No TaquiPraTi
“Quem tem língua cortada não fala”
(Provérbio Mongol. Séc. XIII)
As línguas Nheengatu e Kambeba passam a fazer parte agora do currículo educacional das quatro escolas municipais indígenas de Manaus, atendendo reivindicação dos índios moradores de uma cidade que sempre foi cemitério de línguas e traz sepultado em seu solo o último falante do idioma Baré. Durante séculos, a glotopolítica colonialista silenciou centenas de línguas indígenas, com o objetivo de emudecer seus falantes, como manda o provérbio do séc. XIII, baseado em prática adotada por Gengis Khan, fundador do Grande Império Mongol, que abarcava China, Europa Oriental, Pérsia e Oriente Médio.
Não vou mentir. O pouco que sei sobre Gengis Khan e seu neto Kublai Khan, imperador da China, foi o que ouvi, em 1963, nas aulas do nosso professor de história, Manoel Octávio Rodrigues de Souza, no curso Clássico do Colégio Estadual Pedro II. Até hoje minhas lembranças permanecem salpicadas com cheiro de baunilha e florais de jasmim. É que em suas aulas – como lembra a escritora Leyla Leong, sua ex-aluna – o professor passeava entre as carteiras enquanto falava e, quando abria o paletó, espargia a fragrância do perfume inglês Bond Street, que acabara de ser lançado no mercado. Mas afinal o que é que isso tem a ver com o ensino de línguas?
Sei que faço pequeno desvio no assunto, mas serei perdoado se o eventual e raro leitor souber que o cheiro de Bond Street, que impregna teimosamente minhas narinas, é responsável por me trazer de volta a política de Gengis Khan, essa sim muito fedorenta. Por razões “humanitárias”, os mongóis poupavam a vida dos prisioneiros de guerra e os deixavam retornar às fileiras de origem, mas antes lhes decepavam o músculo da fala, cortando-o pela raiz próximo à amígdala. Assim mutilado, ele não batia com a língua nos dentes, e não municiava com informações o inimigo. Daí o provérbio: com língua cortada, você não fala.
Glotocídio
A mutilação praticada pelo exército mongol deixou milhares de indivíduos mudos, mas a língua, como instituição social, permanecia viva e continuava se realizando na fala de outras pessoas. Na Amazônia, o crime foi mais hediondo, as línguas foram exterminadas e desapareceram da face da terra, impedindo que fossem faladas e transmitidas aos filhos. Esse é o crime do glotocídio, que amputa a língua como instituição social e coletiva, ela deixa de ser falada, sem necessidade de decepar músculos.
Essa política histórica reeditada pelo atual governo federal fere o artigo 231 da Constituição de 1988, que reconhece as línguas indígenas, assim como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Por várias vezes, o Inominável debochou das línguas indígenas. Para puxar o saco do amo, o deputado estadual do Rio, Rodrigo Amorim (PSL), afirmou que “quem gosta de índio que vá para a Bolívia”.
Mas os índios, sempre solidários ao país andino, ficaram em Manaus e obtiveram vitória na administração de David Almeida (Avante – ops), cuja simpatia pelo Capetão Cloroquina não o impediu de determinar a inclusão dos idiomas Kambeba e Nheengatu como matéria no currículo educacional das escolas municipais indígenas (Diário Oficial do Município 06/01/2022). Desta forma, o prefeito dá continuidade à política iniciada em 2005 na administração Serafim Correa (PSB) e interrompida em 2009 pelo seu sucessor Amazonino Mendes (PTB vixe vixe).
– O objetivo é valorizar a cultura, a língua e a identidade dos falantes nativos – declarou aos jornais o sub-secretário de Gestão Educacional, Carlos Gadelha, que anunciou o início imediato do ensino de línguas com duas horas semanais em todas as séries do ensino fundamental. Resta saber o que é, exatamente, que será ensinado.
Resistência
Essa política de línguas para índios em contexto urbano representa um avanço, mas esperamos que vá mais longe para servir até de experiência piloto. É necessário realizar o levantamento da situação sociolinguística dos usuários do Nheengatu e do Kambeba, quantos ainda falam como primeira língua, quantos são bilingues, qual o número de crianças matriculadas nessas quatro escolas municipais indígenas.
Os dados podem ajudar na tomada de decisões técnicas em várias frentes, tais como a produção de material didático, a criação de uma biblioteca digital, a definição do alfabeto, a elaboração de estratégias de ensino, enfim a formulação de um projeto político-pedagógico. Neste caso, é fundamental recorrer à produção da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e da Universidade Estadual (UEA), que possuem doutores e mestres com pesquisas e publicações sobre o assunto.
Existem diversas variedades do Nheengatu: do Baixo Rio Negro, do Solimões, do Baixo Amazonas e da Bacia do Tapajós, no Pará, que requerem um acordo de padrão ortográfico na diversidade. Recentemente, um grupo de professores e escritores criou a Academia de Língua Nheengatu como uma tentativa de atualizar as funções da língua, no mesmo momento em que Suellen Tobler, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA, lançava a plataforma de ensino da língua através do Nheengatu App.
Segundo a poeta Márcia Wayna Kambeba, ouvidora geral da Prefeitura de Belém, existem estudos avançados para que o prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL) adote medidas similares às da Prefeitura de Manaus. Desta forma, o Nheengatu – historicamente a primeira língua geral da Amazônia – amplia seu espaço de resistência, o que atraiu a atenção do ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, que se dedicou a realizar pesquisas nessa área.
Essas línguas, que classificaram o mundo amazônico, além de serem arquivos vivos de saberes, deixaram marcas no português regional, na toponímia, no léxico, na classificação e nos nomes de plantas, animais e outros. Um exemplo ocorre nos processos de modalização do nome característicos do tupi, cujo sufixo rana (“como se fosse”) aparece registrado em palavras como canarana, sagarana, tatarana, netarana. Além dessas, existem outras influências entranhadas nas camadas profundas da língua, que ´penetraram em seus alicerces, mexendo com seu sistema sintático, fonológico e morfológico. É o que os linguistas chamam de “substrato”.
No falar do caboco no interior do Amazonas, há o processo de “alçamento” e “abaixamento” de vogais, visível em casos como “popa da canoa” ( pupa da canua) estudado em Borba, no Rio Madeira, pela doutora Sandra Campos da UFAM em sua tese de doutorado na Universidade Federal Fluminense. Enfim, um mundo a ser explorado para contribuir nas ações das escolas bilingues evitar que “o perfume” de Gengis Khan contamine as línguas amazônicas.
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