A produção da vacina cognitiva anti-negacionista: embates educativos contemporâneos

Por Francélio Ângelo de Oliveira

Os processos educativos acompanham a humanidade por uma necessidade eminentemente humana de perpetuação e aperfeiçoamento dos modos de agir sobre a natureza e a própria sociedade, no sentido de transformá-los para garantir as condições de existência do conjunto das mulheres e dos homens. Nesse sentido, a educação não se constitui apenas enquanto uma espécie de guardiã e transmissora de informações.

O ato educativo, predispõe apropriação, análise e superação do próprio conhecimento estudado. Daí dizer-se que a educação é sempre um campo de transformação, visto que as modificações provocadas pela internalização do conhecimento caminham no sentido de formar para a permanência de uma determinada ordem ou para a (trans)formação desta.

Cumpre destacar que a Educação não se restringe a uma espacialidade geográfica. Educa-se em casa, no trabalho, nos templos e nos demais espaços em que se fazem presentes os coletivos humanos, visto que as trocas de conhecimentos acumulados são uma condição para o movimento transformador dos  espaços rumo à produção de condições de sobrevivência humana. Porém, desde a antiguidade grega a escola vem sendo consagrada como o espaço validado para a propagação de um tipo específico de conhecimento, a saber, aqueles sistematizados[1].

Os conhecimentos mediatizados pela escola estão dentro do campo científico. Tal produção ocorre por meio de uma sistemática específica. Isto é, o conhecimento científico é construído por meio de experimentações, observações, comparações, análises, inferências, críticas e contrapontos. Essa dinâmica respeita o processo ou caminho metodológico que considera teorias e outras produções anteriores. Ou seja, a ciência não parte do vazio, pois tem como  premissa a evolução e o aprimoramento dos conhecimentos já adquirido e por  isso se rege pelo acervo existente, buscando assim seu constante desenvolvimento.

A ciência é, por assim dizer, feita para ser superada. Eis a razão pela qual muitas teorias foram superadas pela própria dinâmica evolucionista que é inerente à produção científica. Isto não significa que os conhecimentos ultrapassados não tenham o seu devido valor na construção de novos saberes. Logo, vemos que mesmo para refutar, é necessário conhecer e se apropriar rigorosamente dos caminhos metodológicos utilizados para a elaboração de novos conhecimentos.

No caso das produções de “saberes” que venho chamando de “mitos de negação”, esse processo ocorre de maneira assistemática e simplista. Isto porque, para tais elaborações não há necessidade de debate, confronto de ideias, nem de construções dialógicas que considerem conhecimentos pré-existentes ou aporte teóricos. Eis a razão pela qual os movimentos anticientíficos como o “terraplanismo” ou mesmo o movimento “anti-vacina” são gerados de forma tão rápida e virializante.

Essas narrativas negacionistas possuem um modus operandis peculiar que caracteriza sua produção. Ou seja, elas entram em cena de forma rápida, possuem um grande poder de difusão e desaparecem com a mesma efemeridade. Isto porque, nessa perspectiva, não há compromisso ou preocupação em confrontar os fenômenos com a realidade, apresentar suas causalidades ou ainda com a utilização de métodos analíticos.

Outra característica das narrativas negacionistas é que não há abertura para o debate ou para a elaboração de contrapontos. Frequentemente se apresentam como neutras, despretensiosas e antipolíticas. Não é raro que esses discursos venham revestidos de uma  ideia salvífica, uma vez que o objeto ou conhecimento negado sempre está lidado a um plano conspiratório que de algum modo  danificará a ordem estabelecida.

A rigor, estas ideologias estão vinculadas a grupos que, de algum modo, exercem poder político, econômico e ideológico sobre uma parcela considerável de determinados segmentos ou setores da população.

Frente a esse crescente movimento, que traz à tona o resgate de questões que além de superadas considerávamos sem expressividade discursiva, urge a necessidade de trazê-los para  o centro  do debate acadêmico-científico. Isso nos chama a atenção para o  fato de que, mesmo falando do lugar da ciência, a escola não pode desconsiderar as demais forma de produção do conhecimento. Há que se debater desse lugar em que a escola se encontra, os vários modos de produção do conhecimento e de como esses têm impactado a vida em sociedade e a relação com o próprio planeta.

A escola precisa discutir a produção de ideias por meio do senso comum. É necessário não cair na armadilha de imaginar que o conhecimento formal é consensual. É mister compreender como os conhecimentos espontâneos são produzidos e atuam sobre os sujeitos e mais ainda como são difundidos e utilizados como instrumento e produção de verdade e de poder.

Da mesma maneira, a escola necessita estudar a produção dos saberes religiosos para entender como os fenômenos sociorreligiosos constituem as consciências e impõem modos de vida. Esse diálogo com outras formas de produção de conhecimento não fragiliza aquilo que alcançamos por meio do acervo cultural e científico legado pela humanidade. Ao contrário disso, será mais um ganho no sentido de compreender a complexidade da construção de saberes  de diversas matrizes e a reafirmação do caráter político que  envolve toda e qualquer produção de conhecimento.

O vírus do embrutecimento e da deterioração intelectual tem caminhado a passos largos juntamente com a crise pandêmica. Portanto, é urgente a produção de uma vacina cognitiva anti-negacionista por meio da disponibilização de instrumentos de análises que funcionem como anticorpos para que o sujeito possa se relacionar com a realidade de modo a superar os limites da captação mera sensorial. Os mecanismos de defesa acionados por essa vacina irão instrumentalizar os indivíduos para a utilização do senso crítico e, sobretudo, para uma ação transformadora. É improrrogável e imperativo que os espaços educativos exerçam seu papel político e disponibilizem conceitos e teorias comprometidos com a transformação social. É improtelável uma formação que aponte para  uma nova sociabilidade e a superação do paradigma imposto pelo modelo socioeconômico vigente.

[1] Compreende-se por conhecimentos sistematizados os saberes que possuem caráter formal ou escolar. Ou seja, aqueles que consideram o caráter científico do conhecimento, possuem linguagem específica e são transmitidos de modo a considerar processos didáticos e metodológicos.

*Prof. Dr. Ângelo Oliveira-IFCE/Campus Quixadá
Área: Currículo e estudos aplicados ao ensino e aprendizagem

“Bond of Union” de M.C. Escher, 1956 (Museu Herakleidon, Atenas)

Comments (1)

  1. Um ponto em que me chama bastante atenção diante dessa importante reflexão levantada, ela que é muito importância e necessária à nossa sociedade atual, pois vem refletir sobre processos voltados à educação, em relação ao seu papel na sociedade, onde ela é essa “grande arma transformadora na sociedade”, tanto em casa, como também no mundo. Por ser um tema muito atual, ou seja, em seus diversos aspectos sócio-culturais, entre outros. Porque, a educação contribui tanto na missão de formar tais homens e mulheres em cidadãos do bem, como em realizar a sua transmissão de conhecimentos e saberes. Sendo assim, é impressionante como as formas características dessas “Narrativas Negacionistas” tendem a se apresentar com suas teorias, mecanismos, formas antipoliticas, neutras, além de como ela vem se comporta na sociedade, com a sua não abertura ao debate e ao diálogo com os diversos conhecimentos ou saberes acadêmicos e científicos, com a sociedade em geral, para que assim todos tenham bem estar social, etc.

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