A ampliação e o aprofundamento da dominação do sistema financeiro sobre o conjunto de todas as outras dimensões de nossa sociedade são a dupla face de um fenômeno impressionante. A cada dia que passa temos mais informações a respeito desse caminho que os grandes meios de comunicação nos apresentam como sendo inelutável e inexorável. O processo de financeirização de setores e ramos de atividades tem avançado ao longo das últimas décadas em escala planetária, com a consequente perda de espaço de articulação dos interesses das frações do capital industrial, comercial, agropecuário ou de serviços.
A presença de representantes diretos do financismo em postos-chave na estrutura dos Estados também contribui para reforçar tal hegemonia, à medida que a implementação de políticas públicas e a tomada de decisões estratégicas no dia a dia dos governos privilegiam os desejos e as vontades de tal grupo frente aos demais. A partir dessa perspectiva pode-se compreender de forma mais adequada questões aparentemente tão desconexas como a adoção recorrente de políticas de superávit primário e as decisões favoráveis a processos de intensificação dos oligopólios dominados pelo capital financeiro em ramos essenciais de nossa economia.
A “naturalização” da drenagem sistemática de recursos trilionários dos orçamentos públicos para o cumprimento de despesas financeiras ocorre simultaneamente à captura das direções de agências públicas de regulação, que passam a defender os conglomerados que deveriam fiscalizar. Perde-se completamente o sentido da defesa do interesse público nas questões envolvendo as relações incestuosas do capital privado com as instâncias do aparelho de Estado. A presença de dirigentes de bancos no comando do Banco Central ou de ministérios da área econômica são apenas a ponta do iceberg desse tipo de deformação completa da atividade privada travestida no interior da administração pública.
Dados públicos oferecidos de bandeja ao capital privado
A divulgação de um simples extrato de ata de um convênio do governo federal terminou por revelar mais uma barbaridade cometida por esse governo em prol do sistema financeiro. Trata-se de um acordo de cooperação assinado entre a Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia e a Associação de Bancos Comerciais (ABBC). De acordo com o resumo do documento oficial publicado no Diário Oficial da União (DOU) de 07 de janeiro recente, o contrato prevê a liberação de informações e dados biométricos e biográficos dos cidadãos brasileiros para as empresas e instituições vinculadas à entidade que reúne o coração do financismo tupiniquim. Segundo o que está disposto na página da Associação dos Bancos, eles dizem representar “os interesses de bancos de diversos portes, de controle nacional e estrangeiro, financeiras, cooperativas, instituições de pagamento, sociedades de crédito privado, sociedades de empréstimo pessoal e fintechs”. Enfim, não têm mesmo nada a esconder.
A síntese do termo “Acordo de Cooperação nº 27/2021” se refere a uma colaboração que teria validade pelo período de um ano e não envolveria nenhuma despesa entre as partes envolvidas. Dessa forma, os bancos e as demais empresas do setor teriam acesso de forma gratuita a um volume astronômico de informações privilegiadas e confidenciais de nossa população. Uma loucura! Seria cômico se não fosse trágico, mas os termos utilizados no acordo referem-se literalmente a uma parceria “em caráter de degustação experimental” (sic). Ou seja, os (ir)responsáveis no Ministério da Economia lidam com o sigilo da coisa pública como se estivessem tratando de convidados minuciosamente selecionados para participar de algum evento de enologia ou gastronomia com o intuito de se deliciarem com as experimentações das bebidas e guloseimas gentilmente oferecidas aos mesmos.
O universo de informações a serem doadas potencialmente ao financismo é amplo. Na verdade, poderia ser incluído no pacote todo o tipo de dado, uma vez que a parceria prevê a participação das 109 empresas que integram a rede da Associação no compartilhamento de dados em poder do governo federal. O processo se tornará viável pela abertura das chamadas “interfaces de programação de aplicação” (APIs, da sigla em inglês) aos interessados. Esse caminho permitirá o acesso a dados tão diversos quanto estratégicos. Podem ser, por exemplo, dados do banco de informações dos servidores públicos federais, informações detidas pela Justiça Eleitoral, ou podem vir de plataformas vinculadas à Receita Federal, ao Sistema Único de Saúde e à previdência social.
Entidades do sistema financeiro em posse de informações confidenciais
A bem da verdade, este criminoso acordo de cooperação com o financismo é bastante semelhante a outro contrato que foi assinado em julho do ano passado entre a mesma Secretaria de Governo Digital e a Federação de Bancos do Brasil (FEBRABAN). Essa entidade é ainda mais representativa do setor, uma vez que inclui os bancos públicos federais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e outros) em seu corpo de associados. De acordo com a síntese também publicada no DOU, o “Acordo de Cooperação nº 16/2021” não é tão extensivo quanto o que foi assinado posteriormente com a Associação dos Bancos Comerciais, mas deverá ser prorrogado ainda em janeiro deste ano, quando vence o prazo previsto de seis meses para sua vigência inicial.
O acordo com a Federação de Bancos tem por objetivo “a validação biométrica e biográfica do cidadão na base de dados da identificação civil nacional”. A fundamentação legal para tanto é apresentada como sendo a Lei 13.444/2017. Ora, trata-se do texto que deu forma à necessidade de consolidar as informações da população em um único marco no governo federal. Tanto que o primeiro artigo é claro o suficiente a respeito do caráter estratégico e sigiloso de tais informações:
“Art. 1º É criada a Identificação Civil Nacional (ICN), com o objetivo de identificar o brasileiro em suas relações com a sociedade e com os órgãos e entidades governamentais e privados.” (…)
E o acordo pretende repassar graciosamente esse volume de informações para serem degustadas sem nenhuma parcimônia pelo financismo. É mais do que reconhecido que um dos patrimônios mais valiosos no capitalismo contemporâneo são justamente os bancos de dados sobre cidadãos, comunidades, empresas, setores e tudo o mais que possibilitar ampliar negócios e consolidar poderes. A disputa acirrada entre os grandes oligopólios ocorre justamente nesse campo, onde a informação se apresenta cada vez mais em algo superior a uma “simples” mercadoria. Na verdade, ela se converte em uma “commodity” essencial para o processo de acumulação de capital no universo globalizado. E o Ministério da Economia, mais uma vez, escolhe seu lado e parte para a defesa arraigada dos interesses dos mui robustos conglomerados do nosso sistema financeiro.
Agência reguladora ignora o escândalo e se cala
Um aspecto que torna ao caso ainda mais nebuloso refere-se à mais completa e absoluta ausência de manifestação da entidade responsável pela regulação de um setor tão essencial quanto o das informações. Com a recente aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei nº 13.709/2018), a intenção era justamente a de promover um aperfeiçoamento jurídico e institucional no sistema de sigilo e privacidade de informações de nossa cidadania. Além de uma série de instrumentos legais para tanto, o texto determina a criação de uma agência no âmbito do governo federal para cuidar do assunto. Assim, foi constituída em 2019 a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que passou a integrar a estrutura da Presidência da República.
Dentre as missões da entidade, encontramos as seguintes atribuições legais:
“I – zelar pela proteção dos dados pessoais, nos termos da legislação;
II – zelar pela observância dos segredos comercial e industrial, observada a proteção de dados pessoais e do sigilo das informações quando protegido por lei ou quando a quebra do sigilo violar os fundamentos do art. 2º desta Lei; (…)
IV – fiscalizar e aplicar sanções em caso de tratamento de dados realizado em descumprimento à legislação, mediante processo administrativo que assegure o contraditório, a ampla defesa e o direito de recurso; (…) ”
Ora, parece mais do que evidente a flagrante violação das normas legais quando da assinatura dos referidos termos de cooperação. No entanto, ao que tudo indica, a Autoridade não foi consultada e nem se manifestou a esse respeito. Seu presidente, Waldemar Gonçalves Ortunho Junior, é coronel do Exército e havia sido nomeado no começo do mandato de Bolsonaro para presidir a Telebrás, empresa estatal federal. Logo na sequência, já em novembro de 2020, foi publicada sua indicação para exercer a presidência da recém-criada agência reguladora de dados.
O militar foi agraciado com um mandato de seis anos à frente do órgão e deveria respeitar obediência estrita às leis no exercício de suas funções. No entanto, ao que tudo indica, ele prefere o silêncio e o olhar de paisagem para agradar ao chefe. A recente polêmica envolvendo a postura firme do diretor presidente da ANVISA, o almirante Barra Torres, e Bolsonaro aponta para o rumo correto na defesa de um comportamento mais digno na defesa do serviço público e da correta aplicação das normas legais.
Com a palavra, os partidos de oposição e as entidades preocupadas com a defesa da ordem democrática e dos interesses da maioria da nossa população. Talvez seja o caso de convocar os responsáveis pela assinatura desses acordos de cooperação e os dirigentes da agência a explicarem o comportamento flagrantemente ilegal que têm adotado no presente caso.
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Ilustração: Mihai Cauli
Paulo Kliass – Mestre em Economia pela USP e doutor pela UFR – Sciences Économiques – Université de Paris 10 e pós doutorado em economia na Université de Paris 13. Integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental.