No Buala
Caro amigo branco, posso parecer chato, mas não penses no entanto que sou apenas um gajo irritado e frustrado a descarregar o seu desagrado em ti, escrevendo, assim tanto, caro branco, porquanto os textos que endereço aos amigos pretos costumam ser mais extensos… (a comparação com o preto é só para te deixar mais brando)… Dito isso, prossigo.
Caro amigo branco, para ser franco, sim, sinto-me frustrado, frustrado por não conseguir ter um intercâmbio calmo contigo quando o assunto é racismo. Mal pronuncio o termo, parece que te desperto medos, ou mexo no teu credo, pois quase recebo um decreto de degredo, pois acendo em ti um fogo com que te coloco logo em modo de guerra, com paus e pedras, a sentires-te atacado e pronto para dar o pago por te ter incomodado. Quando falo de racismo, dizes que faço extremismo e dizes que a minha conversa é uma pista de que os pretos são ainda mais racistas.
Dizes que os pretos são mais racistas, e… bem, nisso até concordo contigo, alguns são, pelos vistos, mas por motivo distinto, pois está mais que visto que o preto é o objeto do racismo, e que o racismo diminui o preto no seu humanismo e o transforma num bicho ou num lixo perante a superioridade branca. A bronca é que há tanta, mas tanta gente preta que aceita essa ideia da chamada superioridade branca, e por via disso reproduz o racismo e trata outros pretos com desdém, reproduzindo o que convém para manter a superioridade do branco. Nesse caso, claro, o preto é mais racista, e mais do que isso, é burro, porque alimenta uma cena que só o prejudica. Pior racista é o auto-racista. Nisso concordo contigo, repito. Mas, caro amigo, quando vens com o termo racismo-reverso, penso aqui dentro que não estás a ser honesto, nem comigo, nem contigo…
Vá lá, calma, eu explico.
Caro amigo branco, é mais do que claro que o racismo é branco. É tão branco, tão branco, tão branco que quando és discriminado por um preto, nem o chamas de racismo, mas de racismo-reverso. Será que consideras que a discriminação preta não tem o pedigree necessário para ser racismo, mas é apenas um tipo ou uma amostra ou uma tentativa de emular a coisa? Às vezes até admiro que não o chames de afro-racismo ou etno-racismo, como fazes com tudo o resto que não está no centro do teu ocidentalismo, como por exemplo, músicas étnicas, vestimentas étnicas, etno-filosofia, afro-literatura, etno-matemática, entre outros exemplos. Sei que pareço repetitivo com isto, mas infelizmente tenho de repeti-lo tantas vezes para que o seu sentido te fique no ouvido.
Caro amigo branco, nota, por favor, nota que consideras o branco como a cor padrão, razão por que com vazão chamas a todas as outras pessoas de pessoas de cor, porque o branco não tem cor, naaaaá, não tem, não. Mas se passares pano nos teus autos, verás, no entanto, que branco é uma autodenominação. Os pretos chamam-vos de brancos, porque vocês se chamaram a si mesmos de brancos. Os pretos, podes estar certo, conhecem a cor-branca, meu caro amigo cara-pálida (como vos chamaram os “vermelhos”), e a cor branca não é nada parecida com a vossa cor-de-rosa. Se fossem os pretos a denominar-vos, e se calhar até denominaram mas vocês rejeitaram, talvez vos chamassem de “couro-de-porco” ou de “ânus-de-porco”, devido a similaridade cromática… Naaaaaaaaaá, não é minha prática, longe de mim querer insultar-te, caro amigo branco (tsc, tsc, estou a piscar o olho esquerdo, meu caro).
Vocês criaram a cor para os outros, porque o branco é aquele que é por si mesmo, feito a imagem de deus, não é como o preto que, segundo a tua bíblia, é o filho amaldiçoado por Noé para ser escravo dos irmãos brancos justos e puros, essa bíblia que empunharam, junto com outras armas, e com a qual amansaram até ao sopé da sua alma os desesperados pretos, e essa bíblia que nós empunhamos agora em auto-flagelo… Está bem, aceito, não acreditas em Deus, és ateu, mas não te esqueças da ciência da raça que criaste para a desgraça dos outros… Não foste tu? Como não? Se dizes que levaram a língua e civilização a povos pretos, se dizes que fizeram os descobrimentos, se dizes que fizeram tudo isso, por que queres retirar-te agora do plano do racismo?
Caro amigo branco, quando as pessoas falam do racismo, falam de um sistema ridículo construído por uns brancos ricos no alto do seu imperialismo e que tem diminuído vários indivíduos, arrastando-os para um abismo de auto-depreciação. O racismo é uma ação baseada no poder e na dominação, o racismo aliou-se ao capitalismo, o racismo é parte de um sistema económico, político e social de controlo das mentes, que atira gentes contra gentes, convencendo gentes de que são mais gentes do que outras gentes.
Não há lugar para racismo-reverso quando o balanço do poder continua o mesmo. Além do mais, o racismo é racismo, no seu verso, no inverso e no reverso. Atitudes discriminatórias baseadas na pele, é, sim, racismo, vindo da parte de quem venha. Sim, os pretos podem ser racistas e os pretos também são racistas. Mas quando um preto te discrimina, ele está em defensiva, usando a ofensiva que os brancos criaram. Mas quando um preto te discrimina, o que é que te acontece? Nada! Sentes-te discriminado e ferido e injustiçado e dás ali por isso tudo por terminado, pois não te sentes nem perdido, nem desnorteado, porque tens um mundo para te apoiar e ainda te elogiar pelo teu aproximar, e ele ainda até é visto como o bicho ingrato que mordeu a mão que lhe deu um prato; porém quando tu discriminas um preto, não é só esse teu gesto sem afeto que o afeta, mas tens de ter tento que tens do teu lado todo um sistema perverso e um universo de dejetos construído em séculos de sofrimento de povos opressos que esmagam o desgraçado.
Entendeste por que não faz sentido o teu hino de racismo-reverso? Não? Então, pensa num gigante com luvas de aço a boxear contra um magricelas sem um braço e com os olhos vendados e com o árbitro do outro lado, e ainda o gigante a dizer todo exaltado que é um confronto equilibrado porque é entre dois humanos. Não é justo, pois não? De facto! E neste cenário perturbante és tu o gigante.
Volto a dizer a mesma coisa que antes, os pretos também são racistas. Vai à Guiné, caro amigo branco, e vais notar que vais ser tratado melhor que os outros fulanos, só pelo simples fato de seres branco, porque o tom da tua pele está associado a mais dinheiro e a mais poder e a mais influência, portanto é bom que caias nos nossos encantos para que nos beneficie de algum modo. E relacionamos tanto o branco ao dinheiro que chamamos de branco a um preto vindo da Europa com aparente matéria na carteira. Caro amigo branco, há pretos a serem racistas com pretos em favor do branco, porque fomos assim ensinados desde que fomos colonizados, e quando falamos que escapamos desse antro, notamos que evacuamos para um campo minado, a reproduzir a todo o pano atos que só nos causam dano (“no sai na pilon, no kai na balei”). E tu ainda vens com esse papo de racismo-reverso?
Vai a África e verás tantos tontos a tintar a pele, a tragar tolices e a estragar a pele, tentando ser mais “brancos” para corresponderem a uma ideia de superioridade idiota. Vai à África e verás um culto aos mulatos e um ódio aos mulatos porque são mais brancos que pretos, mas não são brancos o suficiente para serem tratados com cuidado e portanto são os melhores alvos de ódio deslocado. Vai à Guiné e verás mulatos (vermelhos) a discriminarem pretos, a tratarem-nos como insectos, porque se acham “mais” superiores e mais corretos, porque se veem como intersectos do mundo branco. E ainda falas de racismo-reverso? Pelamordideus, caro amigo branco, tira o crânio do próprio rabo e analisa os dados que te são dados. Porque praticado pelo branco, praticado pelo preto, quem é beneficiado pelo ato és tu, ó caro branco.
Quando se fala de anti-racismo, não se está a falar de te quebrar, está-se a falar de quebrar um sistema, um sistema que não te afeta por não teres a cor preta. Quando se está a falar do anti-racismo e se está a falar de destruir os teus privilégios, não é racismo-reverso, é simplesmente porque os privilégios, os sociais, pelo menos, significam para outros ausência de direitos.
Dois pesos… Dois medos… Dois dedos de testa e atesta-te com pensamentos isentos do teu privilégio e verás como é perverso o teu credo de racismo-reverso. Podes ser vítima da “branquitude”, podes ser vítima do capitalismo, mas não és vítima do racismo.
Resumindo, quando um preto te discrimina na base da tua cor, o ato é racista, sim, e aquela tua dor é aflitiva, sim. Mas não te atrevas a comparar um ato (o seres discriminado uma vez por ano, por uns dois bacanos zangados, num canto qualquer do Bairro Alto) com um sistema (o seres discriminado todos os dias do ano por todo um estado e por uma horda de asnos que nem sabem que o fazem e que o negam em grandes espasmos de virtuosidade, batendo no peito, torcendo os ventres e rasgando as vestes), um sistema que faz ainda seres discriminado pelos teus próprios manos apanhados naquele buraco no racismo criado. Não te atrevas, caro amigo branco, não te atrevas porque estarias a mijar no rio Sado com o plano de deixá-lo salgado.
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Marinho de Pina – (Sonaco, Guiné Bissau). Verbómano inveterado e contador de histórias. Gosta de toda a forma de contá-las, seja oral, anal, escrita, desenhada, filmada, fotografada, cantada, representada… em qualquer formato que seja. Tem mania de que está inflexivelmente certo de que gosta mais de dúvidas do que de certezas inflexíveis. O seu pai queria que fosse jogador de futebol, mas o que ele queria era ser santo, sonho que morreu quando descobriu que o pecado era mais saboroso. Foi trolha e calceteiro, e também já escreveu um livro de contos, com prefácio de José Eduardo Agualusa, e participou em outros (de contos e de poemas). Diz coisas parecidas com poemas por aqui, por ali, por cá, por lá, por aí e por acolá, e também se diverte a contar histórias (principalmente às crianças). O seu sobrinho de três anos acha-o muito engraçado e isso é toda a validação de que precisa. Desde 2006 que perde tempo a produzir textos para alimentar o bem desconhecido blog: montedepalavras.blogspot.com, com reflexões, opiniões, teorias, poesias, críticas de filmes, de livros, de músicas, enfim com qualquer coisa que possa servir de motivo para não se manter calado.
Foto: Manuel Fernando Araújo, Lusa/Buala