque fiz duas publicações de lá. Alguns não conseguem entender que eu não quero que as pessoas fiquem ao relento ou embaixo dos viadutos e marquises. Mas que essas pessoas que estão mais preocupadas com hostilidade oferecem menos com acolhimento”.

O padre lembrou ainda que essas instalações com grades e ganchos, por exemplo, podem causar acidentes. A preocupação dele é especialmente com os mais vulneráveis, como idosos e pessoas com deficiência física.

“Além de ser desumano, coloca uma sociedade inteira em risco. A pessoa pode sofrer uma queda e se acidentar gravemente nesses ganchos. A cidade que instala isso não odeia os pobres. Mas nessa cidade existe ódio contra os pobres”, afirmou o padre Júlio.

Mas o padre disse ter recebido notícias de que alguns bancos estão reunindo os gerentes para discutir esse assunto com eles e pedir para que não implantem mais esse tipo de instalação nas agências.

Aporofobia

Aporofobia foi eleita a palavra do ano em 2017 pela Fundação Espanhol Urgente (Fundéu). O termo tem sido usado de maneira recorrente pelo padre Júlio Lancellotti como uma campanha para descrever as pessoas que implantam as instalações urbanísticas que impedem a aproximação e permanência de moradores de rua em locais públicos.

Segundo ele, o motivo dessas intervenções é a aversão às pessoas mais pobres.

O termo aporofobia vem de duas palavras gregas: “áporos”, o pobre, o desamparado, e “fobia”, que significa temer, odiar, rejeitar. Da mesma forma que “xenofobia” significa “aversão ao estrangeiro”, aporofobia é a aversão ao pobre pelo fato de ser pobre.

Em entrevista à BBC, a escritora e filósofa espanhola Adela Cortina, que inventou a palavra aporofobia há 20 anos, explica que o preconceito ao próximo é causado por questões financeiras.

“E a palavra surgiu da forma mais simples, quando percebemos que não rejeitamos realmente os estrangeiros se são turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se eles são pobres, imigrantes, mendigos, sem-teto, mesmo que sejam da própria família.”

Professora da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, Raquel Rolnik diz que esse tipo de instalação ocorre não apenas em cidades brasileiras, mas também em grandes metrópoles em todo o mundo.

“Ela está presente em duas situações: cidades com muitos moradores de rua, como Los Angeles, nos Estados Unidos, e regiões muito desiguais. O livro Cidade de Quartzo relata as estratégias urbanas usadas nos anos 1980 e 1990 para evitar a presença das pessoas em situação de rua na cidade americana”, afirma.

Em entrevista à BBC News Brasil, a urbanista explicou que a “marca” dessa relação entre os mais ricos e os moradores de rua é a desigualdade. E que a pandemia aumentou ainda mais o número de pessoas sem teto.

“Em plena crise, os aluguéis e preços de imóveis não pararam de subir. A quantidade de pessoas que não têm onde morar porque não podem pagar nem mesmo aluguel numa favela ou periferia é muito grande. Diante disso, precisamos de políticas públicas de moradia para lidar com esse fenômeno”, disse à BBC News Brasil.

Segundo a urbanista, hoje não há, em nível municipal, estadual ou federal, nenhuma política efetiva para diminuir o número de moradores de rua.

“O abrigamento é uma antipolítica. O que deve haver é uma defesa de políticas de moradia. O abrigo não é a casa dessa pessoa. Não é um lugar onde ela consegue respirar e ter privacidade”, afirmou.

Para Rolnik, essas intervenções que afastam pessoas da frente de lojas e casas são respostas dos mais ricos a esse grande aumento da população de rua.

“A ocupação da rua é a única alternativa dessas pessoas e a resposta dos mais ricos é: ‘Não quero essas pessoas na porta da minha casa ou diante do meu negócio’. E essas intervenções são as estratégias que eles usam para que aquele lugar não se torne um abrigo”, explicou.

Um dos exemplos dados pela urbanista é de que os bancos de praça, que eram retos, agora são ondulados justamente para evitar que pessoas durmam neles. Para ela, a visibilidade dada a esse assunto, por meio das publicações do padre Júlio, são essenciais para que as pessoas entendam o que significa cada uma dessas intervenções e não passem despercebidas, gerando uma onda de solidariedade.

No entanto, ela diz que essas exposições são válidas quando são seguidas de desdobramentos práticos nas leis e no comportamento das pessoas.

Lei Padre Júlio Lancellotti

A Comissão de Desenvolvimento Urbano, da Câmara dos Deputados, aprovou em novembro de 2021 o projeto de lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a implantação de técnicas e construções que usem equipamentos para afastar ou restringir o uso de espaços públicos, principalmente por pessoas em situação de rua.

O relator do Projeto de Lei é o deputado federal Joseildo Ramos (PT-BA). O texto ainda precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, antes de seguir para votação.

O padre Júlio disse à reportagem que gostou muito do projeto de lei, mas acha difícil que ele seja aprovado.

“É muito difícil aprovar um projeto desses a nível nacional, principalmente por conta da nossa atual conjuntura política. Existe um na Assembleia Legislativa de São Paulo e outros em várias câmaras municipais que eu acho ter mais chances. Temos esperança, mas acho difícil. O principal é a consciência e a pressão que conseguimos fazer em comércios, bancos e igrejas para acabar com essas ações”, disse o padre.

Menino em situação de Rua no lixo, em Porto Alegre. Foto: Claudio Fachel

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